Mais um texto meu no Clubalice, editado pela Maria João Freitas, desta feita a reunião de dois posts sobre a estranhíssima relação profissional entre o artista Richard Chopping (tímido, meticuloso, intimista, homossexual) e o autor Ian Fleming (expansivo, egocêntrico, mulherengo e criador de James Bond à sua imagem, real ou imaginada). Pode ser lido aqui.
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“He was a mean and vain man”
Sobre a estranha relação profissional entre o escritor Ian Fleming e o artista Richard Chopping – unidos na criação deste das sobrecapas dos livros da série James Bond da autoria daquele e publicados pela Jonathan Cape nos anos de 1950 e 60 – escrevi já aqui. Neste post pode-se encontrar um documento que torna mais nítidos os contornos dessa relação, e ilustra a tensão inerente ao trabalho de um “artista” na arena da edição comercial, artista esse que era também possuidor de um carácter sui generis e algo difícil. Eis a carta enviada por Fleming a Chopping a 21 de Junho de 1961:
Numa entrevista posterior à morte do autor, Chopping seria ainda mais claro quanto ao que sentia pelo seu “cliente” (e onde gostaria de ter enterrado o punhal que colocou na capa de The spy who loved me…):
He was a mean and vain man. I regret having anything to do with him. The paintings I did for his dust jackets are now worth thousands and they sold as many books. But he would not even let me have me royalties. Quite honestly, I’m sick to death of it all […] I have been swindled all the way along the line. I was quite fond of doing the early work but it became a bore and I hate the books.
I’ve already written here on the quite strange professional relationship between James Bond author Ian Fleming and the artist who did all the classic hardback covers for the series published by Jonathan Cape in the 1950s and 60s, Richard Chopping. I was just lead to this post in which we can read a document that sheds light into that relationship, and illustrates the inherent tension in the work of an “artist” in the commercial publishing arena, an artist who was himself a rather peculiar man. This is a letter sent by Fleming to Chopping on the 21st of June, 1961. In an interview given some years after Fleming’s death, Chopping got a chance to say what he really felt about the man and the books (and made it very clear where he had wanted to stick the dagger he had painted on the cover of The Spy who loved me…).
The Fly, de Richard Chopping
Título
The Fly
Ilustração
Richard Chopping
Autor
Richard Chopping
Edição
Farrar, Straus & Giroux, 1965
(1.ª edição hardback americana)
210 x 145 mm, 292 páginas
Descrição
Num fim-de-semana regado a champanhe e wit no ano de 1964, o artista Richard Chopping (1917-2008) e o editor Giles Gordon (da Secker & Warburg de Londres) reviram, no pequeno apartamento deste, as últimas provas para a preparação do manuscrito do primeiro romance de Chopping. Porque cedia assim os seus preciosos espaço e tempo o editor de uma das melhores casas de Londres a um autor sem qualquer obra publicada à data? Não se tratava propriamente de uma relação profissional ou de amizade muito sólida (anos mais tarde, Gordon descreveria Chopping como alguém “aborrecido” e obcecado com a sujidade e os detritos, e que preferia plantas a todos os outros seres vivos), mas antes o cruzamento de interesses literários com uma inegável oportunidade comercial: Chopping fora, desde o final dos anos 50, o ilustrador “oficial” das capas da série de romances de espionagem escritos por Ian Fleming sobre as aventuras do agente secreto James Bond, que, por essa altura de meados de sessentas, eram já a base de uma máquina de marketing que se extendia a Hollywood.
Chopping entrara na “lenda” de 007 quando Ann Fleming, a mulher do romancista, descobriu as suas naturezas-mortas numa sala adjacente à que servia para uma exposição de Francis Bacon, em 1956. Desse encontro fortuito (apadrinhado por Bacon, um amigo comum), surgiu o convite para a capa de From Russia with Love, em 1957, e a colaboração manteve-se até 1966, com a edição póstuma de Octopussy . A relação Chopping-Fleming era a de um autor de ego enorme e temperamento autoritário e um meticuloso e minucioso artista da “província” (mesmo no auge da fama, Chopping manteve a sua casa em Colchester, onde ensinou desenho de plantas e insectos na Escola de Arte e onde morreria): o que Fleming pedia, Chopping tinha de desenhar exactamente. Mas o autor sabia apreciar a beleza estranha destas ilustrações, e para além de pagar a Chopping acima da tabela da Jonathan Cape (os editores ingleses da série), comprou os originais. Por seu lado, Chopping odiava, para além da pouca liberdade criativa, a “glamorização” da violência nos textos de Fleming. Mas é notório, na série de capas produzidas, que o atrito produziu resultados fascinantes: a obsessão com os símbolos psico-sexuais de força e poder (desde a enorme Smith & Wesson de Golden Gun, de 1965, que atravessa capa, lombada e contra-capa [Prova A – imagem retirada daqui], à navalha que penetra por entre as falanges de um esqueleto para espetar a carta da Rainha de Ouros de Thunderball, 1961[Prova B – imagem retirada daqui]) juntou-se à obsessão do detalhe orgânico de Chopping. Essa tensão de obsessões é traduzida na aparição gradual (certamente, numa cedência de Fleming) de moscas, que anunciam o caos e a putrefacção e dão o contra-ponto necessário a toda esta exibição de beleza fria e algo estática. E são as moscas que dominam a última capa de Chopping para a série (Prova C – imagem retirada daqui): era como se, após a morte de Fleming, a tensão se resolvesse e Chopping pudesse avançar com os seus peões sobre este tabuleiro.
Apesar da sua localização “provinciana”, Chopping estava no centro do grupo de artistas que revolucionaram a pintura “naturalista” inglesa, nos anos 1950. Para além de ensinar no Royal College of Art a partir de 1961, a sua amizade com Lucien Freud e Francis Bacon durou décadas, e com Bacon os laços chegaram ao ponto de Chopping tratar dos assuntos do famoso pintor após a morte deste em 1992 (é de 1978 o duplo retrato que Bacon pintou de Chopping, Prova D).
Além disso, a sua relação com a nata da edição inglesa vinha já dos anos 40, com a colaboração com Francis Partridge (do Círculo de Bloomsbury) numa série sobre a flora das Ilhas Britânicas (que a Penguin interrompeu por motivos financeiros). Em 1945 publicara Mr Postlethwaite’s Reindeer and other stories, escrito e ilustrado por si, e que a BBC depois adaptou. Nesse ano de 1964, portanto, com a morte de Fleming, Chopping parecia estar livre dessa pesada tutela e pronto para ter o seu nome (e não apenas a sua arte) na capa de um romance. E, ironicamente, decidiu não o fazer.
O que me parece espantoso nesta capa (possuo um exemplar da 1ª edição americana da FS&G, que segue o design da Secker & Warburg), tendo até em conta as altas expectativas comerciais depositadas neste projecto, é não apenas o total desrespeito pelas “regras” da organização e hieraquia de informação no desenho de uma dustjacket, omitindo tudo (até o nome do autor e título, que só aparecem na lombada) a não ser a ilustração, como também, e sobretudo, a inversão do imperativo da atracção do leitor que sempre guiou, mais ou menos conscientemente, a produção de capas para livros. Chopping parece estar a avisar seriamente os seus potenciais leitores, mais do que a seduzí-los. Nesta imagem, que poderíamos considerar sem dúvida repulsiva, materializa-se o velho paradoxo da estética aristotélica: o que nos causa repulsa na natureza é, de certa forma, sublimado e transformado em fonte de prazer pela excelência da reprodução pictórica. Foi também, no seguimento do extenuante xadrez criativo com Fleming, uma forma de Chopping afirmar o império das forças do caos natural sobre os símbolos culturais de estatuto ou beleza: a mosca (cujo percurso os primeiros parágrafos do livro descrevem com absoluta minúcia, numa perfeita relação entre conteúdo e forma na qual a capa é um elemento essencial e preparador) pousa sobre um rosto que está deitado e parece não reagir… Cuidado, pois, ao abrirem este livro.
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