Seis anos depois de um impensável (à data) arranque de catálogo, com o Kamasutra e a Vénus de Kazabaika de Sacher-Masoch (edições prontamente anexadas ao Index censório e retiradas do mercado), e cinco anos depois do julgamento pela publicação de outros dois impensáveis títulos no Portugal rígido, soturno e estritamente vigiado de então (a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica e a Filosofia na Alcova do Marquês de Sade), o editor Fernando Ribeiro de Mello repetiu a jogada em 1971, e ao seu estilo habitual. A dita “Primavera Marcelista” (como ficou conhecido o momento de aparente aligeiramento das rédeas da Censura e liberalização dos costumes que se sucedeu à subida de Marcelo Caetano à presidência do Conselho de Ministros em 1968, substituindo Salazar, e que durou até à morte deste em 1970) não fôra amena para a Afrodite de Ribeiro de Mello, e nem o início de uma colecção de livros infantis (Cabra-Cega) impediu que a Antologia do Conto Abominável fosse proibida de circular e que mesmo a bem sucedida e divulgada Antologia do Humor Português ficasse livre de vigilância.
Um ano depois da morte de Salazar, o editor eleva a aposta. Para inaugurar uma colecção de ensaios, escolhe um título à primeira vista inócuo, quase abstruso. A brasa vem toda no nome do autor. Se a arma de arremesso predilecta na modorra beatífica da Lisboa de meados dos anos 60 tinha sido o sexo, a radicalização política “à esquerda” parece ser a estratégia agora. Publicar um ensaio de Friedrich (aqui aportuguesado para “Frederico”) Engels, o amigo de Karl Marx e fundador do Marxismo, não era, claro está, um sinal de “conversão” do dandy de Campo de Ourique: era, tão simplesmente (e como ele diria vinte anos depois, na sua última entrevista), estar e editar “contra”. Para não variar, o livro foi imediatamente retirado do mercado (pelo que consta da lista dos 900 livros “oficialmente” proibidos pelo Estado Novo, este terá sido o último dos oito livros da Afrodite a sofrer tal sorte).
A direcção gráfica da colecção estava a cargo de José Marques de Abreu, que dirigiu também, a partir de 1970, o grafismo sui generis da colecção de clássicos portugueses (onde se publicaram a Peregrinação ou a Arte de Furtar, por exemplo). “Sui generis” é um eufemismo, neste caso: os livros da colecção de ensaios apresentam-se no formato rectangular que, à época, ganhou alguma popularidade (veja-se a colecção “Livro B” da Estampa, com design de Alda Rosa, ou a colecção “Poesia e Ensaio” que Vítor Silva Tavares criou na Ulisseia, à imagem da colecção “Libertés” de Jean-Jacques Pauvert, e com exemplos internacionais famosos, como os “livros-almanaque” de Cortázar, publicados pela Siglo XXI); a leitura, porém, é feita não no eixo vertical mas transversalmente, com o texto composto em duas colunas. A organização do plano com grossos filetes e o uso de “grotescas” condensadas para os títulos concorrem para o ar implacavelmente “mecânico” destes livros (já na série dos “Clássicos”, por exemplo, os nomes dos colaboradores na capa apareciam como tendo sido “carimbados” em sobre-impressão), e, no cômputo geral do catálogo da Afrodite, para o impacto do “estranho” e do bizarro com que Ribeiro de Mello gostava de envolver os seus livros, facilitando o imediato reconhecimento e a memória visual num contexto não apenas de competição editorial mas, sobretudo, de curtíssima expectativa de vida nas estantes vigiadas pela censura.
Qual o passo seguinte de Ribeiro de Mello, depois de mais um cruzamento com o Index censório? Uma saída à Ribeiro de Mello: sacudir a poeira e publicar, nada mais, nada menos, do que A Sociedade do Espectáculo (La Societé du Spectacle), o ensaio-panfleto incendiário de Guy Debord que lançara a faísca para a agitação de Maio de 1968 em diante. A decisão era de tal forma inesperada e parecia tão irreflectida, perante a internacionalmente conhecida inflexibilidade da censura marcelista, que é o próprio Debord a manifestar primeiro desconfiança na possibilidade de uma publicação do seu texto em Portugal (“Tous les amis au Portugal sont en prison. Comme tu penses, l’éditeur portugais de mon livre n’est plus en état de l’éditer”, numa carta de Abril de 1971 a um amigo), e depois, numa carta de 15 de Maio a Ribeiro de Mello, admiração pela coragem do editor português, indo ao ponto de abdicar dos direitos de autor:
“Je vous donne mon accord pour l’édition portugaise de mon livre La Société du spectacle ; à la seule condition que le texte publié soit exactement celui de la traduction que vous remettra mon ami Alves, sans aucune modification. J’ai moi-même collaboré à la vérification de cette traduction.
Je vous confirme que vous n’aurez pas à payer de droits de propriété littéraire. Je vous abandonne mes droits d’auteur.
[…]
Avec toute ma sympathie pour votre courageuse entreprise d’édition.”
A edição sempre avançou (com tradução de Francisco Alves e Afonso Monteiro e acompanhamento e revisão pelo autor), tornando-se a quarta em todo o mundo deste texto essencial da contemporaneidade, depois da primeira edição francesa de 1967, e apenas antecedida pelas edições italiana, americana e dinamarquesa. Não consta, contudo, que tivesse sido alguma vez proposta a sua proibição: afinal de contas, o nome “Debord” não constava entre os dos fundadores do Marxismo…