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Martim Avillez: incandescentes apocalipses

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Martim Avillez faleceu a 24 de Janeiro, no meio do esperado e já quase proverbial silêncio dos “especialistas” em “cultura” na imprensa portuguesa. Junte-se a esse habitual silêncio a existência de um jornalista/comentador televisivo homónimo e encontrar uma referência ao acontecimento e ao artista torna-se impossível, por muito que se puxe pelo Google.

Em conversa com o pintor Eduardo Batarda no ano passado, no contexto do livro sobre a Afrodite que preparo, Martim Avillez (com quem eu desejaria ter também conversado) tinha obviamente sido assunto, mas foi aí que soube que ele  estava infelizmente já muito mal. Má sorte ter sido ilustrador da Afrodite, tê-lo sido (ilustrador) nos anos 70 e com alguma fama ou ter-se definido como autor de BD. Tomada em partes ou em mistura, eis uma receita tóxica e conducente ao esquecimento por estas bandas. Exemplos? Henrique Manuel (morto há 20 anos no meio da indiferença geral, indiferença que continua, até para os lados da Gulbenkian, que o incensou fugazmente), Eduardo Batarda (que não voltou a ilustrar um livro depois da Antologia de Poesia Latina da Afrodite, em 1975) ou Martim Avillez, notável ilustrador do Apocalipse do Apóstolo João, da mais excêntrica edição do Livro de São Cipriano e do Sade da 2.ª edição da Filosofia na Alcova para a Afrodite, já para não falar de um dos mais icónicos livros dos anos 70, o Pacheco versus Cesariny. Não fosse uma nota na página de “Diversos” do Público do dia 29, a anunciar para o dia 31 a missa do 7.º dia da sua morte (ocorrida, portanto, no dia 24 de Janeiro), nenhum registo teria ficado do acontecimento (não sei se entretanto chegou a ser publicado um obituário – em 1993, Henrique Manuel teve, pelo menos, direito a um – mas pesquisas na internet continuam sem revelar nada até ao momento em que escrevo este texto). Por manifesta ignorância minha, não pretendem estas linhas ser essa contribuição obituarista, mas antes uma referência ao seu trabalho como ilustrador de livros, em particular o notável portfolio que desenvolveu na primeira metade da década de 1970 para a Afrodite de Fernando Ribeiro de Mello.

Se não nos move o desejo de conhecer mezinhas para deixar um ou uma amante “cativados” (ou, pelo contrário, para fazer com que se “desliguem”), a única razão para se procurar hoje um exemplar do Grande Livro de São Cipriano (em particular, um exemplar da primeira edição desse texto pela Afrodite em 1971, na sua colecção de “Clássicos”) escreve-se com duas palavras: Martim Avillez. A ilustração deste popular grimório medieval foi a grande entrada do artista no catálogo da chancela, num momento de particular pujança da Afrodite, passados que estavam os anos das perseguições policiais, dos livros proibidos e dos julgamentos no Plenário (o julgamento sobre a Antologia da Poesia Erótica e Satírica fora em 1970 – com as esperadas condenações – e em 1971 é incluído no Index censório o último livro da Afrodite antes da Revolução de Abril de 74, o Anti-Duhring de Engels). O início da década é marcado por lançamentos “bombásticos”, como o de Dezembro de 1971 (o do “editor na banheira”, como titulou o Diário de Lisboa), colecções importantes como a dos “Clássicos” e notáveis edições de textos importantes como a Alice no País das Maravilhas de Carroll (a primeira edição “não infantil” desse texto em Portugal) ou A Sociedade do Espectáculo de Debord (a quarta edição mundial desse texto). Avillez juntava-se a um grupo de jovens artistas que orbitava em torno da Afrodite, como o seu colega nas Belas-Artes (1) de Lisboa Eduardo Batarda (que ilustrara de maneira brilhante a Arte de Furtar em 1970) ou Carlos Ferreiro (vindo já do grande sucesso de crítica e vendas que fora a Antologia do Humor Português de 1969), e a sua estreia não podia ter sido melhor.

Trata-se, como esperado, de um autêntico catálogo de bizarrias, às quais Avillez empresta algum humor, denotando já as influências da banda desenhada na composição dos desenhos (uso de vinhetas, recurso a onomatopeias), e num estilo que varia do traço minucioso, pleno de detalhes e meios-tons em hachuras delicadas, até ao quase esboço, sempre com um uso muito eficaz dos espaços em branco na composição (apesar do seu gosto pontual pelo excesso, Avillez estava longe de cultivar o “horror vacui”). O que torna esta primeira edição da Afrodite verdadeiramente notável é o facto de ser impressa na sua quase totalidade – capa e miolo – com cores directas (incluindo dourados e prateados) e num efeito de gradiente (uma técnica conhecida como “split fountain”). Sugestão do próprio ilustrador, por influência do grafismo psicadélico Pop londrino e californiano do final dos anos 60? Decisão do “controlador gráfico” José Marques de Abreu (2) à revelia do ilustrador (o efeito faz com que se perca o impacto e a intensidade dos negros em alguns desenhos)? Obra do acaso acolhida por ambos? O certo é que o resultado final eleva a edição a um nível visual que certamente nenhuma outra do mesmo texto atingiu ou procurou fazê-lo, acentuando o carácter mágico e alucinante deste e dando cor ao “satanismo light” que Ribeiro de Mello tão astutamente explorou na campanha de promoção e na sessão da “banheira”, fazendo-se acompanhar por figurantes vestidos de “Diabo”.

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Em 1972, na celebração do Ano Internacional do Livro, Ribeiro de Mello decide publicar o texto bíblico conhecido como o Livro do Apocalipse, atribuído ao apóstolo João, e encomenda de novo a Martim Avillez as ilustrações. Estamos ainda na ordem do mágico e do irracional, na linha do livro anterior, mas a escala e o âmbito são mais vastos, o que permite ao ilustrador dar uso ao seu pendor tonitruante e ao gosto pelo macabro, com um requinte de detalhe no desenho  e na composição dos planos que extravasa os limites que o livro de S. Cipriano impusera. A colecção “Extra” da Afrodite, inagurada pela edição da Alice no País das Maravilhas em 1971 – e em que o Apocalipse do Apóstolo João foi publicado – não era, na verdade, uma “colecção” propriamente dita mas uma lista de obras próximas ao espírito do catálogo do editor e cuja preparação gráfica estava isenta de qualquer constrangimento: os formatos variavam enormemente de livro para livro, e a liberdade dada às soluções de paginação e ilustração era igualmente muito vasta.

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O formato quadrado e o impacto visual (o desenho continua pela lombada e contracapa e repete na folha de rosto, permitindo uma dupla valência e uma segunda leitura mais abrangente do plano) e tipográfico da capa (o uso de uma fonte muito semelhante à Avant Garde no título, numa versão ultra fina e com espaçamento apertado, é, ao mesmo tempo, uma concessão compreensível à moda tipográfica do tempo e uma solução certeira no encaixe com a composição geométrica que sobreimprime o desenho) concorrem para criar a entrada perfeita num livro sobre cuja aportação visual de Martim Avillez se pode dizer que é “incandescente” (como o escreveu de facto Isabel da Nóbrega no Diário de Lisboa de 21 de Dezembro desse ano).

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Óbvio devedor do Surrealismo e consciente da tradição iconográfica escatológica, Avillez aproxima-se também dos modos gráficos e narrativos da banda desenhada, sobretudo da que na altura saía das páginas das revistas francesas próximas do underground, como a Hara-Kiri ou a Actuel (veículos de influência óbvios para artistas gráficos portugueses daquela geração e naquela “onda” cultural: numa nota biográfica publicada no 2.º número do jornal & etc sobre Nuno Amorim, já então ilustrador na Afrodite, a influência da Actuel é admitida de forma explícita), como é nítido, por exemplo, no uso das “vinhetas” na composição de alguns quadros, ou no ritmo “sequencial” de algumas ilustrações.

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Em cima: nestas quatro ilustrações do Apocalipse é nítido um ritmo sequencial, criando, através do folheamento, uma ilusão cinética e um efeito cinematográfico.

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Anúncio de imprensa para promoção da edição do Apocalipse do Apóstolo João (1972).


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Exemplar da tiragem especial em capa dura e sobrecapa de 200 exemplares da edição do Apocalipse (fotos gentilmente cedidas por Paulo da Costa Domingos).


Prova das cumplicidades “operativas” que o editor da Afrodite cultivava é o texto que Manuel João Gomes escreveria sobre esta edição, publicado no número 4 (de 28 de Fevereiro de 1973) do “quinzenário cultural” & etc de Vitor Silva Tavares, antigo editor da Ulisseia e que fora até aí o responsável pelo “Suplemento Literário” do Diário de Lisboa (e, em breve, editor de livros sob a mesma chancela da & etc, e com Ribeiro de Mello e a mulher como sócios fundadores). Manuel João Gomes personificava precisamente essas pontes de contacto entre Ribeiro de Mello e Silva Tavares: começara a escrever no DL pela mão deste pouco tempo antes de a Afrodite publicar a sua tradução (com José Vaz Pereira) da Alice de Carroll, fazendo-a acompanhar das suas notas manuscritas sobre os significados arcanos e psico-sexuais do texto original, naquela que foi uma das melhores edições de Ribeiro de Mello. Nesse número do & etc, ele assina um texto largamente encomiástico sobre essa edição do Apocalipse do Apóstolo João, chegando a cotejar as ilustrações de Avillez com uma das gravuras de Durer:

“Como se fez uma edição marginal. Foi a que fizeram Ribeiro de Mello e Martim Avillez. A leitura que iconograficamente MA realizou, segue processos que […] não deixam em certos pontos de nos chamar a uma outra forma de ler. Tomando como modelo de leitura muitas vezes a liberdade que o Autor usou na sua escrita, podemos dizer que MA:
– reconstituiu iconograficamente o texto-fetiche e chamou-lhe seu; podemos designar a operação realizada como uma leitura de grau zero: vive a ilustração de uma tal inocência frente a escrita que isso acaba por imprimir violência e crueldade à leitura, criticando o texto como nenhuma ilustração das que conhecemos o conseguiu…”

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Em cima: “confronte-se Durer e Martim Avillez” (Manuel João Gomes in & etc n.º 4, 28.02.1973).


Num registo mais contido (tanto em qualidade como em quantidade), revisitando iconograficamente algum do território do S. Cipriano, é de 1974 a sua colaboração na 2.ª edição da Antologia do Conto Fantástico Português, com uma ilustração para a capa (que não faz esquecer a que Rocha de Sousa fizera para a 1.ª edição) e outra no interior e um friso decorativo que se repete na introdução de cada texto.

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O livro final de Avillez para a Afrodite, em 1975, seria um projecto de suma importância no contexto do catálogo de Ribeiro de Mello. Quase dez anos depois da 1ª edição da Filosofia na Alcova do Marquês de Sade ter sido retirada do mercado e transformada no pretexto para um duro e sumário processo do qual saíram condenados quase todos os seus colaboradores, o editor, dois anos após a Revolução, volta à carga e muda tudo. Motivo forte para isto foi, por certo, o facto de a edição de 1966 ter sido considerada, quase unanimemente, bastante medíocre (a tradução fora um processo caótico sem qualquer controle, e as ilustrações de João Rodrigues – habitualmente um bom cartoonista no Jornal de Artes e Letras, desenhador repentista de “mesa de café”, com uma veia sombria e sarcástica e um traço vivaz – pareciam traduzir a impreparação ou o receio do artista perante tamanha encomenda: já Luiz Pacheco se referia, em carta a Cesariny, ao “nojo dos desenhos” de J. Rodrigues e a sensação de rigidez e insipiência anatómica destes deixava-os longe do nível que ilustradores anteriores de Sade como Valentine Hugo, Lilian Gourari ou Schem [Raoul Serres] tinham atingido). A escolha de Avillez é mais uma prova do “olho” certeiro de Ribeiro de Mello (afinal de contas, Henrique Manuel, habitual já na Afrodite, estaria também disponível, tal como Nuno Amorim, que estaria  no seu melhor a ilustrar esse ano o Super Macho de Jarry, ou mesmo Cruzeiro Seixas, que recuara em 1966 perante a possibilidade de fazer as ilustrações e teria em 1976 desenhos seus num livro da Afrodite, Do General ao Cabo Mais Ocidental): o Sade seria um passo lógico na continuação dos dois livros anteriores, passando do “gabinete de curiosidades” feérico do São Cipriano ao meticuloso exercício de escatologia do Apocalipse para culminar neste Sade pós-68, quase contemporâneo do de Pasolini (Saló sairia um ano depois), soturno e desencantado, em que o sexo e a possibilidade de titilação sensual (que eram ainda visíveis nos tímidos desenhos de João Rodrigues, e notórios nos ilustradores franceses anteriores) são cruamente dissecados e expostos como maquinações (literais, dado o recorrente desenho de máquinas) de um jogo de poder e de opressão por parte da “classe dominante”. O colchão cor de rosa, desenhado meticulosamente num traço delicado, que cobre a capa, contracapa e – de perfil (bela solução) – a lombada, é a ilustração perfeita dessa crueza sem sombra de sofisticação, que nem a cuidada factura manual da tipografia desfaz. (A curiosa decisão de Ribeiro de Mello de incluir, em “posfácio”, a reprodução dos documentos do processo da 1.ª edição de 1966 reforça esse aspecto sombrio do livro).

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Esta nova edição do Sade foi um dos cinco livros “invulgares” com que o editor “investiu” na Feira do Livro de Lisboa no “Verão Quente” de 1975, e um dos desenhos “do trotamundos Martim Avillez”chega a ser reproduzido pelo Diário de Lisboa na notícia que disso dá conta a 24 de Junho.

A coroar essa brilhante primeira metade da década de 70, Avillez tinha sido ainda o responsável pela capa e as ilustrações do último livro de Luiz Pacheco na célebre colecção da Estampa “Novas Direcções”, onde se tinham publicado Exercícios de Estilo e Literatura Comestível, livros que deram a tardia fama (e algum proveito) ao autor quase quinquagenário no arranque da década. Pacheco Vs. Cesariny (1974) estava pensado pelo seu autor como um grande regresso em forma num estilo em que era mestre consabido – a epistolografia – e como meio de limpar as teias de aranha na sua relação já longa com o “papa” do Surrealismo português, Mário Cesariny. A Revolução de Abril relegou subitamente o livro e as polémicas geracionais e inter-pessoais nele contidas para um plano secundário (disso se lamenta o autor no Diário Remendado), mas o trabalho de Avillez é mais uma vez notável, com uma mão cheia de ilustrações em torno do mote da máquina de escrever e, sobretudo, uma capa icónica, conjugando o seu estilo exuberante de hachuras e traço nervoso no desenho da caneta de dois aparos (que apontam para os dois nomes titulares) com um esquema cromático e tipográfico minimalista (o uso da tipografia “stencil” é particularmente eficaz).

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Em cima: apesar da desilusão com a carreira do livro após a sua publicação, Pacheco terá gostado minimamente dos desenhos de Avillez para o Pacheco versus Cesariny, a julgar pelo facto de em 1992 ter usado um deles na capa da sua edição (pela Contraponto) de O Uivo do Coiote.

Do seu trabalho como ilustrador em Nova Iorque, cidade onde se radicou a partir da década de 1970, encontram-se registos dispersos quer na imprensa mainstream, como a revista New York (em baixo) ou o New York Times Book Review, quer em publicações experimentais e “alternativas”, como a Semiotext(e), onde publicou em 1977 uma banda-desenhada “mito-biográfica” com base nos textos de Friedrich Nietzsche, “My life, by Friedrich Nietzsche”.

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Quanto à ilustração de livros nesta fase “americana”, registam-se alguns exemplos curiosos, como o de Class: A Guide Through the American Status System de Paul Fussel (1983), um guia satírico do mapa de “classes sociais” americanas e seus tiques. O nome de Avillez chega a constar como co-autor (com Susan E. Meyer) de um manual de desenho publicado em 1985 pela Macmillan.

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Num dos últimos números da revista Lusitania (que fundou em Nova Iorque em 1988 e que foi editando intermitentemente, partilhando ou cedendo o leme a editores convidados), o décimo (“The 23”, publicado em 2001), Avillez impõe de novo o seu cunho visual e a sua preferência pela BD como modo narrativo e expositivo na autoria do comic que dá o título à edição, contando a história de vinte e três judeus sefarditas que fogem do Brasil no século XVII perante a iminente chegada da Inquisição ao território. A encadernação “à japonesa”, em acordeão (protegida por capa dura e inserida numa caixa) dispõe a BD numa face e quatro ensaios na outra. Quase trinta anos depois do Apocalipse da Afrodite, este terá sido, possivelmente, o último grande momento gráfico de Martim Avillez como criador de livros.

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The 23, banda desenhada da autoria de Martim Avillez publicada no n.º 10 da revista Lusitania, 2001 (fotos gentilmente cedidas por Ana Neto).


(1) Cf. “Pintar em Portugal, Anos 60, Eduardo Batarda” in Eduardo Batarda Pinturas 1965-1998. Lisboa: CAM-FCG, 1998.

(2)  Figura esquiva: para além das fichas técnicas dos livros da Afrodite dos anos 70, nada se encontra dele ou sobre ele. Seria, ao mesmo tempo, um pseudónimo do editor e uma homenagem ao homónimo fotógrafo e artista gráfico portuense, outrora director da revista Ilustração Moderna e falecido em 1958? Seria o mesmo José Marques de Abreu que surge, na década seguinte, como arranjador gráfico em edições da INCM?

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Do “cieslevício”

Desde que tomei a minha primeira dose, no já distante ano de 1993, que a coisa não me passa: sou um viciado em Roman Cieslewicz e não tenho outro remédio a não ser assumir e viver com o meu “cieslevício”. A entrevista de Margo Rouard ao designer polaco-francês no número 9 da Eye abriu-me os olhos e pôs-me a salivar seriamente. Já andava algo condicionado pelas colagens de Andrzej Klimowski para as capas da Faber que ia descobrindo na Livraria Britânica do Porto, mas isto era como ir à fonte, ou, pelo menos, a um ponto bem superior rio acima e muito perto da fonte.

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Se aceitarmos que essa “fonte” está nas colagens que Max Ernst foi fazendo a partir do início dos anos 20 do século passado, não será preciso muito esforço para aceitar também que o que o pintor surrealista inglês Paul Nash escreveu em 1937 sobre Ernst e a junção que neste existia entre uma “inquietante capacidade de horrorizar” e uma “intensa imaginação poética” (citado por John Lewis em The 20th Century Book) se aplica completamente a muito do que Cieslewicz fez. Para mim, continua a ser a melhor súmula do século em que nasci, um teatro secreto de figuras híbridas (vindas do mundo do publicidade e da moda, da pornografia, da iconografia política, da fotografia jornalística ou do baú anódino das gravuras oitocentistas) compostas a partir de elementos opostos ou conflituosos, envoltas numa névoa permanente de pontos de trama offset: se, daqui a quinhentos anos, alguém quiser ter uma rápida sensação visual do que foi o século XX, terá de recorrer a uma destas imagens.

Estas duas recentes adições à minha cieslewicziana privada estão quase nos extremos cronológicos da vida e carreira do artista gráfico e designer: uma pequena monografia publicada na Polónia em 1966, três anos depois do “salto” de Cieslewicz para este lado da Cortina de Ferro, e o catálogo exaustivo do leilão do recheio do seu atelier em Paris em 2006, dez anos após a sua morte.

Aleksander Wojciechowski, no texto de introdução ao volume monográfico publicado pela Wydawnictwo Artystyczno-Graficzne em 1966 (da série “Współczesna grafika polska” dedicada a vários artistas gráficos polacos), põe de lado essa óbvia herança surrealista e concentra-se em contextualizar Cieslewicz no movimento então ascendente e já quase dominante: a Arte Pop. Wojciechowski apresenta mesmo o grafista polaco como um explorador pioneiro das possibilidades estéticas dos detritos gráficos e comerciais da cultura de massas:

“Cieslewicz atira-se inconscientemente – nesse ano de 1958 – à resolução de problemas que serão discutidos só muitos anos mais tarde em Nova Iorque ou em Paris. Fá-lo sozinho, quase clandestinamente, contando apenas com as suas próprias forças e com a sua intuição. A arte Pop não foi, portanto, uma surpresa para ele.” (traduzido da versão francesa do texto)

Mas para quem conheça já algo do trabalho de Cieslewicz dos anos 60, a importância deste pequeno mas muito bem escolhido portfolio reside não nas amostras do seu trabalho Pop – avant la lettre ou contemporâneo já do movimento – mas nas reproduções de uma série de colagens que ele produziu como ilustrações para o conto de Bruno Schulz “Traktat o manekinach” (“Tratado dos manequins”) incluído na colectãnea Sklepy cynamonowe (As lojas da canela). Se a edição com essas ilustrações chegou alguma vez a ser publicada, nunca descobri qualquer prova disso. Margo Rouard incluíra algumas no catálogo da exposição dedicada a Cieslewicz em 1993 no Centro Pompidou de Paris, mas apenas em versão monocromática (e, mais uma vez, sem qualquer indicação de ter sido feita uma edição do texto de Schulz com estas ilustrações). É a tradição “ernstiana” no seu fulgor, fundida com a obsessão de Cieslewicz com as composições simétricas a partir da duplicação e inversão de um detalhe fotográfico (que ele desenvolveria no final dessa década e na década de 70 com a designação genérica de “colagens centradas”).

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O catálogo da leiloeira parisiense Calmels Cohen com os lotes de vários itens provenientes do atelier de Roman Cieslewicz (e que foram a leilão a 19 de Março de 2006) foi uma verdadeira surpresa pela espantosa quantidade de reproduções (e  qualidade das mesmas) e pela minúcia da informação disponível. Nesse sentido, creio mesmo que, juntamente com o catálogo do Centro Pompidou de 1993, este deverá ser o guia obrigatório de consulta para quem se aventura na cieslewicziana. Para além das inúmeras fotografias do arquivo pessoal de Cieslewicz, o volume conta ainda com notas introdutórias de Agnès B., Christian Boltanski, Raymond Depardon, Milton Glaser e um excerto de um texto do editor François Maspero (“Et comment faire revivre le rire à la fois clair et grinçant de Roman Cieslewicz, qui me fit, dans les dernières années, presque gratuitement, les plus belles couvertures de livres?”, p. 11).

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O que se torna particularmente valioso nas reproduções deste catálogo é o facto de terem sido feitas, na sua maioria, a partir das maquetas, ou seja, temos acesso directo aos “bastidores” da criação destes cartazes e colagens. São visíveis aqui os retoques a guache, os limites dos recortes, os pedaços de fita-cola, etc; em suma, torna-se-nos transparente todo o processo de composição “analógica” destas imagens. Sob a capa de um serviço de leiloeiro que nos traz o objecto a leilão até bem junto dos olhos, esta é uma excitante e rara ocasião de imersão nos vestígios da minuciosa e intransigente factura manual de Cieslewicz (“le futur des nouvelles images, leur épanouissement est lié pour moi aux accidents que la main provoquera”, disse ele a Margo Rouard em 1993).

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“…dentro da esfera armilar, uma boca aberta…”

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Há precisamente quarenta anos, a 4 de Agosto de 1973, o Expresso, na sua coluna “Gente”, informava que  João Abel Manta, arquitecto mas conhecido, sobretudo, como cartoonista e ilustrador, e António Ruella Ramos, director do Diário de Lisboa, tinham sido absolvidos das acusações que os tinham levado a julgamento: “abuso da liberdade de imprensa” e “ofensas à bandeira nacional”.

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O início do julgamento fora também noticiado no próprio Diário de Lisboa na edição de 28 de Junho, com chamada de primeira página e continuação com destaque na última.

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O suposto “crime”: a publicação, a 11 de Novembro de 1972, no suplemento “A Mosca” do Diário de Lisboa, de um cartoon de Abel Manta intitulado “Festival”. Procurando ridicularizar as presenças de cançonetistas nacionais no Festival da Eurovisão, a composição, num misto de desenho e colagem, centrava-se numa apropriação da bandeira nacional, na qual a esfera armilar representava o rosto da figura e o escudo delimitava a boca (onde se podia ver um conjunto de dentes de resplandecente brancura e uma língua túrgida), tudo encimado por uma poupa devidamente “lacada”. Rematando o atrevimento, o cartoon fora publicado nas duas páginas centrais do suplemento, logo podia ser usado como um poster (e tê-lo-á sido certamente).

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Como noticiara já o Expresso a 30 de Junho, e depois de vários adiamentos, o início do julgamento teve lugar a 26 desse mês. Defendendo os arguidos, estavam os advogados Abranches Ferrão, Galvão Telles e José Carlos de Vasconcelos, que reuniram um rol de testemunhas onde se contavam José Cardoso Pires e Artur Portela Filho. Surpreendentemente, a censura, para além de ter deixado publicar a notícia, não viu obstáculos à citação do ferrão encoberto que Abel Manta lançou como tentativa de explicação do processo, o qual, segundo ele, só podia  acontecer dada a “falta de treino visual no nosso país”.

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O testemunho de José Cardoso Pires, a “principal testemunha abonatória”, e cujo Dinossauro Excelentíssimo acabara de ser publicado com ilustrações de Abel Manta, foi, já em Julho, novo pretexto para curta nota sobre o processo, voltando a denotar alguma lassidão da censura.

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No catálogo da exposição da obra gráfica de Abel Manta no Museu Bordallo Pinheiro em 1992 (publicado pela Câmara Municipal de Lisboa e, de longe, o melhor livro até hoje sobre a obra de JAM), José Carlos de Vasconcelos escreveu sobre o julgamento:

“Segundo a acusação, ‘o simbolismo dos cinco Castelos das quinas são voluntariamente substituídos pela leviandade de um flash de cançoneta; o símbolo da pátria é posto a latere de um background de opereta’. Sic!
Nas alegações, após meia dúzia de sessões de julgamento com depoimentos escritos, depois de salientar que o sentido do desenho era exactamente o contrário do que lhe queriam dar ‘e uma defesa da Pátria e do seu símbolo contra aqueles que o usurpam, dele se servindo em manifestações artísticas medíocres, ou pior ainda’, tive oportunidade de dizer:
‘Este não foi o processo de João Abel Manta, mas o processo dos seus próprios denunciantes, da censura, do fascismo, de quem pretende impedir toda a forma livre de expressão, nesse caso através da linguagem específica do cortoonismo (…) Um processo que felizmente chegou até este tribunal e que permitira à justiça a absolvição do artista (…) sendo a única sentença condenatória, na consciência de todos os homens livres, a do regime tirânico que trouxe para o Banco dos réus um grande artista e um cidadão como João Abel Manta’.
O Tribunal era um tribunal comum, e não de excepção como o Plenário, e João Abel foi de facto absolvido, absolvição que a Relação de Lisboa confirmou. O processo serviu para lhe dar ainda mais notoriedade, näo obstante as notícias do julgamento serem quase integralmente proibidas, e para atiçar contra ele, com ímpeto redobrado, a maquina censória.” (José Carlos de Vasconcelos, “A Grande Arte de João Abel Manta”,  in João Abel Manta – Obra Gráfica, CML, Lisboa, 1992, p. 49).

Era o regime a implodir em ridículo, permitindo brechas no bloqueio à cobertura pela imprensa do processo que revelavam os sinais dessa implosão e as provas desse ridículo, e tentando ocultar uma impiedosa perseguição censória numa aparente leveza de processos (não julgando o cartoonista no Tribunal Plenário – que condenara duramente os arguidos em processos semelhantes na década anterior – mas num tribunal comum). Menos de um ano depois, o Estado Novo desabava finalmente, para dar lugar a um “novo” regime que, à imagem do anterior, parece manter uma relação confusa com a bandeira nacional.

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Controlo terrestre chama major Tomás…

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Estes são detalhes da capa que compus para a antologia de contos de ficção científica Mensageiros das Estrelas, publicada pela Fronteira do Caos e que teve já um pré-lançamento na Faculdade de Letras de Lisboa no final de Novembro passado. (Para os interessados, haverá ainda um novo lançamento a 3 de Março, no teatro Rivoli do Porto, inserido na programação do Fantasporto). Além da capa, compus quatro separadores e um spread para o Índice.

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Tratou-se de um exercício de recuperação de uma certa forma de ilustrar a ficção científica “de fora” do género, ou seja: em vez da ilustração naturalista “pulp” ou associada à “Golden Age” da FC dos anos 30 aos anos 50 (e ainda a matriz do que se faz na ilustração de FC de há quarenta anos a esta parte), e porque, muito simplesmente, não sou um “ilustrador” ou pintor, impunha-se o recurso essencialmente à selecção, montagem e “colagem” de elementos de heteróclita proveniência (catálogos de ferramentas e produtos industriais e manuais de astronomia do século XIX, desenhos de Ernst Haeckel de diversa fauna e flora marinha, parafernália da Era Espacial como fatos dos primeiros cosmonautas americanos e soviéticos, etc), aos quais não faltaram aportações nacionais como detalhes das estruturas fabris da CUF dos anos 5o, o rosto de um jovem D. Carlos dentro de um capacete da tripulação da Soyuz dos anos 70 ou a fachada da Faculdade de Letras de Lisboa do arquitecto Pardal Monteiro. Em suma: algo que pudesse ser publicado numa qualquer edição “new wave” no final dos anos 60 ou início dos 70, sobretudo pela assunção dessa figura perdida da iconografia do “futuro” e hoje tão datada e característica desses anos como a própria “corrida espacial”: o astronauta, em particular o astronauta “perdido” ou “enlouquecido” ou morto em pleno vazio sideral.

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Talvez mais até do que desses modelos “new wave”, este tipo de exercício lúdico deliberadamente fora dos padrões iconográficos “comerciais” do género aproxima-se, por exemplo, do que faziam as edições checas dedicadas à ficção científica nos anos 60, como este Labyrint, antologia de contos (com uma bizarra inclusão de Jorge Luis Borges ali no meio de nomes da Golden Age da FC americana), publicada pela SNKLU de Praga em 1962, e ilustrada, entre muitos, por Adolf Hoffmeister ou Zdenek Seydl (na colagem deste, em cima, é visível até uma gravura oitocentista de uma engenhoca que acabei também por usar), ou então das capas e colagens de Daniel Mroz para algumas edições de livros de Stanislaw Lem, como as de Polowanie (A Caça, 1965) ou Bezsennosc (Insónia, 1971).

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“Seriam bons se…”

No momento em que preparo para a revista LER uma recensão ao próximo volume da Colecção D da INCM (com direcção editorial de Jorge Silva da Silvadesigners!), um volume dedicado ao polivalente Paulo Guilherme (1932-2010), “arquitecto, cineasta, escritor, pintor, ilustrador, designer de livros, de interiores, de selos, de moedas, dono e decorador de clubes nocturnos”, encontro por acaso numa feira mensal de velharias um exemplar de A Noite que Fora de Natal de Jorge de Sena, publicado pelos Estúdios Cor em 1961. Num formato compacto (19 x 12 cm, 40 páginas), tratou-se de uma edição especial, um “brinde” de Natal oferecido pela editora aos leitores e aos agentes do mercado, coisa que se repetia e se repetiria anualmente até o final da década: pedia-se um conto inédito da gaveta (ou um original escrito ad hoc) a um autor do catálogo da editora e a um ilustrador uns três desenhos (incluindo o da capa). No caso, calhou precisamente a Paulo Guilherme a ilustração deste conto de Jorge de Sena (que publicara já nos Estúdios Cor as Andanças do Demónio em 1960, e incluiria o conto no volume Novas Andanças do Demónio de 1966).

Os três desenhos de Paulo Guilherme que acompanham a plaquete demonstram uma execução essencialmente linear, de traço escorreito e depurado, sem quaisquer notações de meios tons com recurso a hachuras ou qualquer outra forma gráfica. Faltando-lhes talvez a capacidade expressiva e de estilização “económica” no desenho que algumas das suas mais conhecidas capas exibem (as de Manhã Submersa de Vergílio Ferreira, Filhos da Trevas de Morris West ou A Gata de Collette), são, ainda assim, próximas, no estilo minucioso da linha, a algumas capas para livros de Henry Troyat publicados pela Clássica no início da década de 1960 (do mesmo Troyat de quem Paulo Guilherme faria muitas capas, incluindo a de Ruína cuja edição me lembro de ver entre os livros do meu pai nos anos 70). Enfim, nada a apontar, dir-se-ia: um trabalho limpo e profissional. Contudo, na “Nota” relativa ao conto publicada na edição das Novas Andanças (e que consultei na edição conjunta dos dois volumes Antigas e Novas Andanças do Demónio, uma publicação póstuma de 1981 com a chancela do Círculo de Leitores), Jorge de Sena lança dúvidas precisamente sobre a concordância dos desenhos com o texto. Dúvidas legítimas de autor ou marcadas pela inevitável subjectividade a que não escapam nem (ou sobretudo) os autores, ei-las nas palavras de Sena:

Foi publicado pela Editora Estúdios Cor, de Lisboa, como ‘brinde’ de Natal distribuído à crítica, seus clientes e amigos, em Dezembro de 1961, numa plaquete ilustrada com desenhos que seriam bons se estivessem de acordo com o conto” (pág. 233).

Tentando a arriscada posição de advogado de defesa do ilustrador (sobretudo perante o peso e a autoridade de Sena, alguém que, nos seus melhores contos – como por exemplo “Super Flumina Babylonis” destas mesmíssimas Novas Andanças – revelava uma enorme capacidade de “imaginar”, de sugerir imagens, por vezes complexas, através das palavras), proporia à consideração o primeiro dos três desenhos do pequeno livro, concedendo que os outros dois poderão não ser merecedores de uma tarefa tão delicada. O desenho “ilustra” a cena em que Marco Semprónio, numa sala do palácio imperial de Roma, observa um escravo que Nero, velho e caprichoso, acabara de matar por impulso.

Eis o excerto do conto com o qual a imagem terá mais directa ligação:

“O olhar vagueou-lhe do rosto envelhecido do César para o escravo também nu que, em frente deles, pendia, pelos pés, de um varão de ferro, com as pontas dos dedos a roçarem de leve o mármore do pavimento. Mais uma vez Marco Semprónio verificou que um corpo de homem, assim suspenso e exangue, tinha uma beleza estranha que não teria noutras circunstâncias, por belo que fosse. E aquele era-o. […]  Apurando a vista, examinou-o minuciosamente, e deteve os olhos no pequeno golpe no pescoço, de onde, escorrendo em fio pela cabeça acima – sorriu da inversão dos termos que a suspensão impunha — , o sangue pingava escuro para uma bacia de prata entre as mãos pendidas. Um instante apenas, meditou em porque esquecera a bacia, a não a vira quando se sentara, mas às mãos, mais nada. Por certo, as mãos pareciam vivas, e é que estavam ainda vivas. Sentiu um saboroso arrepio, uma saudade antecipada e agradável daquelas mãos que morriam. Suspirou.” (A Noite que Fora de Natal, Estúdios Cor, Lisboa, 1961, p. 15-16)

Tenho de confessar que este desenho de Paulo Guilherme (que aparece na página 17) consegue, para mim pelo menos, traduzir esse misto de admiração “pagã” do corpo, por parte de Marco Semprónio, e da estranheza com que o facto de estar a ver um quase-cadáver mancha essa apreciação da beleza física (a fronteira entre o fim do paganismo – Semprónio começa por ouvir a “notícia” da morte do “Grande Deus Pã” da boca de um marinheiro – e a ascensão do Cristianismo – Saulo de Tarso, depois canonizado como São Paulo, é o velho amigo do cônsul romano que o visita no final do conto – constitui precisamente o contexto histórico e cultural da história). Na relação entre esta imagem e este excerto podemos, aliás, encontrar um eco daquela velha máxima da estética aristotélica segundo a qual a mimesis (a base de todas as actividades ligadas à experiência estética do mundo, através da reprodução ou imitação deste) teria um tal poder de transfiguração que nos permitia apreciar a “beleza” na recriação de coisas que nos causavam repulsa quando experimentadas em primeira mão: ou seja, poderíamos achar “bela” a representação pictórica de um cadáver (ou a representação teatral de um assassinato), ao contrário do que sentiríamos ao vermos realmente um cadáver ou alguém a ser morto.

Eis, então, a minha (quiçá insensata) defesa do ilustrador Paulo Guilherme neste “caso”, com as devidas desculpas aos “senianos” inveterados por considerar que, em pelo menos um dos três desenhos, o autor terá sido expedito demais no duro julgamento que proferiu.

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Iconografia pachecal

Luiz Pacheco visto, respectivamente, por João Rodrigues em 1964 (in Jornal de Letras e Artes), Benjamim Marques em 1965 (o “grupo do Gelo”, em que Pacheco é o segundo a contar da esquerda, in Diário de Angola), Henrique Manuel em 1977 (in Textos Malditos, edição Afrodite/Fernando Ribeiro de Mello) e Manuel João Ramos em 1992 (in revista K). As duas primeiras imagens são retiradas da biografia de Luiz Pacheco Puta que os pariu! de João Pedro George (Tinta da China).

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No labirinto de Maurice Sandoz

Descoberta recente, e totalmente casual. Maurice Sandoz, filho do fundador da famosa empresa farmacêutica homónima, suicidou-se em 1958 aos 66 anos, em Lausanne, a pouco mais de 100 quilómetros da sua cidade natal, Basileia. Apesar desta aparente stasis geográfica, Sandoz foi um viajante compulsivo, além de demonstrar talento na química e na música. Mas foi como escritor no género fantástico que o seu nome ganhou notoriedade, para a qual as colaborações de Salvador Dali na ilustração de alguns dos seus livros terão tido certamente papel de grande relevo. Hoje em dia, o nome de Sandoz está no orgulhoso panteão dos escritores esquecidos, e são precisamente os desenhos de Dali que poderão atrair a ele leitores incautos. Foi o meu caso.

Acontece que Sandoz teve três livros seus publicados em Portugal, todos pela mesma editora, uma certa Editorial Organizações: O Labirinto (1954), Recordações Fantásticas e Três Histórias Singulares (1957) e O Limite (1957). O Labirinto tinha sido adaptado ao cinema por William Cameron Menzies (o grande director de arte de Gone With the Wind e realizador do clássico de Ficção Científica Invaders from Mars) um ano antes da primeira edição portuguesa, mas terá sido certamente a ligação de Salvador Dali (então no auge da sua fama americana) com estes textos a determinar e a justificar a sua tradução e publicação. De resto, nada, nem um prefácio, nem uma introdução nestas edições nacionais nos informa sobre esse súbito interesse em Sandoz, que se esfumou de seguida e até hoje.

Apesar da impressão em “papel especial, de fabrico português” (o que permitiu imprimir texto e imagens no mesmo papel, abolindo assim a diferença táctil entre texto e extra-texto), a reprodução das capas que Dali tinha feito para as edições originais americanas da Doubleday (Prova A, B e C), com a sua tipografia desenhada e minuciosamente interligada com o desenho, foi uma impossibilidade óbvia (apenas a edição de O Limite ostenta, e apenas na página contígua à folha de rosto, a parte superior da ilustração de capa da edição americana de On The Verge, de 1950, devido à separação do bloco tipográfico). Estas edições portuguesas carecem assim do impacto flamejante das capas americanas, mas isso são significa propriamente uma perda: o excesso visual dessas capas não condiz, de facto, com o estilo sereno, coloquial, intimista do autor, um herdeiro sofisticado e levemente irónico das histórias de fantasmas de século XIX, muitas delas situadas nas pacatas vilas e cidades suíças (como “A Aparição”, história de Recordações Fantásticas, em que o narrador se cruza com o fantasma de Goethe em Zurique). Alguns dos desenhos de Recordações Fantásticas, ainda assim, a tinta-da-china e plenos de contrastes, parecem-me perfeitos no tom de inquietação que acrescentam aos textos, sobretudo a cabeça cortada que ilustra “Um crime ao retardador”, a mão peluda que ilustra o conto homónimo (um dos melhores deste livro) ou a fabulosa múmia para o conto “A Recordação de Hammam Meskoutine”.

As sete ilustrações desta edição que possuo podem não corresponder à totalidade das que Dali fez para a edição americana, pelo que pude averiguar. Questão de direitos de reprodução? Ou teria a censura algo a ver com isso, como no caso específico da ilustração em baixo e que está ausente da edição portuguesa (retirada daqui)?

As ilustrações de O Labirinto (três amostras de spreads em baixo) diluem, literalmente, a ansiedade e inquietação das de Recordações pelo recurso à aguada para os meios-tons.

Numa altura em que, em Portugal, o Surrealismo (que arrancara “oficialmente” em 1949, com a primeira exposição colectiva)  procurava impor-se e sobreviver à estagnante cena cultural portuguesa, esta tripla edição de um autor suíço desconhecido ilustrado por um dos nomes fundadores do Surrealismo (mas que fora renegado entretanto pelos seus companheiros de geração, em particular André Breton, que o apelidava de “Avida Dollars”) deixa mais questões do que as que poderia deslindar.

Prova A

Prova B

Prova C

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