Ao ler a “biografia literária” de Alexandre O’Neill, da autoria de Maria Antónia Oliveira (Dom Quixote, 2006), descobri esta revista ELE, que merece à autora umas truculentas e irresistíveis três páginas no livro. Trata-se de um projecto criado em 1972 e em que se associaram dois veteranos do Almanaque publicado pela Ulisseia entre 1959 e 1962: o poeta e Rui de Lemos, que foi aqui o editor e o “patrão” de facto daquele. Fruto da ligeira liberalização de “costumes” da dita “Primavera Marcelista” desde 1968, a revista tentou emular a Lui francesa e a Playboy americana (com as obrigatórias fotos das “meninas” fornecidas pelo arquivo de uma revista homónina sediada em Munique, a ER [“Ele” em alemão]). Fornecendo a “orientação literária” e grande parte dos textos estaria O’Neill. Creio ser uma revista particularmente difícil de encontrar (nenhum alfarrabista que consultei a conhecia, apenas um se lembrava vagamente de ter vendido uns exemplares há anos, e uma pesquisa na internet trouxe-me só os três primeiros números, que adquiri).
O aspecto “truculento” da biografia da revista começa logo na capa do primeiro número, na qual se pode ver uma insinuante loira nua sentada sobre felpudas peles brancas. Tratava-se, porém, de um travesti, mas o segredo manteve-se inviolado pois ninguém descobriu. Ninguém, não: a excepção foi o olho de lince de Luiz Pacheco, que topou logo a coisa (“por causa do braço”, afirma Rui de Lemos). Este gosto pelo travestismo como “partida” parecia ser moda em Lisboa por esse tempo, a julgar pela proximidade desta capa à célebre “sessão na banheira” de Fernando Ribeiro de Mello, em Dezembro de 1971, em que “duas beldades do conhecido editor, Palola e Eugénia” (palavras de Fernando Assis Pacheco), presentes na cerimónia, eram, na verdade, dois travestis.
A ELE não tem o brilhantismo gráfico do Almanaque da década anterior (cujo design tinha sido de Sebastião Rodrigues), mas ainda assim há bons momentos, tanto pela qualidade e interesse dos artigos como pelo layout, que fazem justamente lembrar essa revista. Dois exemplos, ambos do número duplo 3/4 de Agosto/Setembro de 1972, são a muito boa entrevista que O’Neill faz ao fotógrafo Augusto Cabrita (que inclui um pequeno e excelente portfolio nova-iorquino deste) e um artigo sobre o bilhar, cuja epígrafe é uma quase assinatura de O’Neill: um poema de Nicolau Tolentino sobre… o bilhar (“gira no lizo, verde taboleiro, /de indiano marfim lascada bola”). Quase podemos imaginar João Abel Manta, no ano seguinte, com este artigo aberto diante de si no momento de esboçar o cartoon dos “Diálogos Confidenciais” para o Diário de Lisboa em que pôs O’Neill e Tolentino muito concentrados sobre uma mesa de bilhar (e com aquele tentando um arriscado “truque alto” perante o olhar descrente e sardónico deste).
Para os o’neillianos impenitentes há ainda mais alimento, como os “Seixos” de Rolando Seixas (pseudónimo), pequenas pérolas absurdas de aforismo, onde se incluem alguns “clássicos” (“passou a vida a encontrar a mesma mosca”).
Há ainda (no número 1) um texto sobre o Botequim, bar que pertencia a Natália Correia e que, a partir deste início dos anos 70, serviria como uma extensão dos célebres “serões” em casa da poetisa ao longos da década anterior. Eis, pois, outra tangente desta ELE à biografia de Ribeiro de Mello (um dos “protegidos” de Natália Correia e seu editor).
Como curiosidade ainda, um dos anúncios publicados é o do estúdio de Sérgio Guimarães, a dois anos da fama “revolucionária” com o poster do menino-a-enfiar-o-cravo-no-cano-da-G3 e de uma louca aventura editorial a tentar ser o Eric Losfeld português, publicando banda desenhada erótica de qualidade (e ainda publicaria Tomi Ungerer, Crepax e Pichard).
Outra curiosidade é a inclusão dos Exercícios de Estilo de Luiz Pacheco numa lista de recomendações de leitura. As curtíssimas recensões não estão assinadas, mas não seria difícil imaginar O’Neill a escrever isto sobre o antigo acólito do altar surrealista:
“Parta um termómetro, sacuda para o chão o mercúrio que ele contém. Depois, agachado, tente apanhar as gotículas do mercúrio. Aí tem um símile para o estilo em exercício de Pacheco.
V. julga que ele se vai ficar por ali, mas não: já está mais adiante e, assim, o seu dedo ficou para trás… Repita o exercício quantas vezes forem necessárias para… se divertir (e renovar!) com o mais truculento, irrequieto e… moralizante escritor português do momento.” (ELE, n.º 3/4, Agosto/Setembro de 1972)
Ausente dos quatro primeiros números, infelizmente, está a misteriosa (e fictícia) personagem Max Rog, sobrevivente de um campo de concentração e escultor, através da qual O’Neill retomou algumas das suas experiências plásticas do tempo do Grupo Surrealista de Lisboa. (“Max Rog estreou-se no número 5 da revista com uma escultura intitulada Picnic que pode ser sumariamente descrita como uma chinela de salto alto de cor metalizada onde foi incorporada uma chave para abrir latas de sardinhas. Alexandre O’Neill era o autor desta obra e da respectiva reprodução fotográfica para a revista.” – Alexandre O’Neill – Uma Biografia Literária, p. 228).
A ELE (“revista que não é feita à custa das mulheres mas que as leva muito em conta”, rezava o slogan de O’Neill) não durou o tempo suficiente nem surgiu na altura certa para ser a K dos anos 70, mas a seiva que alimentaria esta corria já por aqui.