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Ao meio-dia na Rampa, um olhar

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Este pode bem ser o pedaço de propaganda mais sensual jamais produzido, “sensual” no sentido inconscientemente subversivo de algo que escapa ao rígido controlo que se espera de um plano de propaganda. Se o foi deliberadamente ou se foi apenas um deslize na apertada vigilância censória, não sei, mas o certo é que a reportagem especial dedicada à Rampa, a avenida da “movida” havanesa, há 50 anos (em rigor, no número de Julho de 1964) na revista Cuba seria, creio, impensável uns anos depois, meses talvez, com o endurecimento do governo de Fidel Castro e a chegada de Brejnev ao poder na URSS, precisamente em Outubro desse ano.

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Se a bela morena da capa – apesar da ausência de maquilhagem (a não ser uma ligeira sombra nos olhos) e de indumentária excessivamente reveladora – nos parece convidar (mais do que seduzir) para uma visita serena e, aparentemente, sem promessa de proselistimo político (nem sombra do verde-azeitona das fardas dos homens e mulheres do exército cubano), e se as bailarinas de cabaré das páginas 52 e 53, apesar de exibirem todo o oposto dela, não parecem fazê-lo de uma forma que não seja a profissionalmente esperada (ainda que algo surpreendente numa Havana com a revolução ainda ao rubro), é esse detalhe da troca de olhares no passeio da Rampa (ao meio-dia, afirma a legenda das páginas 48-49) entre dois homens e uma mulher, ou mais precisamente, o olhar que a mulher lança a um dos homens e a posição do corpo deste face a ela que parecem abrir uma pequeníssima fissura na brilhante película de marketing turístico e político que é esta reportagem (como as outras da revista, aliás). E daí, essa liberdade do olhar (dos fotografados e dos fotógrafos) talvez existisse dentro de limites pré-determinados e, no caso da Cuba, fosse até mais generosamente concedida do que noutras revistas produzidas na ilha então, pelo menos a julgar pelas palavras de Hector Villaverde em Testimonios del Diseño Gráfico Cubano 1959-1974, segundo o qual a revista, com o novo director Lisandro Otero a partir de Fevereiro de 1964, se tornou mais arrojada (na capa desse número de Fevereiro, uma fotografia de Alberto Korda mostrava a actriz Bertina Acevedo na praia em biquini, “algo pouco visto nas publicações cubanas desde 1959”).

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Apesar do formato imponente, a Cuba era feita com meios limitados, o que se nota neste portefólio sobre a avenida: as únicas páginas a cores de toda a revista são as que mostram fotografias da Rampa à noite, feitas com exposição prolongada para acentuar a féerie luminosa. Para além de colaborações pontuais de fotógrafos cubanos de renome (como o citado Korda, o autor da célebre fotografia de Che Guevara que depois se tornou na mais reproduzida imagem fotográfica do século XX), a revista atraiu a colaboração de fotógrafos estrangeiros como o suíço Luc Chessex, que viveu em Cuba de 1961 a 1975, trabalhando ao serviço da agência Prensa Latina, e que em 1969 publicou um notável foto-livro, Le Visage de la Révolution, tão notável que o seu editor (e também designer gráfico) Hans-Rudolph Lutz se decidiu a ir a Havana, onde acabou por colaborar com a Cuba.

Segundo o mesmo Villaverde (que a partir de 1968 seria o director de arte da revista), a sensação de liberdade formal que transpira de algumas destas fotos foi recebida com algumas críticas, pois a Cuba era, afinal, mais um braço da propaganda cubana o que, depois de 1962, significava também alguma vigilância soviética:

“A pesar de las muchas incomprensiones y críticas que recibimos en aquel momento, esta nueva forma de ver la fotografía y las imágenes logradas por este grupo de la revista Cuba se impusieron, no sin antes librar una lucha hoy casi desconocida contra las concepciones más conservadoras de aquellos años.
Esas fotos son actualmente documentos históricos de gran valor para poder comprender cómo eran realmente los cubanos de esos años y llegaron a conformar un nuevo estilo dentro de la fotografía cubana. Una de las acusaciones absurdas que se le hacían a este estilo de fotografía era que los personajes que participaban en la foto miraban hacia el lente y por eso lucían muy artificiales, cuando era en realidad todo lo contrario.
El trabajo en equipo entre el diseño y la fotografía ayudó a formar una imagen diferente de la revista, más abarcadora, cultural y sobre todo creíble. Se debilitaron los prejuicios que veían a la fotografía como simple propaganda.” (in Testimonios del Diseño Gráfico Cubano 1959-1974, p. 182)

Os que estas fotos mostram é uma cidade ocidental, caótica, local de ócio e prazeres diurnos e nocturnos, um palco de promessas sensuais que a censura parecia renitente ou impotente em esconder ou mostrar sob outra forma.

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O texto de Mario Trejo que fecha o portefólio de fotografias (da autoria dos fotógrafos Ernesto Fernandez, Mario Garcia Joya, Freddy Morales, Liborio Noval, Roberto Salas e Carlos Nuñez) descreve com minúcia o ambiente da avenida, quase dois anos depois da “crise dos mísseis”:

“… o Hotel Habana Libre, bolseiros, um estúdio de televisão, técnicos checos e soviéticos, uma funerária onde se serve café e pequenas sandes de presunto, modelos de cabaré, uma escola de línguas, delegações de arquitectos chineses, jornalistas italianos e escritores franceses, um banco de sangue, uma agência noticiosa, cinemas, um enorme pavilhão para exposições, teatros, um restaurante chinês, outro russo e um terceiro – o Polinésio – para além da possível nomenclatura, músicos, milicianos, bailarinas, bares, ministérios, vendedores de café, agências de aviação e, ao fundo, lá longe, sobre a linha do horizonte, como se fizesse já parte da Rampa – ainda que não saiba se por curiosidade ou exibicionismo – a esbatida silhueta do Oxford, o navio-espião americano.” (in Cuba, Julho de 1964, p. 57, traduzido por mim)

Em 1964, a referência a algum cinema internacional era já esperada numa ilha e, sobretudo, numa cidade tão filmada nesses cinco anos desde a Revolução. Trejo menciona o Soy Cuba de Kalotosov, o Salut Les Cubains de Varda e o inevitável Marker de Cuba Sí, todos feitos total ou parcialmente em Havana e nos quais a Rampa aparecera com destaque. Não poderia então saber que, quatro anos mais tarde, seria impossível evitar mencionar um outro filme que fez da cidade o seu cenário, Memorias del Subdesarrollo de Tomas Gutiérrez Alea. Tivesse sido Edmundo Desnoes – o autor do romance de 1965 que Alea adaptaria e autor também do argumento – a escrever este texto para a Cuba e não tenho dúvidas de que mencionaria essa troca de olhares, esse olhar desafiador que a jovem lança ao homem na rua. Numa cena do filme, por narrador interposto, ele descreve esse tipo particular de olhar, apontado aos olhos dos homens, frontal, directo, das mulheres havanesas, capaz de, no exíguo espaço de uma livraria, tornar ainda mais entediantes, por contraste, as capas dos calhamaços da propaganda soviética. Que podia, afinal, a cada vez mais apertada vigilância contra a força de um engate numa das livrarias da Rampa?

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“O homem que vingou Che Guevara”

O título do meu novo texto no Clubalice podia ser também, com alguma propriedade, O homem que criou Che Guevara (com uma grande ajuda de Alberto Korda, é claro). Não me canso de achar esta história fascinante. Os Feltrinellis de hoje não inspiram ninguém, nem os do mundo da edição (credo!), nem os do mundo dos negócios e das finanças. Os tempos que nos calharam.

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