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Sérgio Guimarães: foi curta a festa

Dez anos depois do 25 de Abril, num texto publicado no catálogo de um ciclo da Cinemateca ao tema dedicado, Jorge Molder referia-se ao paradoxo de a imagem mais popular e difundida nos dias da revolução, a imagem que acabou por identificar internacionalmente essa mesma revolução, ter sido uma imagem feita em estúdio, com os “tiques” habituais de estúdio, e não uma imagem feita na rua, “num momento em que tudo se passava na rua”. Em 1984, Sérgio Guimarães, o autor desse poster de que se fizeram inúmeras adaptações a outros formatos (tais como os dois postais que encimam este texto), estava longe das rodas onde se discutia e se fixava a sua aportação iconográfica à revolução que cumpria então a primeira década: editor falido, fotógrafo esquecido de quem fazia as listas de “referência”, tendo perdido até o estúdio que fora de ponta na fotografia publicitária na década anterior, sobrevivia fazendo trabalho como freelancer. Morreria em 1986, aos 53 anos, sem que muita gente conseguisse associar o seu nome ao poster do “menino com o cravo na G3”, e menos gente ainda que o ligasse a um projecto editorial de poucos meios para tão ilimitada (ou insensata) ambição mas de algum inegável arrojo.

Se há figura que pode personificar a volatilidade desses anos de processo revolucionário, a rapidez com que se consumiram carreiras entre a chegada das chaimites ao Carmo e a despedida dos últimos resquícios da utopia no fim da década (sendo a subida da AD ao poder em 1980 o claro sinal dessa despedida), é a de Sérgio Guimarães. Sobre o seu trabalho polifacetado não existe qualquer estudo, não foi publicada qualquer monografia, e, para uma vida riquíssima de aventuras e convívios e vivida no fio da navalha como a sua, perdeu-se sobretudo, e de vez, a possibilidade da escrita de uma biografia. Há apenas pontas soltas, deixadas por quem o conheceu, aqui e ali. Há muito caído de um cânone de referência (editorial, artística, etc) onde, se calhar, nunca esteve verdadeiramente, é um daqueles nomes que aparentam ser culturalmente “irrecuperáveis” e que, por isso mesmo, creio que deveriam ter sido já objecto de uma tentativa de recuperação (se bem que, neste caso, aos dotes de um investigador inspirado seria necessário juntar o talento de um milagroso ressuscitador de reputações).

Mais do que a fotografia publicitária, que ele praticava já antes de 1974 (de que aqui mostrei uma prova) e que alimentou esse poster icónico, o nome de Sérgio Guimarães, para alguém da minha geração (crianças muito novas por altura da Revolução), era o que aparecia ao fundo das capas de algumas bizarras edições de banda desenhada desencantadas em feiras do livro ou fundos de livrarias, edições de gente de topo nos anos 60 e 70 (Crepax, Pichard) que, por incrível que nos parecesse, tinha sido publicada por cá por um tipo de quem, nas décadas de 80 e 90, nada se sabia. Às suas edições políticas (sob a marca Mil Dias), também ubíquas por essas feiras de velharias, cheguei mais tarde (e sobre elas escrevi já aqui), mas as Edições Sérgio Guimarães, fruto da súbita liberdade de tudo publicar que a Revolução trouxe e que se extinguiram por 1977, e diga-se o que se disser acerca da húbris que o seu programa editorial revelava nas badanas (uma vontade expressa de publicar cá todo o catálogo da melhor BD adulta que Losfeld publicara em França), conseguiram ainda uma curiosa publicação “articulada”: a da História de O de Pauline Réage (publicando também o livro-entrevista desta com Régine Deforges, O Disse-me, ambos traduzidos por Orlando Neves) com a da adaptação a BD que Guido Crepax fez do romance, ambas em 1976, uma articulação que passou pela comunhão do design tipográfico da capa entre a edição literária e a da BD, e em que naquela a sobrecapa revelava o estilo inconfundível do fotógrafo do poster revolucionário.

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Dobrada a nova década, tudo isso se esfumara. O homem que, em 1982, escreve a missiva inédita (que transcrevo em baixo na sua quase totalidade, e com a ausência de maiúsculas do original que se encontra na Torre do Tombo) ao então Ministro da Cultura do governo AD, Lucas Pires, está, para além da sua carreira errática, a descrever a de muita gente do meio (publicidade, fotografia publicitária, edição, etc) apanhada pelo tsunami económico da década posterior à Revolução. Relato febril e condensado de uma vida profissional em iminente colapso, tem a cadência também da história de um náufrago, uma de muitas histórias “trágico-marítimas” no revolto oceano de falências e carreiras arruinadas desses anos. Para Sérgio Guimarães, a festa fora curta e acabara já bem antes desta carta.

sérgio guimarães
porto 1933
liceu d. manuel II
escola de belas artes
teatro experimental do porto
participação como actor em “morte de um caixeiro viajante”
subida a paris para
trabalhar em arquitetura
e maquettes de arquitetura
incidentalmente criador de toda a técnica hoje utilizada em maquettes
regresso a portugal

para trabalhar 5 anos com vasco morgado
como secretário da empresa
tradutor de peças

e outros trabalhos criativos

neste interim li tudo que havia para ler
da cultura francesa

desde o sartre, proust, ponson du terrail, zola, etc
e mais de 5000 peças de teatro
a seguir cultura em língua inglesa
passando pelo faulkner, green, maugham, joyce
e policiais e espionagem evidentemente
de novo subida a paris
para trabalhar em fotografia e artes gráficas

regresso a portugal em 1965
para ser fotógrafo

25 de abril criação do poster 25 de abril
conhecido em todo o mundo e portugal
entrevistado por diversos jornais e revistas estrangeiras
mas em portugal nunca veio (o poster) num jornal português

acaba o trabalho de publicidade
e tornei-me editor

com duas linhas de editoras
uma de sexo

que editou “os prazeres do sexo” (entre outros)
distribuídos pela quadrante
que faliu

e me deve 6000 contos que não paga
outra editora política
(que editou os grafitti)
e que a cdl matou à nascença
e que causou mais de 10.000 contos de prejuízo

retorno à publicidade
com estúdio na fontes pereira de melo
onde facturava em 1978: 400 contos/mês

alargamento da actividade em novo estúdio
e facturava-se 700 contos/mês

venda deste novo estúdio
para pagar a credores das editoras
ao mesmo tempo que descubro
que sou criativo
e aí
começa a faltar o trabalho
na medida em que a n/qualidade aumenta
(um estúdio como o nosso custava há 2 anos de aluguer diário,
em paris, sem fotógrafo, 200 contos, de acordo com revista zoom)

entretanto embora reconhecido como de longe
o único fotógrafo português com qualidade internacional
estou ignorado pois sou na realidade um outsider
que não pertence às panelinhas da informação lisboeta
visto que sou do porto

e embora colega de carteira no liceu d. manuel II
do falecido chico sá carneiro

nunca lhe pedi nada
pois as n/opções políticas eram diferentes
peço a este governo
semi formalmente

pois continuo a acreditar
que no se pode desprezar a cultura
sobretudo a visual
e dado que a banca não encara seriamente esta actividade
ja aceitei sinal pelo trespasse das instalações
que valendo mínimo 6000 contos
me ofereceram 1600!!!

o equipamento que vale mais de 20.000 contos
será entregue à banca
pois faz parte dum penhor mercantil
que tornou possível as editoras

e que embora eu já tenha pago à banca
mais de 10.000 contos dos prejuízos das editoras

não me emprestam mais um tostão

este estúdio tem uma capacidade de facturação mensal
de mais de 1.200 contos

e existe esse mercado
mas este estúdio foi criado em 1969
com a miserável quantia de 7.000$00 (verdade)
mas agora não pode subsistir sem fundo de maneio
e tem estado a funcionar com auxilio de amigos
que me emprestaram a esta data cerca de 3000 contos

temos fotografias em arquivo
que permitem varias exposições de fotografia diferentes
com uma qualidade nunca vista em portugal

desde natureza mortas, paisagens, nus, abstrações, trabalho, etc
(cerca de 4000 fotos do alentejo)

lamento não poder fazer este memo mais curto
mas trata-se de 15 anos de trabalho sem férias e fins de semana
para poder pagar os equipamentos e a banca

insisto em que as grandes empresas e sobretudo as estatizadas
nunca me compram nada

pois só estão interessadas em pagar pouco
desprezando a qualidade da imagem

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Algum (necessário) contexto cubano

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Ainda sobre a muito importante exposição na galeria ZDB de cartazes cubanos da OSPAAAL e de alguns exemplares do órgão desta agência de propaganda, a Tricontinental, eis um exemplo do material de “contexto” que, como escrevi antes, creio que falta a essa exposição. Trata-se do número da revista Cuba Internacional de Novembro de 1972, onde se publicou um artigo sobre a escolha do vencedor do 5.º Salão Nacional de Cartazes. Como membro do júri estava o que era já então considerado um dos mais proeminentes designers cubanos, e precisamente o director de arte da Tricontinental (sê-lo-ia até 1975), Alfredo Rostgaard (1943-2004), responsável por muitas das melhores peças que estão expostas na ZDB (e muitas das que não estão). É um artigo interessante, até na surpresa do tom moderado e sereno com que se analisa a suposta existência de uma “escola cubana” do cartaz (algo que, hoje, é quase indiscutível, sobretudo no período que vai de 1959 a finais dos anos 70), concluindo o autor que, apesar da qualidade da produção, os cartazes feitos da ilha constituiriam mais uma “síntese” e um ponto de “confluência” das influências polaca, japonesa e americana.

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Rostgaard, cuja obra, em 1972, exposições internacionais em Londres e Amesterdão tinham já dado a conhecer, chegou a gravar em 2001 um depoimento sobre essa “escola cubana” e em particular sobre o trabalho para a Tricontinental, incluindo os inúmeros cartazes que, dobrados, seguiam dentro dos exemplares da revista enviados para todo o mundo. As suas observações sobre a produção desses cartazes são riquíssimas de detalhe técnico.

Seria conteúdo deste calibre que, como material de contextualização, teria, na minha modesta opinião, dado mais profundidade à exposição na ZDB se tivesse sido posto à disposição dos visitantes, até mesmo a reprodução dos textos de Edmundo Desnoes sobre a questão da estética gráfica cubana do período revolucionário (como o que foi publicado no catálogo da exposição no Stedelijk em 1971) e o seu cotejo com as escolas de referência como a polaca (um curto texto publicado na revista cubana Diseño em 1970).

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[Nota paralela, e prova da tangente que esta produção de propaganda política cubana fez à história portuguesa no contexto na Guerra Colonial (o que apenas confere uma importância acrescida a esta mostra): antevendo o Ano Internacional do Livro (que este número de Novembro desse ano comemora precisamente), um artigo de um número do final de 1971 da Cuba sobre a situação da edição e da leitura na ilha fora transcrito pelo Notícias da Amadora para ser publicado no dia 8 de Janeiro de 1972, o que o Exame Prévio não autorizou, cortando-o na totalidade.]

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Chegam os cubanos

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Seis anos depois da excelente exposição dedicada ao trabalho de Emory Douglas para o Black Panther Party, a galeria ZDB (Zé dos Bois) em Lisboa entra de cabeça na divulgação do quase inesgotável manancial da propaganda cubana, no caso para a agência OSPAAAL (Organización de Solidaridad de los Pueblos de África, Asia y América Latina) entre 1960 e 1980, o pico da influência político-militar cubana no terceiro mundo, na qual a qualidade desta propaganda teve um papel não despiciendo.

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Se a ligação de uma para outra exposição é lógica e pertinente (Douglas fez alguns belos cartazes para a OSPAAAL, sendo o único designer/artista gráfico norte-americano convidado para tal), e o singelo e arejado espaço da ZBD volta a ser bem aproveitado para fazer brilhar estas peças, há pequenas coisas que, creio, não se pode deixar passar no caso de uma exposição que, como esta (e ao contrário da de há seis anos), se insere numa programação cultural oficial, num destes “eventos” já ubíquos por toda a Lisboa e durante todo o ano, no caso o da Capital Ibero-americana de Cultura 2017. Não há qualquer informação escrita junto às peças (o orçamento disponível – que não creio ter sido baixo, dados os apoios que o cartaz anuncia – não deu para umas legendas em vinil na parede e em papel nas vitrinas?), e a folha de exposição tem muito pouca. Não há nem uma reprodução de um destes cartazes à disposição do visitante para comprar e levar para casa (e se há cartazes que foram feitos para serem “levados” e disseminados são estes). Faltaram à chamada cartazes histórica e esteticamente importantes, como o do “Dia da Guerrilha Heróica” de Elena Serrano (1968), o “Cristo guerrillero” de Alfredo Rostgaard (1969) ou um dos cartazes de Olivio Martínez para a campanha da colheita dos 10 milhões de toneladas de cana de açúcar (1970). Para além dos exemplares da Tricontinental, nem um livro ou exemplar de outras revistas ou jornais cubanos do período (Bohemia, Cuba, o influente suplemento cultural “Lunes de Revolucion” do jornal Revolución, etc) que contextualizasse esta produção. Nem uma fotografia dos artistas gráficos durante aqueles anos (alguns dos quais, é certo, saíram de Cuba e poderão ter-se tornado “personae non gratae”), ou dos seus ateliers, ou das gráficas, tanto em offset (um luxo em Cuba por então, reservado quase em exclusivo para estes cartazes de propaganda internacionalista) como em serigrafia, e de quem lá trabalhava. (Caso a ZDB queira e consiga repetir a proeza com os cartazes do ICAIC – o pináculo da escola gráfica de Cuba –  espera-se, pelo menos, que corrija o que ficou apontado atrás.)

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De resto, a exposição vale mesmo pela beleza destas peças (com uma surpresa pelo meio: a maqueta de um painel “tridimensional”), entre o aparente “naif” e o sofisticado (alguma da melhor arte Pop e mesmo psicadélica dos anos 60 foi produzida em Cuba), feitas com poucos meios ou quase nenhuns e a milhas de distância pastoso “realismo socialista” que a China e a URSS impunham como estilo de representação visual na propaganda impressa nos países da sua esfera de influência (em Testimonios del Diseño Gráfico cubano 1959-1974, uma edição de 2010 coordenada por Hector Valverde, César Mazola Álvarez conta que uma exposição de cartazes e livros cubanos que estava para ser inaugurada em 1969 em Tirana, capital da Albânia, “no se pudo montar porque el país receptor determinó que los carteles y libros no eran representativos del realismo socialista”). Quase cinquenta anos depois da “descoberta” dos cartazes cubanos em Londres, numa exposição na Ewan Phillips Gallery em 1968 (tendo o museu Victoria and Albert arrebanhado imediatamente todo o conteúdo da mesma, o que explica, por exemplo, que do livro de John Barnicoat de 1970 Posters: A Concise History, da colecção “World of Art” da Thames and Hudson, constasse já a reprodução de um cartaz cubano), a ZDB trouxe finalmente (e não digo pela primeira vez porque não sei se é de facto) uma parte de leão da “grafica cubana” a Portugal com uma exposição de material importante (até historicamente, dado o envolvimento de Cuba nas lutas de libertação nas ex-colónias portuguesas: Angola, Moçambique, Guiné e a figura de Amílcar Cabral, por exemplo, foram o objecto de muitos destes cartazes).

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A “Mosca” ressuscitada

Para coincidir com a exposição sobre a Afrodite na Biblioteca Nacional, produzi dois desdobráveis/posters em papel de jornal (60 x 50 cm abertos, 30 x 25 cm fechados) onde, além de um texto genérico sobre a mesma e uma bibliografia da Afrodite, são reproduzidas as páginas centrais do suplemento “A Mosca” do Diário de Lisboa de 6 de Dezembro de 1969 (com uma reportagem sobre o lançamento da Antologia do Humor Português na galeria Quadrante) e a primeira página do mesmo vespertino da edição de 16 de Dezembro de 1971, com a célebre foto do “editor na banheira”. É, ao mesmo tempo, um memento de duas performances históricas do “Dalí de Lisboa” e uma homenagem a um jornal desaparecido onde o editor e os seus livros tiveram sempre um eco especial até à Revolução de 1974, tanto na “Mosca” como no “Suplemento Literário”. Adquirem-se em conjunto e, para quem não tem possibilidade de ir à BN, podem ser comprados aqui.

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“Neste momento o que realmente interessa é esta alegria”: quando os partidos não tinham vergonha dos seus símbolos

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Num momento em que a confiança popular nos partidos políticos é tão baixa que, nos (poucos) cartazes que começam a aparecer nos espaços públicos anunciando as eleições autárquicas, os logos e outra identificação gráfica desses partidos (em especial os do chamado “arco governativo”: PSD, PS e CDS-PP) são quase imperceptíveis ou completamente omitidos, é curioso olhar para trás, para o ponto simetricamente oposto neste ciclo eleitoral. Dois dias antes das primeiras eleições legislativas após a Revolução de 1974, que decorreram precisamente a 25 de Abril de 1975, o Diário de Lisboa publicava os depoimentos de “dois artistas gráficos e um pintor professor das Belas-Artes: Sebastião Rodrigues, João Câmara Leme e Luís Filipe Abreu” sobre esse então novíssimo fenómeno visual nas cidades portuguesas: o cartaz político ou, mais precisamente, o cartaz partidário.

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A imagem que ilustra o texto (intitulado “Murais em vez de paredes”) é perfeitamente clara, por contraste, quanto ao estado actual de quase “invisibilidade” identitária nos cartazes de campanha: as fotografias dos três deponentes sobrepõem-se a uma amálgama literal de cartazes colados numa parede de uma cidade nessa campanha de 1975, da qual ressaltam apenas os símbolos visuais dos partidos (o punho erguido do PS, a foice e o martelo do PCP e dos partidos na sua órbita, a seta ascendente “à direita” do PSD, etc).

A conversa (por constantes referências dos deponentes a respostas dos outros, mais parece terem estado os três reunidos do que terem gravado os seus depoimentos em separado) girou, essencialmente, em torno da então absoluta novidade que era o efeito visual da massa de cartazes colados caoticamente no ambiente urbano e a sua conjugação com o outro meio de propaganda política mais recorrente então, o mural (ou até o “grafitti”), não se analisando a campanha partido a partido, talvez por algum pudor em horas de reflexão nas vésperas do plebiscito (ainda que Sebastião Rodrigues refira que, dessa amálgama quase indistinta, sobressaiam “símbolos mais constantes e uma ou outra palavra”, e que “a foice e o martelo têm uma leitura clara e imediata”), e num contexto em que eram vistos como claramente mais importantes a “acumulação” e a “repetição” do que a qualidade individual de cada cartaz (Luís Filipe Abreu). Ainda assim, em jeito de remate, Câmara Leme não se coibiu de apontar o “baixo nível gráficos dos cartazes” e a “falta de critério de afixação”; o importante, contudo, era uma mobilização colectiva e uma comunicação política que, segundo ele e Luís Filipe Abreu, se concretizaram. Sebastião Rodrigues termina com uma nota de nítido optimismo: essa “falta de critério” apontada por Câmara Leme significava apenas que a elaboração e a fixação dos cartazes tinham fugido a “todos os esquemas tradicionais”, fuga que os tornou, no seu conjunto aparentemente caótico, numa “coisa viva e participante”.

“Neste momento o que realmente interessa é esta alegria”, resumira já ele umas linhas antes. Que ano esse, o de 1974/75, em que a palavra “alegria” se usava sem uma sombra de ironia num depoimento sobre uma campanha eleitoral…

(A transcrição do texto completo do artigo pode ser descarregada aqui).

(Addendum: excerto do filme Revolução de Ana Hatherly (1975), que funciona como perfeita ilustração desta conversa a três.)


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Amesterdão, 1971

Se se metessem numa máquina do tempo e apontassem a um período de “ouro” da Europa do pós-II Guerra Mundial, poderiam dar por vocês ao fundo destas escadas, no Stedelijk de Amesterdão, a olhar para cima, onde veriam (como se vê na foto deste volume) um painel de Raúl Martinez. Isto significaria que teriam ido parar a 1971, quando, de 7 de Maio a 6 de Junho, o museu exibiu a primeira grande mostra mundial de cartazes cubanos (no verso da capa pode ver-se uma foto que mostra o impacto dos enormes cartazes tipográficos de Olivio Martinez Viera numa das salas do museu durante essa exposição). Com design quase “invisível” de Wim Crouwel, prova de impermeável racionalismo suíço (espartano mesmo), este pequeno livro (publicado por ocasião da Europalia ’71) é o registo de uma década brilhante do Stedelijk, em que o museu holandês se tornou referência nos meios da arte contemporânea pelo seu rigor e, ao mesmo tempo, pela sua abrangência, albergando uma colecção imponente de cartazes, sendo a exposição dos cubanos um inesperado e triunfante coelho tirado da cartola (aproveitando a mais que certa renitência do muito “oficial” MOMA de Nova Iorque, na grande exposição de cartazes de 1968, em mostrar coisas saídas de Cuba por aqueles anos). O catálogo desta exposição dos “cubaanse afiches” foi outro dos muitos que Crouwel concebeu para o museu a partir de 1962, quando herdou a “pasta” de Willem Sandberg, que fora o director e designer gráfico residente desde 1945.

Como exemplo desse trabalho para o museu, o catálogo da exposição de William Klein no Stedelijk em 1967 é uma prova do eclectismo da programação e da qualidade gráfica que Crouwel garantiu. Num formato ligeiramente inferior ao A4, com 24 páginas agrafadas, a obra polimorfa de Klein (fotografia, sobretudo, mas também ilustração, design gráfico e cinema: em 1966, saíra a sua primeira longa metragem, Who Are You, Polly Magoo?) é apresentada em generosas amostras num volume essencialmente visual e monocromático, com duas cores na capa (mesmo a biografia é tratada como uma sequência de ilustrações de Jean-Michel Folon). A capa é brilhante pela escolha de uma imagem que remete para as suas célebres capas tipográficas da série de livros sobre cidades e as capas que fez para a Domus, mas que se revela, ligando capa e contra-capa no mesmo olhar, uma simples foto no estúdio do artista.

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Palavra e imagem, do MOMA à Gulbenkian

Outra pescaria nos alfarrabistas trouxe-me este curioso catálogo de uma exposição na Gulbenkian em 1972, mais uma prova (se preciso fosse) do papel crucial da fundação nesses anos na “actualização” do meio cultural de Lisboa. Trata-se, nada mais, nada menos, do que a vinda à capital portuguesa da famosa exposição do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MOMA) “Word and Image” que em 1968 tinha tornado “oficial” a entrada do cartaz no “templo” da arte contemporânea mundial. O catálogo original tinha sido concebido por Massimo Vignelli e Pieter van Delft.

Em rigor, o catálogo da Gulbenkian (de designer anónimo) trata-se de uma caixa de formato rectangular (245 x 95 mm aproximadamente) dentro da qual estão as “fichas” de cada cartaz, devidamente numeradas e remetendo para um pequeno caderno de 20 páginas que contém um texto de apresentação de Mildred Constantine, a comissária da exposição. (No seu obituário no New York Times de 13 de Dezembro de 2008, Steven Heller escreveu: “Her groundbreaking 1968 exhibition, ‘Word and Image’, was the first at the museum to consider seriously the major 20th-century posters in the Modern’s collection. The exhibition catalog, which she edited, is still an important document of poster history.”) O menor orçamento à disposição da exposição em Portugal ditou a impressão a preto, com a excepção da reprodução do cartaz Confection Kehl de Ludwig Hohlwein (e de uma segunda cor na capa) e uma solução engenhosa de “cortar” ao meio o plano quadrado do catálogo americano, criando assim estas “fichas” rectangulares.

Este acervo visual incluía as últimas “novidades” de 1968, “nobilitando” cartazes com grande saída no mercado de então, como os de Peter Max, e dando a descobrir a um público mais vasto a escola de cartazes psicadélicos de São Francisco (e o seu nome mais sonante, Victor Moscoso) ou a Pop exótica de Tadanori Yokoo. Os cartazes cubanos pós-revolucionários estão, contudo, ainda ausentes desta amostra. Apenas em Dezembro desse ano a Ramparts publicaria um artigo do seu director de arte, Dugald Stermer, sobre as artes gráficas cubanas desde 1959, até então desconhecidas do público americano. Stermer iria publicar uma monografia sobre os cartazes cubanos em 1970 (com uma memorável introdução de Susan Sontag) e nesse mesmo ano o Stedelijk de Amsterdão montaria a primeira grande exposição dedicada aos cartazes da ilha. (Em 1972, a ausência de cartazes cubanos de uma exposição em Lisboa teria, contudo, outras justificações, dado o contexto da Guerra Colonial e o apoio cubano aos movimentos de libertação na África portuguesa, em especial ao MPLA de Angola.)

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