Tag Archives: Moebius

Dr. Moebius e Mr. Lovecraft

Um Lovecraft sorumbático e concentrado na escrita revela, por baixo da mesa, a sua verdadeira natureza “cthulhiana”. Eis o único cruzamento “oficial” entre Moebius (Jean Giraud, 1938-2012) e H.P. Lovecraft: a capa desta antologia de cartas do autor de The Case of Charles Dexter Ward e At the Mountains of Madness publicada pela Glénat em 1976 na sua colecção “Marginalia”. Uma pequena (em todos os sentidos: trata-se de um volume de 20×11 cm e com 80 páginas) cápsula gráfica do seu tempo: a Futura Display e o estilo do desenho, denso, carregado, pleno de hachuras nos meios-tons e com áreas de negro intenso, remetem para o Moebius do preto-e-branco de Approche sur Centauri ou Cauchemard [sic] Blanc. “Oficial”, diga-se, pois, de resto, o ambiente e, sobretudo, o bestiário monstruoso do autor americano impregnavam todo o universo das bandas-desenhadas de Moebius dos anos 70.

Giraud usara pela primeira vez o seu agora universalmente conhecido pseudónimo em histórias curtas na revista Pilote no início dos anos 60, mas abandonara-o durante uma década. Quando, nessa mesma revista, publicou La Déviation em 1972, assinando ainda como “Gir”, era, contudo, já notório que o desenhador de Blueberry estava a querer explorar outras facetas da sua esfuziante criatividade e a entrar de cabeça na ficção-científica e no fantástico. Antes do arranque da revista Métal Hurlant em 1975, Giraud tinha já usado a assinatura “Moebius” nalgumas capas e ilustrações para edições do género, como as que fez para a editora OPTA, nas colecções “Anti-Mondes” e “Fictions Spécial”  (por exemplo, as edições de Histoires Stellaires de 1968 e L’Ile des Morts de Roger Zelazny em 1972).

Na colecção “Aventures Fantastiques” da mesma editora (em edições graficamente muito cuidadas e de grande impacto visual, com várias ilustrações, até nas guardas), Giraud ilustrou ainda livros como Contes de Terreur de Robert Bloch em 1974. São notórios, nestas capas de “Moebius antes de Moebius”, o contágio crescente do exuberante grafismo que o desenhador começava a explorar fora do seu trabalho “diurno” na série Blueberry e, mais importante, a popularidade e o apelo comercial que, naqueles anos, os meios de narrativa gráfica das bandes déssinées tinham na edição de livros dentro destes géneros em França (como exemplo, note-se que a guarda da edição dos contos de Bloch é ilustrada com o que é, para todo os efeitos, uma vinheta de banda desenhada, incluindo até balões de diálogo).

Advertisement

Leave a comment

Filed under Capas, Livros

Gare à la bête

Com o embalo do texto que escrevi para o próximo número da revista Bang, publicada pela Saída de Emergência, com o título Nova vaga, novas capas e que versa sobre o portfolio renovador de capas de Ficção Científica (ou Ficção Especulativa, como então foi moda dizer-se) de algumas editoras americanas e inglesas entre meados da década de 1960 e os inícios ou meados da década seguinte, pus-me a pesquisar portfolios de outras paragens dentro do género por esses anos. A capa em cima encontrei-a pelo método que mais me apraz praticar no ebay, o da pura casualidade. É da edição francesa de 1976 de The Atrocity Exhibition (La Foire aux Atrocités) de J.G. Ballard, publicada pela Champ Libre na sua colecção Chute Libre. A continuação da pesquisa levou-me a este site, onde pude encontrar quase todo o portfolio das capas desta série de FC que durou entre 1974 e 1978. A Champ Libre, fundada por Gérard Lebovici (assassinado em circunstâncias misteriosas em 1984) era uma editora radical, nascida dos événements de 1968, e, como muitos projectos editoriais movidos por esse espírito e por esses anos, parece que soube aliar um gosto visual ímpar à publicação de livros “difíceis”. Dentro do tipo de portfolios que procuro, ou seja, dentro da possível heterodoxia gráfica num género sempre tão conservador, estas capas da Champ Libre são do mais inesperado que pude encontrar. (Para além da questão das vendas, presumo mesmo que o fim da colecção poderá ter tido algo a ver com o arrojo de algumas delas….).

 

É de notar que os editores recorreram aqui à oferta de grande qualidade de ilustradores vindos ou ligados ao universo da BD francesa nesses anos, que são já anos pós-Pilote ou Métal Hurlant, revistas que criaram uma concentração de grandes desenhadores por metro quadrado ímpar em todo o mundo. Não é pois de admirar ver duas capas de Moebius (e que capas!…), e uma de Jacques Tardi (Le Bal des Schizos), antes deste se tornar um dos autores de referência da revista À Suivre.

Uma outra série publicada por outra editora pela mesma altura, a Contre Coup da Sagittaire, parece ter recorrido à mesma estrutura de layout e contenção tipográfica, ainda que preterindo a ilustração em favor do tratamento e tintagem de fotografias. É o mesmo programa de “choque” visual, mas com alguns excelentes resultados.

In English soon.

Leave a comment

Filed under Capas