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Capas do cesto dos proibidos (II)

quando-lobos-uivam-1959Capa de Fernando Lemos para a edição brasileira da Anhambi de São Paulo de Quando os Lobos Uivam de Aquilino Ribeiro, em 1959.

Em rigor, não foi esta edição mas a primeira da Bertrand, em 1958, a incorrer na ira da Censura, que a proibiu, proibição que seria o primeiro passo para um processo judicial a Aquilino. Graças a uma campanha internacional de apoio ao autor, e com receio de uma escalada na publicidade negativa numa altura já muito complicada diplomaticamente para o Estado Novo (depois do annus horribilis de Salazar em 1961), o regime desistiria dos seus intentos.

O Brasil liberal de Juscelino Kubitshcek foi uma dor de cabeça para o regime de Salazar: acolhendo todos os notáveis anti-salazaristas, de Delgado em 1958 a Henrique Galvão depois da tomada do Santa Maria, recebeu também inúmeros artistas e escritores portugueses forçados a abandonar o país temporária ou definitivamente. Foi o caso, por exemplo, de José Cardoso Pires, que chegou a colaborar durante uns meses (sob pseudónimo) com a revista carioca Senhor. E foi também o caso de Fernando Lemos, companheiro da primeira geração de surrealistas portugueses, que fixou estes em retratos fotográficos que são, talvez, as suas mais conhecidas obras.

Na aparente singeleza da capa, na sua quase literal tradução visual do título, esconde-se o primeiro sólido e concertado ataque ao muro censório do Estado Novo: depois de décadas em que a questão da censura à edição fora um assunto “interno”, o “caso Aquilino” tornou-a notória em quase todo o mundo, sendo o Brasil o epicentro do núcleo de resistentes que procuraram dar a conhecê-lo. Foi precisamente em São Paulo também que se publicou, ao mesmo tempo desta edição do romance, Quando os Lobos Julgam a Justiça Uiva, um pequeno volume onde se podia ler os textos integrais de acusação e defesa no caso, antecedidos de uma introdução de Adolfo Casais Monteiro, exilado no Brasil desde 1954 (e que assina também o prefácio ao romance), uma edição que seria impensável em Portugal então e que tem uma importância histórica no contexto da edição nacional durante o Estado Novo, ao aproximar-se dos modelos de edições sobre processos de censura, como o L’Affaire Sade de Pauvert ou L’Affaire Lolita de Girodias em França, ambos de 1957, ou The Trial of Lady Chatterley, a edição que a Penguin publicou sobre o processo ao livro em 1960.

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Um livro, uma capa: as escolhas de Jorge Silva Melo (IV)

TECLADO UNIVERSAL
Fernando Lemos
com um prefácio de Jorge de Sena
colecção Circulo de Poesia
capa de José Escada
Livraria Morais Editora, Lisboa, 1963

Sempre foram especiais – e quase sempre muito belas – as colecções de poesia por cá, onde, ao contrário de outros lugares, a poesia não andou reduzida a editoras especializadas (excepção à beleza: as da Dom Quixote dos anos áureos, Cadernos de Poesia...com a cara do poeta em negativo, mais feio seria impossível).  Pelo contrário, quase todos os grandes editores (excepções: a Bertrand, a Livros do Brasil, e depois a Europa-América) quiseram, a certo passo da sua afirmação intelectual, ter uma colecção de poesia (para perder dinheiro e ganhar respeito crítico?), onde, como é natural ,”a marca” da colecção e a “garantia” da editora  será mais importante do que a especificidade daquele livro.  Possivelmente marcadas pela bela colecção da Ática dirigida por Luis de Montalvor, onde o cavalo alado de Almada surgia trazido pela brisa da poesia, muitas foram as colecções que quiseram mais um logotipo do que uma capa. E assim foram os trabalhos de  João da Câmara Leme para a Portugália, as capas da Guimarães, mais tarde, as de Armando Alves no Porto dos anos 70-80 (ah, o Ouro do Dia)… A Morais, editora fundada por António Alçada Baptista, congregando os jovens vindos da militância católica (e do jornalismo universitário, pois quase todos vieram do importantíssimo jornal Encontro, da JUC, dirigido durante os seus “esplendor na relva” por um João Bénard da Costa de 17-18 anos e já genial), quis, desde os primeiros meses, lançar colecções distintas (textos católicos no “círculo do humanismo cristão”, “cadernos de poesia”). E seria o muito jovem pintor (e militante católico) José Escada (articulista,crítico mas também paginador e ilustrador do Encontro e que já fizera singelas e muito belas ilustrações dos Fioretti  de São Francisco, na mesma Moraes) quem iria desenhar esta capa, (mais do que capa: este logo especial), pensar esta colecção belíssima; capa de linho, o título colado, sobrecapa de acetato duro nos primeiros anos. Vista agora, a colecção é menos interessante do que na altura parecia (o seu prestígio era mesmo enorme nos círculos universitários – e o preço alto para os nossos tostões), e muitos dos autores publicados  foram-se sumindo na areia do tempo. Outros são livros imprescindíveis, como Metamorfoses de Jorge de Sena, Livro Sexto de Sophia, a afirmação do grande poeta do grupo, Pedro Tamen, a breve poesia de Cristovão Pavia, a recuperação de Nemésio, esse nómada de génio. E este Teclado Universal de Fernando Lemos (que só consegui comprar há dois anos, nesse paraíso borgesiano que é a Rua Anchieta dos sábados de manhã, 1.ª edição, 15 euros… e acabei, logo a seguir, por pedir autógrafo ao Lemos!), prefaciado por Jorge de Sena, a segunda recolha de poesias deste artista multímodo que, logo nos anos a seguir ao MUD, se foi para o Brasil (onde ainda vive e de onde vem de vez em quando, para alegria intensa de todos os que, por cá, tanto o amamos).

De si próprio ele diz, como só ele sabe: Fui estudante, serralheiro, marceneiro, estofador, impressor de litografia, desenhador, publicitário, professor, pintor, fotógrafo, tocador de gaita, emigrante, exilado, director de museu, assessor de ministros, pesquisador, jornalista, poeta, júri de concursos, conselheiro de pinacotecas, comissário de eventos internacionais, designer de feiras industriais, cenógrafo, pai de filhos, bolseiro, e tenho duas pátrias, uma que me fez e outra que ajudo a fazer. Como se vê, sou mais um português à procura de coisa melhor. (Fernando Lemos)

Jorge Silva Melo

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