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Ecos distantes da urgência febril de editar (lembrando ainda os 50 anos da morte de Alves Redol)

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Faltava um estudo em profundidade de um dos períodos mais férteis editorialmente e mais conturbados cultural, social e politicamente da história portuguesa


Arrisquemos o axioma: em Portugal adora-se (ou diz-se adorar) a literatura; os livros nem por isso. Matizemo-lo: se o escritor, ou melhor, o “autor” e o seu comércio com a musa são tema de incontáveis teses dentro e fora da academia e mesas de discussão em todos os inúmeros festivais pelo país, o editor é, em geral, a vil e apagada figura cujos indiscerníveis esforços lá conseguem produzir os livros daquele e levá-los aos escaparates, mas que para pouca coisa mais parece servir (a não ser como degrau numa escalada imparável até ao topo, caso o “autor” tenha, para além da musa, sido tocado também pela fortuna, mas essa é outra conversa).

Se, de um lado, temos todo um edifício cultural com décadas de exegese e historiografia da literatura nacional e de hábito de apoio e apreciação mais ou menos oficial dos escritores (bolsas, prémios, homenagens, a frequência do circuito das feiras e festivais, etc) e de recolha dos seus espólios, do outro estamos carentes até de uma história da edição portuguesa de referência e habituados à perda ou dispersão caótica dos espólios de editores ou empresas editoriais: apesar de brilhantes trabalhos parcelares sobre determinados períodos ou editoras (como os de Nuno Medeiros, João Luís Lisboa, Daniel Melo e outros contribuintes, muitos vindos da Sociologia da Cultura), a falta de uma estrutura como o francês IMEC (Institut Mémoires de l’Édition Contemporaine, que, com o apoio estatal, desde 1988 recolhe e arquiva espólios de gente ligada à edição contemporânea) e a acima aludida atitude mental de subestimar o trabalho editorial no cômputo das valências culturais têm minado o caminho oposto a este cenário. Exemplos não faltam, mesmo à espuma das coisas, traindo o que lhes subjaz: quando Vitor Silva Tavares morreu em 2015, a RTP titulou no seu site que fora um “escritor” a morrer; a INCM, a editora e gráfica estatal, não publica nem vende nas suas lojas qualquer livro ou colecção dedicada ao estudo e história da edição nacional; nas livrarias, qualquer livro que se atreva a cair dentro deste género acabará enfiado nos “estudos literários”. E etc. Culpa partilhada, sem dúvida, entre editores de expressivas carreiras que não nos deixaram testemunho autobiográfico das mesmas (o memorialismo ou a reflexão escrita sobre o seu próprio trabalho são características quase inteiramente ausentes da tradição editorial portuguesa no último século) e as empresas editoriais “históricas”, que não mostraram até hoje qualquer interesse em investir na investigação e publicação de monografias sobre as suas próprias histórias, “habituando” assim o mercado a este tipo de conteúdo: costumo apontar o exemplo da Dom Quixote, que nunca publicou um livro bem documentado e ilustrado sobre o trabalho notável da sua fundadora Snu Abecassis na primeira década da editora, mas lembro-me também da oportunidade perdida que foi a edição de Babel sobre Babel em 2010, celebrando a criação do grupo homónimo a partir da fusão de uma mão cheia de editoras que marcaram a história cultural do século XX, mas em que a parte dedicada a essa história era ínfima, acabando o livro por ser mais um vácuo exercício de narcisismo.

Revolta-de-Maio-1968

De 1968…


Dada esta míngua, é de suma importância o aparecimento no mercado nacional, pela Parsifal, do livro de Flamarion Maués Livros que tomam partido: edição e revolução em Portugal, 1968-1980 (adaptação de uma tese de doutoramento na Universidade de São Paulo), uma importância a vários níveis. Antes de mais por nos lembrar que faltava um estudo em profundidade de um dos períodos mais férteis editorialmente e mais conturbados cultural, social e politicamente da história portuguesa, o que vai da assunção de Marcello Caetano ao leme do Estado Novo em 1968 ao fim da “revolução em curso” com a chegada ao poder de uma aliança partidária de direita com maioria, em 1980, doze anos que cobrem o pleno funcionamento da censura salazarista/marcelista e das apreensões e proibições de livros, o boom da edição política no PREC e, por fim, a brutal colisão com uma realidade pós-revolucionária de aguda crise financeira, de desencanto com o engajamento político e a correspondente recessão da procura de livros “que tomavam partido”, em benefício do regresso a uma procura de entretenimento que a televisão explorará em crescendo, uma conjuntura que ditará o fim de dezenas de projectos editoriais. Para além da minuciosa e objectiva organização de um tal volume de dados, o valor deste livro está em não fugir da linha central do projecto, a focagem no engajamento político destas editoras (das já existentes em 1968 a dezenas de outras que foram sendo criadas até 1980), quer sob o governo marcelista, quer já depois da Revolução, mediante graus de “politização” do seu catálogo e da sua posição face à “situação” anterior e posterior a 1974, abrangendo um espectro vastíssimo de editoras da extrema-esquerda à extrema-direita. Acrescendo de modo substantivo a esse valor está a exaustiva recolha de depoimentos entre sobreviventes destas batalhas, editores de projectos tão importantes como a Afrontamento, a Prelo, a Ulmeiro, a Centelha ou a tomarense Nova Realidade, que é, sem dúvida, a mais valiosa pepita deste tomo, não só “humanizando” a frieza e o rigor estatísticos a que um projecto destes deve obediência, mas dando testemunho de batalhas pela palavra impressa em momentos de aberta repressão ou de caótica atomização política, em que o engenho e a inteligência de alguns editores ficam bem revelados (note-se o modo astuto como a Afrontamento conseguiu publicar textos com a transcrição de julgamentos no Plenário, por exemplo). O trabalho a fundo do autor sobre a edição de resistência à ditadura brasileira torna a sua uma voz particularmente útil na necessária discussão sobre este esquecido período da edição nacional, a que este livro dá uma contribuição de peso.

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… a 1980


Há por aqui histórias fascinantes, que o peso estatístico não esconde e ajuda até a fazer ressaltar, como, por exemplo, a da Portucalense, pequena editora portuense próxima da situação que, por morte do fundador em 1971, cai nas mãos do herdeiro José Oliveira, que em apenas dois anos a transforma numa plataforma de edição de textos radicais de esquerda, todos proibidos, até desaparecer na clandestinidade. Exemplos como este, de urgência febril de intervenção política, relatados em primeira mão ou através de uma miríade de fontes, abundam neste livro, ecos de um tempo conturbado em que o livro era meio privilegiado para essa intervenção dada a sua maior facilidade em escapar ao “exame prévio” censório e o seu estatuto de objecto cultural por excelência para uma classe média-baixa em busca de instrumentos de “melhoramento” antes de 74 e, depois, de informação detalhada sobre o novo mundo (estatuto hoje, e de há muito, perdido).

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Spread de um dos números de Dezembro de 1969 da revista Notícia, com texto de Luiz Pacheco sobre a morte de Alves Redol


Na sessão de apresentação do livro, na Biblioteca das Galveias em Lisboa, António Mota Redol fez uma revelação que, curiosamente, me poderia obrigar a refazer a argumentação montada nos dois primeiros parágrafos: foi o dinheiro dos direitos de autor pelas vendas dos livros do seu pai, Alves Redol, que pagou os custos desta edição, através da Associação Promotora do Museu do Neo-Realismo. Ou seja: acabou, finalmente, por ser um autor morto há 50 anos a vir em socorro de um livro em que os autores têm parte muito secundária face aos editores. Pedir um maior aparato visual ou a inclusão de cor em “extra-textos”, se justificável, seria exigir um risco financeiro para além do já notável esforço em resgatar esta volumosa obra (quase 700 páginas) dos corredores da Academia, um risco que mais seria exigível a uma distraidíssima INCM. Melhor será pensar que uma tão violenta e refrescante lufada desses ventos dos anos 70 nos abre apetite pelo resgate de alguns livros esquecidos sobre essa década de perigos e encantos, à cabeça dos quais estaria, por exemplo, Títulos, acções e obrigações: a cultura em Portugal de Eduarda Dionísio. Que os editores hodiernos se mirem no exemplo destes de há 50 anos e arrisquem. E que frutifique o exemplo de Alves Redol e dos seus herdeiros em apoiar a divulgação e preservação da memória da edição nacional, perante a escandalosa inacção de instituições que deveriam fazê-lo.

(Versão mais curta publicada no jornal Público aqui)

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Compondo o puzzle

O século XX permanece estranhamente arredio da historiografia portuguesa do livro e da edição, como se fosse um objecto complexo demais para ser abordado de outra forma que não seja por estudos de parcelas temporais. Uma tentativa de sumariar os últimos quarenta anos da edição nacional, recentemente publicada, deixa-nos com mais perguntas do que respostas, e obriga-nos a um complemento com outros livros.

Entrada já a segunda década do novo século, continua a faltar um tomo de referência sobre a edição de livros em Portugal no século XX. Falta-nos, por exemplo, o que os brasileiros têm em O Livro no Brasil de Laurence Hallewell ou, numa versão mais ligeira e ilustrada, em Momentos do Livro no Brasil, uma excelente edição de 1998 da paulista Ática. Apesar de estudos sólidos sobre o mercado editorial e livreiro até ao século XIX (por autores como Artur Anselmo ou Fernando Guedes) e de aportações internacionalmente reconhecidas na área mais genérica do estudo da leitura e do cruzamento do livro com as novas tecnologias (como é o caso dos escritos de José Afonso Furtado), as conturbadas décadas de novecentos, nas quais a edição portuguesa, apesar de uma estrutura atomizada e frágil e de uma difícil coabitação com os tempos (sobretudo, durante o Estado Novo), conseguiu produzir – graças ao trabalho de editores, tradutores, grafistas, ilustradores, etc – objectos bibliográficos de valor extraordinário, essas décadas de novecentos, dizia, continuam arredadas da análise historiográfica. A fraquíssima produção no campo das memórias ou das biografias de actores relevantes na edição concorre também para esta lacuna, e as monografias sobre determinadas casas editoriais, que poderiam servir de tijolos na lenta mas segura contrução de um edifício historiográfico – e deveriam ser da responsabilidade das próprias editoras, no caso das ainda sobreviventes – são objectos raros ou insatisfatórios (Babel sobre Babel de 2010, por exemplo, um volume que poderia ter sido uma história conjunta e bem documentada de uma mão cheia de editoras históricas, acabou por reservar apenas uma minúscula secção para esse fim, mostrando à evidência que os “grupos editoriais” têm uma relação problemática com a história e a memória de que são oficialmente portadores).


Não será, infelizmente, o levíssimo volume (menos de 200 páginas) de Rui Beja recentemente publicado, A Edição em Portugal 1970-2010 (APEL, 2012), a compensar esta míngua de substância. É precisamente pela sua paradoxal leveza (dado o âmbito temporal que se propõe cobrir, e as dramáticas mudanças sociais, culturais e políticas ocorridas nesses anos) que nos surpreende à partida. Não sendo, formalmente, mais do que uma tese de mestrado apresentada na Universidade de Aveiro, as excessivas rigidez e compartimentação (típicas deste tipo de documentos académicos) são imediatamente expressas na capa (que ganha assim, pelo menos, em “transparência”). Rui Beja fez parte, durante décadas, da direcção do Círculo de Leitores, tendo sido recentemente presidente da APEL, pelo que se esperaria deste livro, para mais com a ambição que o título expressa, um fôlego maior e, sobretudo, uma maior atenção aos detalhes do que está no âmago do trabalho quotidiano com os livros: as relações conflituosas, apaixonadas, imperfeitas de homens e mulheres de várias extrações sociais, competindo ou colaborando entre si para a publicação e produção de livros. Vindo da área financeira, o autor será compreensivelmente menos sensível a esses ecos da “comédia humana” que compõe o húmus desta actividade, preferindo as esferas celestes dos números e das “ententes” das direcções associativas, afinal o núcleo da sua experiência: quanto a editores independentes nestes 40 anos, estamos limitados a uma listagem de editoras e algumas linhas para cada uma, onde aliás não faltam inclusões estranhas (a Contraponto de Luiz Pacheco é mencionada em sete linhas [p. 30], das quais duas para informar que é, hoje, “uma chancela” do grupo Bertrand!…) e indesculpáveis ausências (onde estão a Afrodite, a &etc, a Antígona, a Inova, por exemplo?). Como era abrir no Porto uma editora no final dos anos 60 (Inova)? Como era abrir uma editora durante o estertor do Marcelismo (Teorema ou Assírio & Alvim)? E como era abrir uma durante o PREC (Caminho) ou na ressaca do mesmo (Relógio d’Água)? Perguntas sem resposta. Onde o autor parece estar mais à vontade é nos capítulos centrais, em que passamos pela carreira do Círculo de Leitores, pelas iniciativas governamentais de apoio à edição e à leitura, pela concentração no mercado livreiro e, depois, editorial, e pela história da APEL. (Um capítulo final sobre a “revolução digital” é uma quase perda de tempo e páginas – trinta – em que, para além de citações do inevitável Furtado, pouco mais se retira do que as apostas da Porto Editora e da Leya no comércio online e as experiências da Babel com o livro digital nas Feiras). Um dos melhores momentos do livro, porém, em que o autor arrisca até umas subtis e raríssimas “estocadas”, é o relato do “impasse” da Feira do Livro de Lisboa de 2008. Mas mesmo aqui, no seu campo de especialização, ele peca por defeito de aprofundamento: por exemplo, porque foi “demitido” Lopo de Carvalho do Instituto Português do Livro em 1986 (p. 73)? E afirmar que “talvez que à atribuição do Prémio Nobel a José Saramago, em 1998, não tenha sido totalmente alheia a visibilidade internacional [da presença portuguesa em Frankfurt em 1997]” (p. 84), não carecerá de maior elaboração?

Resta, pois, como o próprio autor admite na Introdução, um “repositório factual” com alguma utilidade de consulta e um “contributo” para estudos com outros voos e ambições. Dei por mim a desejar ver aqui mais do Rui Beja do muito interessante À Janela dos Livros (Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2011), raro exemplo de misto de memórias com monografia editorial, onde, por exemplo, a sua entrada para o Círculo de Leitores em 1971 é descrita de forma tão dramática e pessoal, contextualizando perfeitamente as dificuldades de fazer uma carreira na edição em anos de Guerra Colonial. É este contributo pessoal, casuístico, microscópico que falta ao seu mais recente volume, o que faz da Janela o complemento obrigatório na leitura d’A Edição (ambas pecam, contudo, por uma total ausência de imagens, tornando graficamente árida uma história tão rica do ponto de vista do design).

Comecei por afirmar que da bibliografia sobre história da edição nacional no século XX estão ausentes títulos de referência. É altura de me corrigir. O âmbito temporal proposto na obra de Rui Beja remete-me para uma outra que só não arrisco a referir como “a” obra de referência no tema pelas mesmas limitações temporais que balizam o seu estudo. Edição e Editores – O mundo do livro em Portugal, 1940-1970, de Nuno Medeiros (ICS, 2010), ainda que partindo do mesmo cadinho académico, é uma detalhada e riquíssima história da edição no período “crítico” do Estado Novo, com notas utilíssimas que lançam pistas bibliográficas para campos de estudo que o livro não pode cobrir (como, por exemplo, o grafismo particular de certas casas editoriais) e um aparato muito completo, ao qual não faltam dois índices remissivos. Tivesse tido o seu autor possibilidade de recuar vinte anos o início e acrescentar uns trinta ao fim do período analisado, mantendo os mesmos rigor e qualidade nos testemunhos e documentos citados e na prosa final, e teríamos certamente aqui a primeira história da edição portuguesa do século XX capaz de assumir-se como incontornável. No cômputo geral desse puzzle complexo que parece continuar a ser este tema, contudo, o livro de Medeiros permanece como uma das maiores e mais indispensáveis peças, e, no caso de aportações menos substanciais como a de Rui Beja, a sua consulta complementar é, pura e simplesmente, obrigatória.

[texto publicado na revista LER, edição de Outubro de 2012]

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