No momento em que preparo para a revista LER uma recensão ao próximo volume da Colecção D da INCM (com direcção editorial de Jorge Silva da Silvadesigners!), um volume dedicado ao polivalente Paulo Guilherme (1932-2010), “arquitecto, cineasta, escritor, pintor, ilustrador, designer de livros, de interiores, de selos, de moedas, dono e decorador de clubes nocturnos”, encontro por acaso numa feira mensal de velharias um exemplar de A Noite que Fora de Natal de Jorge de Sena, publicado pelos Estúdios Cor em 1961. Num formato compacto (19 x 12 cm, 40 páginas), tratou-se de uma edição especial, um “brinde” de Natal oferecido pela editora aos leitores e aos agentes do mercado, coisa que se repetia e se repetiria anualmente até o final da década: pedia-se um conto inédito da gaveta (ou um original escrito ad hoc) a um autor do catálogo da editora e a um ilustrador uns três desenhos (incluindo o da capa). No caso, calhou precisamente a Paulo Guilherme a ilustração deste conto de Jorge de Sena (que publicara já nos Estúdios Cor as Andanças do Demónio em 1960, e incluiria o conto no volume Novas Andanças do Demónio de 1966).
Os três desenhos de Paulo Guilherme que acompanham a plaquete demonstram uma execução essencialmente linear, de traço escorreito e depurado, sem quaisquer notações de meios tons com recurso a hachuras ou qualquer outra forma gráfica. Faltando-lhes talvez a capacidade expressiva e de estilização “económica” no desenho que algumas das suas mais conhecidas capas exibem (as de Manhã Submersa de Vergílio Ferreira, Filhos da Trevas de Morris West ou A Gata de Collette), são, ainda assim, próximas, no estilo minucioso da linha, a algumas capas para livros de Henry Troyat publicados pela Clássica no início da década de 1960 (do mesmo Troyat de quem Paulo Guilherme faria muitas capas, incluindo a de Ruína cuja edição me lembro de ver entre os livros do meu pai nos anos 70). Enfim, nada a apontar, dir-se-ia: um trabalho limpo e profissional. Contudo, na “Nota” relativa ao conto publicada na edição das Novas Andanças (e que consultei na edição conjunta dos dois volumes Antigas e Novas Andanças do Demónio, uma publicação póstuma de 1981 com a chancela do Círculo de Leitores), Jorge de Sena lança dúvidas precisamente sobre a concordância dos desenhos com o texto. Dúvidas legítimas de autor ou marcadas pela inevitável subjectividade a que não escapam nem (ou sobretudo) os autores, ei-las nas palavras de Sena:
“Foi publicado pela Editora Estúdios Cor, de Lisboa, como ‘brinde’ de Natal distribuído à crítica, seus clientes e amigos, em Dezembro de 1961, numa plaquete ilustrada com desenhos que seriam bons se estivessem de acordo com o conto” (pág. 233).
Tentando a arriscada posição de advogado de defesa do ilustrador (sobretudo perante o peso e a autoridade de Sena, alguém que, nos seus melhores contos – como por exemplo “Super Flumina Babylonis” destas mesmíssimas Novas Andanças – revelava uma enorme capacidade de “imaginar”, de sugerir imagens, por vezes complexas, através das palavras), proporia à consideração o primeiro dos três desenhos do pequeno livro, concedendo que os outros dois poderão não ser merecedores de uma tarefa tão delicada. O desenho “ilustra” a cena em que Marco Semprónio, numa sala do palácio imperial de Roma, observa um escravo que Nero, velho e caprichoso, acabara de matar por impulso.
Eis o excerto do conto com o qual a imagem terá mais directa ligação:
“O olhar vagueou-lhe do rosto envelhecido do César para o escravo também nu que, em frente deles, pendia, pelos pés, de um varão de ferro, com as pontas dos dedos a roçarem de leve o mármore do pavimento. Mais uma vez Marco Semprónio verificou que um corpo de homem, assim suspenso e exangue, tinha uma beleza estranha que não teria noutras circunstâncias, por belo que fosse. E aquele era-o. […] Apurando a vista, examinou-o minuciosamente, e deteve os olhos no pequeno golpe no pescoço, de onde, escorrendo em fio pela cabeça acima – sorriu da inversão dos termos que a suspensão impunha — , o sangue pingava escuro para uma bacia de prata entre as mãos pendidas. Um instante apenas, meditou em porque esquecera a bacia, a não a vira quando se sentara, mas às mãos, mais nada. Por certo, as mãos pareciam vivas, e é que estavam ainda vivas. Sentiu um saboroso arrepio, uma saudade antecipada e agradável daquelas mãos que morriam. Suspirou.” (A Noite que Fora de Natal, Estúdios Cor, Lisboa, 1961, p. 15-16)
Tenho de confessar que este desenho de Paulo Guilherme (que aparece na página 17) consegue, para mim pelo menos, traduzir esse misto de admiração “pagã” do corpo, por parte de Marco Semprónio, e da estranheza com que o facto de estar a ver um quase-cadáver mancha essa apreciação da beleza física (a fronteira entre o fim do paganismo – Semprónio começa por ouvir a “notícia” da morte do “Grande Deus Pã” da boca de um marinheiro – e a ascensão do Cristianismo – Saulo de Tarso, depois canonizado como São Paulo, é o velho amigo do cônsul romano que o visita no final do conto – constitui precisamente o contexto histórico e cultural da história). Na relação entre esta imagem e este excerto podemos, aliás, encontrar um eco daquela velha máxima da estética aristotélica segundo a qual a mimesis (a base de todas as actividades ligadas à experiência estética do mundo, através da reprodução ou imitação deste) teria um tal poder de transfiguração que nos permitia apreciar a “beleza” na recriação de coisas que nos causavam repulsa quando experimentadas em primeira mão: ou seja, poderíamos achar “bela” a representação pictórica de um cadáver (ou a representação teatral de um assassinato), ao contrário do que sentiríamos ao vermos realmente um cadáver ou alguém a ser morto.
Eis, então, a minha (quiçá insensata) defesa do ilustrador Paulo Guilherme neste “caso”, com as devidas desculpas aos “senianos” inveterados por considerar que, em pelo menos um dos três desenhos, o autor terá sido expedito demais no duro julgamento que proferiu.