
Para quem durante algum tempo sorveu avidamente os textos de Luiz Pacheco, um escritor como Urbano Tavares Rodrigues fica, digamos, algo “manchado” se lido depois, ou melhor, fica manchada pela força da opinião de Pacheco a nossa disponibilidade para ler qualquer coisa de Urbano Tavares Rodrigues: é difícil, muito difícil esquecer o arrasador “Crueldade Testicular” (publicado em Crítica de Circunstância, em 1966, e reeditado no Literatura Comestível de 1972) na hora de pegar em algo do autor a que Pacheco dedica essa célebre catilinária.
Este introito à laia de “declaração de interesses” serve para fincar o pé e afirmar que Esta Estranha Lisboa (publicado no mesmo ano da Literatura Comestível), apesar de ser apenas uma recolha dos textos que o prolífico autor publicara no Diário de Lisboa no início da década de 70, e de estes (precisamente por causa dessa origem na imprensa) terem a marca “profissional” típica de um autor contestatário do regime mas hábil a contornar-lhe a rigorosa censura (alusões oblíquas, omissões de qualquer tipo de referência a nomes e factos conferíveis, uma velatura poética na descrição de tudo o que pudesse ser mais melindroso), é um dos melhores livros que conheço dessa última fase do Estado Novo, desse estertor do marcelismo a caminho da Revolução. Para isso, e além da qualidade inegável de alguns destes curtos textos sobre a pequena miséria do quotidiano em Lisboa, contribuem em larga escala as fotografias de Eduardo Gageiro e, sobretudo, o “arranjo gráfico” de Dorindo de Carvalho.


Na verdade, se alguém leva a palma pelo magnético efeito que este volume tem sobre qualquer pessoa que ande de olhos abertos é Dorindo de Carvalho. A junção do portefólio de Gageiro aos textos do autor – que, apesar de alguma abrangência temática (filmes vistos ou livros lidos são muitas vezes os temas destas crónicas), acabam sempre por cair sobre a observação das minúcias do quotidiano da classe média, “remediada” ou pobre na capital portuguesa entre 1970 e 1972 – parece quase óbvia, mas a selecção das fotos, o seu ritmo na paginação, aquele belo efeito “eisensteiniano” (uma mulher a descer umas escadarias com duas crianças muito pequenas em equilíbrio instável) na foto em spread que quase funciona como guarda do livro e, sobretudo, aquela notável sobrecapa, usando uma foto de crianças, vistas em silhueta, a correrem num descampado (e correndo também da contra-capa para a capa) sob um céu carregado que o sol quer desanuviar conferem uma personalidade notável ao livro, que a capa dura complementa com solidez. O preto-e-branco rigoroso, em todos os sentidos da palavra (a adição de um laranja “directo” na tipografia da sobrecapa e da folha de rosto dá a única cor), para além de obrigatório num livro com fotos de “autor” reconhecido (e num tempo em que a reprodução fotográfica a quatro cores era ainda dispendiosa), é aqui quase “identitário”: é como se fosse inconcebível ver esta Lisboa em morte lenta e silenciosa de outra forma.



A Prelo era uma editora “engajada” politicamente, gerida por militantes do PCP, e isso reflecte-se no tom sóbrio, melancólico, quase soturno do livro: não estamos aqui perante um guia frívolo para apreciadores de slumming, ou um exercício de virtuosismo (foto)gráfico com requintado acompanhamento literário à Lisboa Cidade Triste e Alegre. A Lisboa deste livro é definitivamente triste, muito triste, miserável, solitária e pobre, parece ter parado no tempo e ficado à espera de algo, como o homem de pé engessado que está sentado na soleira de uma porta. Os miúdos que correm na sobrecapa podem muito bem ser vizinhos das duas miseráveis crianças que nos olham de duas fotos postas lado a lado, uma delas numa “ruela” de um bairro de lata insalubre. Publicando, como todas as pequenas e médias editoras, maioritariamente livros de capa mole e pequeno formato, é assinalável a coragem – e a coerência – da Prelo ao investir num álbum desta natureza e, em vez de algo mais “comercial”, decidir-se por um livro assim. Sem grande surpresa, foi um dos títulos proibidos pela Censura nesse ano de 1972.



