Próximo texto no Clubalice: “Quem foi o pássaro pintado?”, uma análise da obra e vida de Jerzy Kosinski em volta de uma estranha capa de Roy Behrens para a edição de 1976 de The Painted Bird (O Pássaro Pintado). Na imagem, a capa de Rocha de Sousa para a edição da Ulisseia de finais dos anos de 1960, apreendida pela PIDE, e que durante muitos anos (e até à “nossa” edição na Livros de Areia) foi a única edição em Portugal desse título.
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“Quem foi o pássaro pintado?”
Chance, de Jerzy Kosinski
Título
Chance
Autor
Jerzy Kosinski
Edição
Livros de Areia Editores, 2007
190 x 130 mm, 136 páginas
Descrição
Ao olhar para esta capa, a bem mais de um ano de distância da altura da sua produção, creio que poderia ter acrescentado um elemento para a criação desta imagem, que procurei que representasse uma certa ideia de mediocridade cultural, tão precisamente associada por Kosinski à tele-dependência: um naperon (com motivos obviamente floridos) na base da jarra de flores, pendendo sobre a TV. De resto, o velho monitor (contemporâneo do tempo da narrativa, o início dos anos 1970), a jarra em flagrante destom e as flores garridas até ao limite da saturação cumpriram a missão a que os destinei. Mesmo os olhos nas flores (que complementam a falta dos ditos no rosto no monitor) não levam a capa para onde eu não a queria levar, ou seja, para a comicidade: a história de Chance, é, no fundo (e apesar de episódios muito cómicos), uma triste novela de mal-entendidos, a de um homem “impossível” no mundo moderno (um Adão virginal e impoluto pelas vagas da cultura e da sofisticação) e, tal como o herói de Admirável Mundo Novo de Huxley, destinado a uma progressiva perda dos seus já poucos restos de identidade.
A paleta foi retirada de um livro anterior (Em Busca do Livro de Areia de Rhys Hughes), uma gama muito limitada de ocres, beges e branco, à qual acrescentei o Magenta a 100%, um toque de absurdo (e algo preocupante) optimismo que limitei ao título (em Fournier, única fonte usada neste e noutros livros da LdA) e às pétalas (com um ligeiro reforço nos contornos do monitor). Todas as imagens são coloridas “artificialmente” no InDesign, o que me permite mantê-las dentro dos limites da paleta escolhida e dar-lhes um ar “velho” ou batido pelo tempo, para o que uma ligeira textura sobreposta em transparência (feita a partir de uma versão das imagens respectivas, contrastadas ao máximo e passadas a bitmap de linhas no Photoshop) contribui sobremaneira para definir e acentuar graficamente.
Iconograficamente, seria difícil fugir à presença de um monitor de TV, objecto omnipresente na narrativa, e à sua conjugação com um motivo vegetal (anteriores capas que vi optaram, ocasionalmente, por uma ou outra via em exclusivo, entre a TV e o jardim, ainda que a maioria siga a da fusão). A capa da edição brasileira (da Ediouro, com um título, O Vidiota que, ainda que respeite uma expressão usada por uma das personagens secundárias da narrativa, me pareceu, na qualidade de tradutor do texto de Kosinski, alheia ao vácuo moral e cultural que Chance, o jardineiro, representa, e demasiado tendenciosa a priori para um leitor que pegue no livro pela primeira vez – Prova A, a 1.ª a contar da direita na fila inferior) opta até pela via televisiva ao extremo, criando um resultado mais abstracto. Uma terceira via tem optado, como é claro, pela associação ao filme de Hal Ashby e à imagem de Peter Sellers.
Pela minha parte, procurei uma capa que misturasse uma certa dose de realismo com “cor” de época (os objectos da vida da personagem, o seu próprio monitor de TV no quarto) com algo de colagem absurda ou onirista que a tornasse intemporal e, porque não, encaixada na época em que esta edição foi feita. E se o texto de Kosinski ganhou de novo força durante o consulado de George W. Bush (leia-se o curioso texto de Carol Hamilton sobre o carácter “profético” deste livrinho, texto que também traduzi e que a Livros de Areia disponibiliza gratuitamente no seu site, aqui) sempre me pareceu que havia lugar nesta capa para as feições do (ainda) Presidente dos EUA. Tirando estes possivelmente criticáveis pretextos, o seu icónico sorriso inseguro e estranhamente infantil (e apenas o sorriso: os olhos são de outra fonte) era perfeito para uma aproximação física à personagem de Chance (que nunca é descrita na novela), um homem sem qualquer substância que chega, em cinco dias, às portas da vice-presidência da super-potência americana. Devo dizer que uma foto de Bush em particular me intrigou pela sua quase perfeita adequação a esta minha opção: está no site da NASA e mostra o Presidente recostado numa cadeira da Sala Oval, a ver o directo do lançamento do Discovery, com uma janela em fundo através da qual se vê… um jardim (Prova B). Por motivos de necessidade de arrumação de uma imagem mais compacta e híbrida num eixo vertical (e apenas na capa, sem extensão à contra-capa), abandonei esta via (e a questão dos direitos autorais sobre esta imagem não foi dispicienda também…).
Para alguma surpresa minha, esta opção mereceu alguns sobrolhos franzidos em críticas (aliás, muito positivas) na imprensa escrita (Filipe d’Avillez, da Os Meus Livros, por exemplo, aqui; já Mário Santos, no Ipsilon, não fez qualquer referência a Bush, aqui) e na blogosfera (num texto de Nuno Galopim). Mais de um ano depois, agora que um novo ocupante da Sala Oval se prepara para entrar em cena, creio que a particularidade das feições de Bush nesta capa regredirá, com o andar do tempo, para o que ela evidencia aqui: um símbolo esbatido de um poder sem substância filosófica, um rosto e uma pose oficiais, e quase anónimos nessa condição, amarelecidos pelo tempo, e duplamente: o tempo que passou sobre este velho monitor de TV (que poderia ter estado no quarto de um jardineiro de uma qualquer mansão de Washington em 1970) e o tempo que começará a agir sobre a nossa memória do rosto de Bush, que naquele encerrei nesta capa para sempre.