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Com a foto do censor sobre a secretária*

Autora esquecida de dois livros proibidos pela Censura do Estado Novo, Maria Archer foi, na sua última década em Portugal antes do exílio brasileiro, uma inesperada, corajosa e pública atacante de dois pilares de sustentação do regime: a máquina censória e a perseguição política aos seus adversários.

Ainda que no extremo esquerdo do alinhamento, na foto ela parece ser o centro das atenções: é em Maria Archer que, apesar do olhar de suspeição, a vista de Salazar parece repousar, nessa sessão de prémios do Secretariado da Propaganda Nacional (SPN) a 4 de Fevereiro de 1939, em que a autora recebeu o Prémio Nacional de Literatura Infantil por Viagem à roda da África, eco de muitos anos passados nas províncias ultramarinas. Mas a foto parece também revelar que aquele ritual de propaganda do regime (Carmona e Ferro por ali também) a aborrece: há um hiato entre a autora de 40 anos e a massa de pessoas à sua esquerda, e o contraste é acentuado por ser a única inteiramente de branco vestida. Quase vinte anos depois, no Brasil, ela conservava ainda a foto em que aparecia “entre todos estes personagens da tragicomédia que é a ditadura salazarista”. 1

Portugal Democrático, Ano I, nº 10, Abril de 1957

Na verdade, a premiada que ali se apresentava estava na mira de dois jornais ferrenhamente parciais ao regime, A Voz e o Novidades, pela publicação, no final de 1938, de um livro que ambos consideravam “pornográfico” e que ambos sugeriam dever ser apreendido pela “polícia”, uma recolha de contos intitulada Ida e volta duma caixa de cigarros. Os serviços de Censura mostram interesse, pedem um exemplar e a edição acaba por ser apreendida de facto. É na mesma altura em que aceita o prémio do SPN que Archer pede ao Ministro do Interior que interceda contra a decisão censória, aludindo a invejas por parte do Novidades, pois uma empregada deste estaria na lista para o prémio, e afirmando que ambos os jornais teriam facilidade em influenciar as decisões da Censura pois “pelo menos um oficial desse serviço já fez parte da redacção da Voz ou foi revisor das Novidades”. 2 Era, assim, ainda que sigilosamente, levantada a cortina de uma parcela do palco do regime, revelando cumplicidades e ligações não assumidas entre agentes e agências. O olhar frio de Salazar na foto trairia já o conhecimento dessas “torpes e ignóbeis insinuações” 3, como lhes chamaria, em 1947, um funcionário da Censura? É directamente ao Presidente do Conselho que, em 1944, Archer pede o levantamento da proibição do livro 4, mas o silêncio de Salazar não só confirma que a mesma se manterá, como é sinal de mau agoiro. Em 1947, novo livro proibido: Casa sem pão, um romance que o censor Rodrigues Carvalho, num extenso relatório de 10 páginas (a que não falta marginália impiedosa), designa de “texto imoral” e “baixa literatura”. 5

Divorciada, com os laços familiares em fiapos graças a Aristocratas, romance de 1944, que a sua família considerara incómodo e intrusivo, e já sem o seu protector Tomás Ribeiro Colaço, exilado no Brasil desde 1940, o círculo de convivência de Maria Archer, muito próximo de monárquicos ou integralistas lusitanos, não a tornava mais simpática à situação, antes pelo contrário. E é pelo contrário que enfileira: filiada no Movimento de Unidade Democrática (MUD) desde 1945, a senhora elegante das soirées de sociedade, a conviva de Branca de Gonta Colaço e Carlota de Serpa Pinto era agora uma opositora que esperava uma mudança do regime com o fim da II Guerra Mundial.

Mas o regime não mudou, e o seu reforço após as eleições presidenciais de 1949 encaminhou Archer para o cruzamento com o percurso de um resistente tão inesperado como ela. Quando o deputado por Angola à Assembleia Nacional, capitão Henrique Galvão, é preso em 1952 e julgado como líder de um grupo de “conspiradores” no Tribunal Militar Territorial de Lisboa, Archer pede ao República as credenciais para cobrir o julgamento, com vista à publicação de um texto sobre o mesmo. A autora do Roteiro do mundo português percebeu que o julgamento desse outro autor de “literatura colonial” – e “antigo colonialista de categoria” 6 – excedia essa coincidência e se apresentava como algo inaudito nos quase 30 anos do regime: uma frincha pela qual revelar, fria e objectivamente, o funcionamento político e repressivo do mesmo. Pouco de comum poderia ligar Galvão, revolucionário de 1926, militar quixotesco e narcísico, a Archer, mulher emancipada, mas o texto que ela prepara a partir do processo que condena aquele vai-se acumulando, minucioso, claro, escrito em absoluta liberdade. Até que a 20 de Junho de 1953 a PIDE a visita em casa e lhe apreende apontamentos e dactiloscritos. Ainda que se tivesse prevenido, enviando pouco antes para Ribeiro Colaço no Brasil, através de gente de confiança, cópia da maior parte do que produzira, aquilo era a gota de água. Archer arma então um contra-ataque tão inédito quanto o livro que preparava. Em entrevista a 20 de Outubro, no República, conta essa história, sob o troante título “Um caso inédito de perseguição do pensamento” 7, tornando assim pública a apreensão de um livro antes de ser publicado, e a 4 de Novembro, sob o título vago de “A censura e o livro”, escreve um artigo focado apenas na censura à edição de livros em Portugal, durante o Estado Novo.8

República, 20.10.1953
República, 04.11.1953

Quase vinte anos antes de José Cardoso Pires ter fixado a “técnica” do funcionamento da censura de Salazar, Archer fê-lo de um modo mais reduzido e sucinto mas não menos poderoso, assumindo-se como autora já censurada, que partilhava com os seus colegas a pressão de trabalhar sob essa espada de Dâmocles, chegando a revelar, com triste ironia, ter escrito o romance que se sucedeu ao seu último livro proibido com uma foto de Armando Larcher, director dos serviços de censura, sobre a secretária, e o que essa pressão causou na sua obra.

Testemunho também de que escrevi o romance O mal não está em nós tendo diante dos olhos, sobre a secretária, o retrato do senhor coronel Armando Larcher, director dos Serviços de Censura. Foi esse o primeiro romance que criei após me ter sido apreendido o anterior, Casa sem pão, do melhor que a minha humilde pena produziu, enquanto que O mal não está em nós se limita a ser uma história cerzida com lógica e sequência, isto é, princípio, meio e fim. Um livrecosito.9

Mas Cardoso Pires fá-lo-ia longe (em Londres), em segurança e em inglês (no primeiro número da Index on Censorship 10 ), já depois da morte de Salazar; Archer expôs-se em plena boca do lobo, e com este ainda pleno de força (a coberto de umas “férias da censura” em épocas de “farsas eleitorais”, como ela admite 11). Era um gesto incrível, de contida raiva, que o lápis vermelho do agente da PIDE que sublinhou o seu nome no recorte parecia ecoar.

Exilando-se no Brasil em 1955, foi lá que, em 1959, ela rematou este frontal ataque ao regime de Salazar. Pela mesma Editora Liberdade e Cultura de São Paulo (que pouco depois publicaria Quando os lobos julgam, a justiça uiva, sobre o processo a Aquilo Ribeiro por Quando os lobos uivam), Archer lançava o 1º volume de Os últimos dias do fascismo português, o relato do processo a Henrique Galvão, tendo na capa a reprodução da contrafé da PIDE (o previsto 2º volume nunca foi publicado12). Era agora a jornalista livre, a exilada cultural (com gente como Adolfo Casais Monteiro, Jorge de Sena, Castro Soromenho, Fernando Lemos ou Mário Henrique Leiria), a anti-salazarista que, em 1957, contestara a recepção em São Paulo ao presidente português Craveiro Lopes 13 e, no Portugal Democrático, onde colaborava desde o início, respondera – com a foto de 1939 na 1ª página – a mais uma provocação da Voz de Dutra Faria, alertando para possíveis falsificações do seu nome em documentos suspeitos 14 (o que poderá explicar uma estranha carta, no que resta do seu arquivo da PIDE, em que, recém-chegada ao Brasil, se propõe vender o livro ao governo português 15).

Semana Portuguesa, 30.07-05.08.1966

Mas a distância, a idade galopante, uma vida difícil nas e pelas letras e a ditadura no Brasil a partir de 1964 vão-na isolando e tornando num nome cada vez mais esquecido. Quando, em 1973,  as “três Marias” se sentam no tribunal em Lisboa pela publicação das Novas cartas portuguesas, Maria Archer, passados os 70, só procura um pouco de ajuda e pensa em regressar a Portugal. Consegui-lo-á apenas no final da década, em débil condição financeira e de saúde, para morrer pouco depois. O seu optimismo quanto aos “últimos dias” do regime de Salazar falhara em quase duas décadas, mas a energia e a coragem daquele duplo ataque na imprensa em 1953 e o rigor e a força testemunhal do seu livro sobre como se fazia um processo político em Portugal, peças únicas na história da resistência intelectual ao Estado Novo, ainda surpreendem e fazem vibrar o papel velho em que foram impressas.

*Versão revista de um texto publicado no Público.

–––––
Notas:
1. ARCHER, Maria. “Eu e a Voz“, in Portugal Democrático, Ano I, nº 10, Abril de 1957, p. 6.
2. “Apreensão do livro “Casa sem pão”: Secretariado Nacional de Informação, Censura cx. 423, PT-TT-SNI-DSC-19-80_m0004.
3. Idem, ibidem.
4. “Processo de Maria Archer pedindo para que não seja proibida a venda de uma obra de sua autoria”: Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros, Gabinete do Presidente, cx. 109, proc. 840/63, n.º 19.
5. “Apreensão do livro “Casa sem pão”: Secretariado Nacional de Informação, Censura cx. 423, PT-TT-SNI-DSC-19-80_m0017. Sobre a censura a estes dois livros da autora, deve consultar-se também PEDROSA, Ana Bárbara Martins Pedrosa. Escritoras portuguesas e Estado Novo: as obras que a ditadura tentou apagar da vida pública. Tese de doutoramento. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2017, p. 80-120.
6. ARCHER, Maria. Os últimos dias do fascismo português. São Paulo: Editora Liberdade e Cultura, 1959, p. 39.
7. ANTT Arquivo da PIDE/DGS (Serviços Centrais): PT/TT AC PIDE/DGS Del P P I 15443 UI 3694, fl. 8.
8. ANTT Arquivo da PIDE/DGS (Serviços Centrais): PT/TT AC PIDE/DGS SC SR 131/48 UI 2619, fl. 313. Já no Brasil, Archer publicará no Portugal Democrático, em 6 de Outubro de 1956, “A censura à imprensa e ao livro”, um texto do mesmo género, ligeiramente adaptado à situação brasileira e à “repulsa dos brasileiros sobre os actos dos ditadores sul-americanos em relação à censura” (cf. BATISTA, Elizabeth. Entre a literatura e a imprensa: percursos de Maria Archer no Brasil. Tese apresentada à Univ. de São Paulo, 2007, p. 119)
9. Idem, ibidem. O artigo é citado em MEDEIROS, Nuno. Edição e Editores: o Mundo do Livro em Portugal 1940-1970. Lisboa: ICS, 2010, p. 81 (ainda que directamente da edição do jornal e não do arquivo da PIDE na Torre do Tombo).
10. “Changing a nation’s way of thinking”, Index on Censorship, nº 1, Março de 1972, pp. 93-106. O artigo seria depois traduzido e publicado com o título “Le régime de la censure” na revista francesa Esprit (n.º 9, Setembro 1972, pp. 237-253), e, em 1974, na revista holandesa De Gids, sob o título “Het regime van de censuur” (n. 5, pp. 307-318). A sua primeira edição em Portugal foi no volume E agora, José?, com o título “Técnica do golpe de censura” (Lisboa: Moraes, 1977, pp. 198-243).
11. ARCHER, Maria. Os últimos dias do fascismo português, p. 7.
12. Apesar de a 1ª edição do volume I, de três mil exemplares, se ter esgotado um ano depois do lançamento, a autora não terá dado consentimento a uma segunda edição (cf. BATISTA, Elizabeth. Op. cit., pp. 50, 81).
13. MANSUR DA SILVA, Douglas. A oposição ao Estado Novo no exílio brasileiro 1956-1974. Lisboa: ICS, 2006, p. 62.
14. ARCHER, Maria. “Eu e a Voz“, in Portugal Democrático, Ano I, nº 10, Abril de 1957, p. 1.
15. ANTT Arquivo da PIDE/DGS (Serviços Centrais): PT/TT AC PIDE/DGS SC SR 131/48 UI 2619, fls. 244-246. Nessa carta, emitida a 2 de Setembro de 1955 do Hotel Claridge de São Paulo e dirigida a José Manuel Costa, director do SNI, a signatária revela desilusão com Henrique Galvão e o desejo de não publicar o livro no Brasil se o governo português lho comprar.

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Algum (necessário) contexto cubano

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Ainda sobre a muito importante exposição na galeria ZDB de cartazes cubanos da OSPAAAL e de alguns exemplares do órgão desta agência de propaganda, a Tricontinental, eis um exemplo do material de “contexto” que, como escrevi antes, creio que falta a essa exposição. Trata-se do número da revista Cuba Internacional de Novembro de 1972, onde se publicou um artigo sobre a escolha do vencedor do 5.º Salão Nacional de Cartazes. Como membro do júri estava o que era já então considerado um dos mais proeminentes designers cubanos, e precisamente o director de arte da Tricontinental (sê-lo-ia até 1975), Alfredo Rostgaard (1943-2004), responsável por muitas das melhores peças que estão expostas na ZDB (e muitas das que não estão). É um artigo interessante, até na surpresa do tom moderado e sereno com que se analisa a suposta existência de uma “escola cubana” do cartaz (algo que, hoje, é quase indiscutível, sobretudo no período que vai de 1959 a finais dos anos 70), concluindo o autor que, apesar da qualidade da produção, os cartazes feitos da ilha constituiriam mais uma “síntese” e um ponto de “confluência” das influências polaca, japonesa e americana.

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Rostgaard, cuja obra, em 1972, exposições internacionais em Londres e Amesterdão tinham já dado a conhecer, chegou a gravar em 2001 um depoimento sobre essa “escola cubana” e em particular sobre o trabalho para a Tricontinental, incluindo os inúmeros cartazes que, dobrados, seguiam dentro dos exemplares da revista enviados para todo o mundo. As suas observações sobre a produção desses cartazes são riquíssimas de detalhe técnico.

Seria conteúdo deste calibre que, como material de contextualização, teria, na minha modesta opinião, dado mais profundidade à exposição na ZDB se tivesse sido posto à disposição dos visitantes, até mesmo a reprodução dos textos de Edmundo Desnoes sobre a questão da estética gráfica cubana do período revolucionário (como o que foi publicado no catálogo da exposição no Stedelijk em 1971) e o seu cotejo com as escolas de referência como a polaca (um curto texto publicado na revista cubana Diseño em 1970).

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[Nota paralela, e prova da tangente que esta produção de propaganda política cubana fez à história portuguesa no contexto na Guerra Colonial (o que apenas confere uma importância acrescida a esta mostra): antevendo o Ano Internacional do Livro (que este número de Novembro desse ano comemora precisamente), um artigo de um número do final de 1971 da Cuba sobre a situação da edição e da leitura na ilha fora transcrito pelo Notícias da Amadora para ser publicado no dia 8 de Janeiro de 1972, o que o Exame Prévio não autorizou, cortando-o na totalidade.]

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Capas do cesto dos proibidos (III)

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Capa de Luísa Brandão para a edição da Portucalense de Os Muros do Asilo de Roger Gentis (Les Murs de l’Asile, publicado originalmente em 1970 por François Maspero).
Apesar de politicamente próxima do Estado Novo desde a sua fundação em 1928, a Portucalense tornou-se em 1971, por via da morte do seu fundador e da tomada do cargo pelo seu filho, uma editora com um catálogo vincadamente à esquerda e desafiador da norma: este foi apenas um dos seus treze títulos proibidos pela Censura nos dois anos em que José Oliveira orientou a casa até ao seu fecho, em 1972, para entrar na clandestinidade.

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Capas do cesto dos proibidos (II)

quando-lobos-uivam-1959Capa de Fernando Lemos para a edição brasileira da Anhambi de São Paulo de Quando os Lobos Uivam de Aquilino Ribeiro, em 1959.

Em rigor, não foi esta edição mas a primeira da Bertrand, em 1958, a incorrer na ira da Censura, que a proibiu, proibição que seria o primeiro passo para um processo judicial a Aquilino. Graças a uma campanha internacional de apoio ao autor, e com receio de uma escalada na publicidade negativa numa altura já muito complicada diplomaticamente para o Estado Novo (depois do annus horribilis de Salazar em 1961), o regime desistiria dos seus intentos.

O Brasil liberal de Juscelino Kubitshcek foi uma dor de cabeça para o regime de Salazar: acolhendo todos os notáveis anti-salazaristas, de Delgado em 1958 a Henrique Galvão depois da tomada do Santa Maria, recebeu também inúmeros artistas e escritores portugueses forçados a abandonar o país temporária ou definitivamente. Foi o caso, por exemplo, de José Cardoso Pires, que chegou a colaborar durante uns meses (sob pseudónimo) com a revista carioca Senhor. E foi também o caso de Fernando Lemos, companheiro da primeira geração de surrealistas portugueses, que fixou estes em retratos fotográficos que são, talvez, as suas mais conhecidas obras.

Na aparente singeleza da capa, na sua quase literal tradução visual do título, esconde-se o primeiro sólido e concertado ataque ao muro censório do Estado Novo: depois de décadas em que a questão da censura à edição fora um assunto “interno”, o “caso Aquilino” tornou-a notória em quase todo o mundo, sendo o Brasil o epicentro do núcleo de resistentes que procuraram dar a conhecê-lo. Foi precisamente em São Paulo também que se publicou, ao mesmo tempo desta edição do romance, Quando os Lobos Julgam a Justiça Uiva, um pequeno volume onde se podia ler os textos integrais de acusação e defesa no caso, antecedidos de uma introdução de Adolfo Casais Monteiro, exilado no Brasil desde 1954 (e que assina também o prefácio ao romance), uma edição que seria impensável em Portugal então e que tem uma importância histórica no contexto da edição nacional durante o Estado Novo, ao aproximar-se dos modelos de edições sobre processos de censura, como o L’Affaire Sade de Pauvert ou L’Affaire Lolita de Girodias em França, ambos de 1957, ou The Trial of Lady Chatterley, a edição que a Penguin publicou sobre o processo ao livro em 1960.

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Capas do cesto dos proibidos (I)

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Capa do pintor Benjamim Marques para a edição da Ruedo Ibérico em 1969 da peça musical Canto do Papão Lusitano (Der Gesang von Lusitanischen Popanz, estreada em 1967) de Peter Weiss, com tradução de Mário Gamboa.

A Ruedo Ibérico era uma editora fundada em Paris por exilados espanhóis e cujos livros circulavam clandestinamente na Espanha de Franco até 1975. É um raríssimo exemplo de uma edição em português proibida pela censura portuguesa e que não foi publicada em Portugal (ou territórios ultramarinos) ou no Brasil. Depois do que acontecera com Luís Sttau Monteiro no final de 1966, preso para interrogatórios durante seis meses pela autoria de “A Guerra Santa”, uma das duas Peças em Um Acto publicadas pela Minotauro nesse ano (editora que seria encerrada pelo atrevimento), publicar em Portugal este libelo directamente acusatório do colonialismo português teria sido um suicídio, mesmo já em pleno “marcelismo”: Carlos Porto escreveu em 10 An­os de Teatro e Cinema em Portugal, que se tratou da peça “mais detestada e mais proibida” na última década do regime.

A poderosa capa de Benjamim Marques é outro dos elementos que enriquece esta edição plena de “cruzamentos” significantes: ex-frequentador do Café Gelo e dos surrealistas de Lisboa (é dele um desenho que representava o grupo em 1965) e a viver em Paris desde meados da década, ele empresta à violenta sátira de Weiss o espírito de rebeldia anárquica que se tinha respirado naquele canto do Rossio.

Eis um exemplo (ainda que raro) de como se podia combater o Estado Novo e a sua Censura de fora de Portugal e com livros (a Ruedo imprimiu 3 mil exemplares desta edição, que se vendia livremente em Paris).

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“…dentro da esfera armilar, uma boca aberta…”

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Há precisamente quarenta anos, a 4 de Agosto de 1973, o Expresso, na sua coluna “Gente”, informava que  João Abel Manta, arquitecto mas conhecido, sobretudo, como cartoonista e ilustrador, e António Ruella Ramos, director do Diário de Lisboa, tinham sido absolvidos das acusações que os tinham levado a julgamento: “abuso da liberdade de imprensa” e “ofensas à bandeira nacional”.

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O início do julgamento fora também noticiado no próprio Diário de Lisboa na edição de 28 de Junho, com chamada de primeira página e continuação com destaque na última.

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O suposto “crime”: a publicação, a 11 de Novembro de 1972, no suplemento “A Mosca” do Diário de Lisboa, de um cartoon de Abel Manta intitulado “Festival”. Procurando ridicularizar as presenças de cançonetistas nacionais no Festival da Eurovisão, a composição, num misto de desenho e colagem, centrava-se numa apropriação da bandeira nacional, na qual a esfera armilar representava o rosto da figura e o escudo delimitava a boca (onde se podia ver um conjunto de dentes de resplandecente brancura e uma língua túrgida), tudo encimado por uma poupa devidamente “lacada”. Rematando o atrevimento, o cartoon fora publicado nas duas páginas centrais do suplemento, logo podia ser usado como um poster (e tê-lo-á sido certamente).

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Como noticiara já o Expresso a 30 de Junho, e depois de vários adiamentos, o início do julgamento teve lugar a 26 desse mês. Defendendo os arguidos, estavam os advogados Abranches Ferrão, Galvão Telles e José Carlos de Vasconcelos, que reuniram um rol de testemunhas onde se contavam José Cardoso Pires e Artur Portela Filho. Surpreendentemente, a censura, para além de ter deixado publicar a notícia, não viu obstáculos à citação do ferrão encoberto que Abel Manta lançou como tentativa de explicação do processo, o qual, segundo ele, só podia  acontecer dada a “falta de treino visual no nosso país”.

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O testemunho de José Cardoso Pires, a “principal testemunha abonatória”, e cujo Dinossauro Excelentíssimo acabara de ser publicado com ilustrações de Abel Manta, foi, já em Julho, novo pretexto para curta nota sobre o processo, voltando a denotar alguma lassidão da censura.

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No catálogo da exposição da obra gráfica de Abel Manta no Museu Bordallo Pinheiro em 1992 (publicado pela Câmara Municipal de Lisboa e, de longe, o melhor livro até hoje sobre a obra de JAM), José Carlos de Vasconcelos escreveu sobre o julgamento:

“Segundo a acusação, ‘o simbolismo dos cinco Castelos das quinas são voluntariamente substituídos pela leviandade de um flash de cançoneta; o símbolo da pátria é posto a latere de um background de opereta’. Sic!
Nas alegações, após meia dúzia de sessões de julgamento com depoimentos escritos, depois de salientar que o sentido do desenho era exactamente o contrário do que lhe queriam dar ‘e uma defesa da Pátria e do seu símbolo contra aqueles que o usurpam, dele se servindo em manifestações artísticas medíocres, ou pior ainda’, tive oportunidade de dizer:
‘Este não foi o processo de João Abel Manta, mas o processo dos seus próprios denunciantes, da censura, do fascismo, de quem pretende impedir toda a forma livre de expressão, nesse caso através da linguagem específica do cortoonismo (…) Um processo que felizmente chegou até este tribunal e que permitira à justiça a absolvição do artista (…) sendo a única sentença condenatória, na consciência de todos os homens livres, a do regime tirânico que trouxe para o Banco dos réus um grande artista e um cidadão como João Abel Manta’.
O Tribunal era um tribunal comum, e não de excepção como o Plenário, e João Abel foi de facto absolvido, absolvição que a Relação de Lisboa confirmou. O processo serviu para lhe dar ainda mais notoriedade, näo obstante as notícias do julgamento serem quase integralmente proibidas, e para atiçar contra ele, com ímpeto redobrado, a maquina censória.” (José Carlos de Vasconcelos, “A Grande Arte de João Abel Manta”,  in João Abel Manta – Obra Gráfica, CML, Lisboa, 1992, p. 49).

Era o regime a implodir em ridículo, permitindo brechas no bloqueio à cobertura pela imprensa do processo que revelavam os sinais dessa implosão e as provas desse ridículo, e tentando ocultar uma impiedosa perseguição censória numa aparente leveza de processos (não julgando o cartoonista no Tribunal Plenário – que condenara duramente os arguidos em processos semelhantes na década anterior – mas num tribunal comum). Menos de um ano depois, o Estado Novo desabava finalmente, para dar lugar a um “novo” regime que, à imagem do anterior, parece manter uma relação confusa com a bandeira nacional.

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A capa do ano (até agora)

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Capa de Pornocracia de Catherine Breillat, edição da Teorema de 2003. E uma pergunta (inocente): a Leya (que irá, certamente, aproveitar a publicidade gratuita concedida pela PSP de Braga) autorizaria a mesma capa se o livro tivesse sido publicado depois da “anexação” da Teorema? Algo a que talvez o Fernando Mateus possa dar uma resposta…

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