
O texto em cima, de Fernando Assis Pacheco, foi publicado no Diário de Lisboa a 23 de Dezembro de 1975 a propósito do lançamento dos Cartoons. Assis Pacheco fora um dos jornalistas e colaboradores do DL cujos textos (mais os de gente como Luís de Sttau Monteiro ou Vitor Silva Tavares) tinham convivido com os desenhos de João Abel Manta nas páginas do vespertino desde 1969, um caldo de atrevimento e cosmopolitismo cultural e (sempre que possível) crítica política que dera para alimentar dois dos melhores suplementos da imprensa desses anos, o “Literário” e a “Mosca”. Mal sabia Pacheco que, depois desse livro, Manta apenas lançaria outro (ainda que esse “outro” tenha valido por uma carreira inteira) e que o número de livros sobre a sua obra gráfica empalideceria face à extensão, à complexidade e à importância histórica da mesma. (A data do artigo é importante também: um mês depois do 25 de Novembro, talvez Pacheco não adivinhasse que, para Manta, se esfumara muito do que o motivara e o fizera agarrar-se ao estirador a produzir cartazes, cartoons e colagens para a imprensa desde Abril de 1974).

Ao preparar (por amável convite de José Bártolo) os textos do volume dedicado a JAM na colecção “Designers Portugueses” que começou a ser lançada com o Público, para além da limitação natural no comprimento dos mesmos fui posto perante a decisão editorial de não incluir uma bibliografia, decisão que (independentemente de a aceitar ou não por princípio) acatei e entendi como perfeitamente lógica no contexto da produção de pequenos livros de referência essencialmente visual vendidos junto com um jornal diário, isto é, como objectos de consulta que não podiam (pelas limitações acima indicadas) aspirar a ombrear com o aparato habitual em monografias exaustivas. Isto não me impediu de reflectir sobre a questão essencial da relação da obra de JAM com a bibliografia que, ao longo dos anos, foi sendo produzida sobre ela (e à qual os meus textos agora se acrescentam): o facto de ela, essa bibliografia, carecer de um livro verdadeiramente crucial, axial, sobretudo no que toca a ler o que o próprio Manta pensou e disse sobre o seu trabalho gráfico.
Escrevi já aqui sobre o momento em que concluí ter passado há muito a ocasião de termos em mãos esse livro, pelo que não interessa agora alongar-me sobre isso. Muito simplesmente: creio que se José Cardoso Pires, o autor da curta introdução aos Cartoons (ou José Carlos Vasconcelos, o director d’O Jornal e, como tal, o editor desse livro), tivesse decidido sentar-se à mesa com JAM para uma entrevista sobre esse trabalho gráfico até 1975, e a entrevista tivesse acompanhado a edição, teríamos aí, sem dúvida, “o” grande livro sobre essa obra até então. No pico da sua forma intelectual, no calor desse ano ainda de “revolução em curso”, posso apenas imaginar que conversa não teria sido essa entre ambos. Não que tenham faltado bons exegetas depois, em livro ou na imprensa (Osvaldo de Sousa ou João Paulo Cotrim, Mário Dionísio ou João Medina), mas, no centro de tudo, está esse “vazio”. Uma interessante entrevista dada ao BD Jornal em 2005 e a que deu a José Jorge Letria no livro que analisei não o preenchem e, pelas suas lacunas (na primeira, onde, por exemplo, afirma que nunca fez um auto-retrato, quando são conhecidos pelo menos duas “aproximações” nos cartoons – um dos quais para a primeira prancha do Burro-em-Pé de Cardoso Pires, publicado no Diário de Lisboa a 6 de Outubro de 1971 e que é reproduzido no texto de Pacheco – e uma outra num desenho de 1958, “Retrato de Família”) ou pela deliberada e expressa vontade do entrevistado em não falar de outra coisa que não fosse a pintura (no caso da entrevista dada a Letria), até o reforçam.
Sem esse depoimento do artista, longo, intensivo, cronologicamente orientado, o depoimento que ele poderia ter dado nesse período de “reflexão” logo após o PREC (talvez em Londres, poiso comum a Manta e ao seu amigo Cardoso Pires, e onde, de resto, aquele preparou o grosso das Caricaturas Portuguesas), a exegese da obra gráfica de João Abel Manta ficará sempre dependente desta “cosedura” de várias peças de tecido, um “patchwork” de diversas leituras ao longo do tempo e de variada frequência (estando o pico desta frequência já distante, concentrado naqueles dois anos seguintes ao aparecimento do seu magnum opus de 1978). Veremos se a extraordinária qualidade técnica e estética dessa obra gráfica (transversal a toda ela, dos simples cartoons para os jornais aos cartazes ou às ilustrações de livros) resiste aos incompreensíveis hiatos na sua apresentação pública (a última exposição integral ocorreu em 1992, no mesmo Museu Bordalo de Lisboa que alberga esse espólio e que dele voltou a mostrar apenas um fragmento em 2008) e, sobretudo, ao avanço do tempo, que, se essa exegese não se encorpar e se os hiatos na sua exposição se mantiverem, poderá tornar os seus momentos mais críticos e decisivos (os cartoons e as ilustrações durante o marcelismo e os cartazes para as “campanhas de dinamização cultural” no PREC) de problemática compreensão (exemplo real: ainda há dias vi um desses cartazes de Manta para o MFA tomado por um cartoon satírico…). Termino um dos meus três textos do livro agora publicado afirmando que, apesar de o seu autor já não o querer fazer, a obra produzida por essa “máquina de imagens” (expressão que roubei a um artigo de José Luís Porfírio, de resto notável por cobrir em detalhe a exposição de 1992) continua o seu diálogo connosco. Esperemos que quem a tem à sua guarda o entenda.

Imprensa:
– ABELAIRA, Augusto. “As capas do JL” (Jornal de Letras, 28.04.1981, p. 11)
– BAPTISTA-BASTOS, Armando. “Onde é que você estava no 25 de Abril?” (Público, 24.04.1999, pp. 22-24)
– BOTELHO, Clara. “Entrevista a João Abel Manta: ‘Agora pinto. Desvairadamente'” (BD Jornal, n.º 5, Setembro 2005, pp. 11-14)
– DIONÍSIO, Mário. “Um outro Goya e algo mais” (O Jornal, 29.12.1978, p. 29)
– FRANÇA, José-Augusto. “João Abel Manta: obra gráfica” (Colóquio-Artes, n.º 93, Junho 1992, p. 67)
– MANTA, João Abel. “Uma carta de João Abel Manta” (Diário de Lisboa, “Suplemento Literário”, 07.01.1971, p. 5)
– MARQUES, Pedro Piedade. “João Abel Manta: um problema difícil” (Público, 02.05.2018)
— idem. “João Abel Manta, sempre” (Jornal de Letras, 07.11.2018, pp. 14-15)
— idem. “João Abel Manta: problemas, possibilidades, prazeres” (Jornal de Letras, 01.12.2021, pp. 20-21)
— idem. “João Abel Manta: artista da Revolução, antes e depois” (Seara Nova, Primavera 2022, pp. 24-28)
– MEDINA, João. “João Abel Manta ou o cinzento salazarista pintado a cores” (O Jornal, 19.01.1979)
– PACHECO, Fernando Assis. “Elogio natalício de João Abel Manta” (Diário de Lisboa, 23.12.1975, p. 2)
— idem. “Viva Manta!” (O Jornal Ilustrado, 28.02.1992, pp. 31-33)
– PORFÍRIO, José Luís. “João Abel Manta – a máquina de imagens” (Expresso, “Revista”, 29.02.1992. pp. 43-44)
– RAMOS, Artur. “A Relíquia: encenação e cenografia” (Gráfica 70, n.º 1, 1970, p. 32)
– SOUSA, Rocha de. “Virtudes e defeitos da mão” (Diário de Lisboa, “Suplemento Literário”, 11.06.1970, p. 3)
– VASCONCELOS, José Carlos de. “João Abel Manta: Cartoons que abalaram o fascismo” (O Jornal, 19.12.1975), pp. 20-21
— idem. “Finalmente, João Abel Manta”. Entrevista. (Jornal de Letras, 18.02.1992, pp. 25-27)
– Almanaque, Dezembro de 1960/Janeiro de 1961 e Maio de 1961
– “João Abel Manta: Caricaturas Portuguesas” (ArteOpinião, Fevereiro de 1979, pp. 13-15)
– “João Abel Manta – debate na Comuna” (Jornal de Letras, 14.04.1981, p. 27)
– “Retratos do Salazarismo” (Jornal de Letras, 18.11.1998, p. 28)
– Entrevista na SIC Notícias (28.10.2013)

Livros:
– ALCOBIA, Telmo. Os cartoons de João Abel Manta. Tese de mestrado em Desenho apresentada à Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, 2009
– ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia (Lisboa: Minotauro, 1961)
– BARBOSA, Cassiano. ODAM – Organização dos Arquitectos Modernos, 1947-52 (Porto: Asa, 1972)
– BAPTISTA-BASTOS, Armando. “Crónica no desenho”, in Capitão de Médio Curso (Lisboa: Caminho, 1978)
– BARROS, Leitão de. Corvos (Lisboa: Editorial Notícias, 1960, 2 vol.)
– BOCACCIO, Giovanni. Decameron (Lisboa: Minotauro, 1964)
– COTRIM, João Paulo. João Abel Manta: Caprichos e Desastres (Lisboa: Assírio & Alvim, 2008)
– MANTA, João Abel. Cartoons 1969-1975 (Lisboa: Edições O Jornal, 1975)
— idem. Portugal, ein schwieriges problem (Berlim Ocidental: VSA, 1976)
— idem. Caricaturas Portuguesas dos Anos de Salazar (Lisboa: Edições O Jornal, 1978)
— idem (com LETRIA, José Jorge). Não se Distorce a Cara de um Homem (Lisboa: Guerra e Paz, 2014)
– MARQUES, Pedro Piedade. João Abel Manta (Lisboa: Cardume Editores e Público, 2016, colecção “Designers Portugueses”)
— idem. João Abel Manta: a máquina de imagens (Cascais: Fundação D. Luís I, 2021, edição para acompanhar a exposição homónima)
— idem. “Manta e o fantasma de Salazar: um exorcismo de meio século português”. Posfácio à 3.ª edição de Caricaturas Portuguesas dos Anos de Salazar (Lisboa: Tinta da China, 2022)
– MATOS, A. Campos. Dicionário de Eça de Queiroz (Lisboa: Caminho, 1988, p. 580)
– NETO, Teresa. “João Abel Manta: a obra gráfica feita em exílio. Uma colecção revisitada” (in Colecções de arte em Portugal e Brasil nos séculos XIX e XX. Colecções em exílio, Lisboa: Caleidoscópio, 2018, pp. 221-238)
– PIRES, José Cardoso Pires. Cartilha do Marialva (Lisboa: Moraes, 1970, 4.ª ed.)
— idem. Dinossauro Excelentíssimo (Lisboa: Arcádia, 1972)
— idem. E Agora, José? (Lisboa: Moraes, 1977, pp. 129-135)
— idem (com PORTELA FILHO, Artur). Cardoso Pires por Cardoso Pires (Lisboa: Dom Quixote, 1991)
– PORTELA FILHO, Artur. O Novo Conde de Abranhos (Edição do autor, 1971)
— idem. “A última chapelada de Bernardino Machado”, in A funda, 3º volume (Lisboa: Arcádia, 1973), p. 23-32
– QUEIRÓS, Eça de. O 1º de Maio (Lisboa: Edições O Jornal, 1979)
– RIBEIRO, Aquilino. A Casa Grande de Romarigães : crónica romanceada (Lisboa: Bertrand, 1957)
— idem. Tombo no Inferno / O Manto de Nossa Senhora (Lisboa: Bertrand, 1963)
— idem. Quando os Lobos Uivam (Lisboa: Avante, 2008)
– SOUSA, Osvaldo de. João Abel Manta – Gráfica (Lisboa: Regisconta, 1988)
— idem. A caricatura política em Portugal (Lisboa: Salão Nacional de Caricatura, 1991)
— idem. História da arte da caricatura de imprensa em Portugal (Lisboa: Humorgrafe, S.E.C.S., 1998)
– VASCONCELOS, José Carlos de. “João Abel Manta” (in COSTA E SILVA, Manuel. Os Meus Amigos, Lisboa: Dom Quixote, 1983)
– WAUGH, Evelyn. O Ente Querido (Lisboa: Ulisseia, 1955)
– Arte de Furtar (Lisboa: Estúdios Cor, 1969)
– Helena Vaz da Silva com Júlio Pomar (Lisboa: Edições António Ramos, 1980)
– João Abel Manta: a máquina de imagens (Cascais: Fundação D. Luís I / CM Cascais, 2021)
– João Abel Manta: Obra Gráfica (Lisboa: CM Lisboa / Museu Rafael Bordalo Pinheiro, 1992)
– João Abel Manta: pintura (1991-2009) (Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 2009)
– Livros Proibidos no Estado Novo (Lisboa: Assembleia da República, 2005, pp. 52-53)
– Manta 90/40 (Lisboa: Caleidoscópio e Galeria Valbom, 2018)
– Manta: retratos de família (Cascais: Fundação D. Luís I, 2013)
– Portugiesische Realisten (Berlim Ocidental: NGBK-neue Gesellschaft für bildende Kunst, 1977)
– Um Sabor de Desenho: homenagem a João Abel Manta (Amadora: CM Amadora, 2008; texto de Júlia COUTINHO, “João Abel Manta: o artista resistente”)
– Um Tempo e um Lugar: Dos Anos Quarenta aos Anos Sessenta. Dez Exposições Gerais de Artes Plásticas (Vila Franca de Xira: CM V.F. Xira / Museu do Neo-Realismo, 2005)