Hoje, 13 de Outubro, Robert Massin (ou, simplesmente, Massin) faz 90 anos. Conheci-o há três anos e meio, numa rara vinda sua a Portugal. Escrevia e propunha por então uns textos para a LER, tendo conseguido, pelo menos, convencê-los a não deixar passar a estada por cá de Massin sem uma referência: o meu texto, publicado em Maio de 2012, acabou por ser o único texto publicado na imprensa sobre essa visita (e tenho mesmo de acentuar isto, mais pelo espanto ante a anemia da imprensa lisboeta dita “cultural” do que por qualquer achaque de imodéstia).
Das horas que passei com ele em dois dias de Março (ajudado, no meu francês falado algo enferrujado, pelo Michel Jacinto), confesso que não tenho a memória de ter ficado surpreendido (a não ser, talvez, pela sua vitalidade física aos 87 anos): a inteligência, a bonomia, a ironia fina, a incrível modéstia estavam já no seu Diário e nos outros livros dele que lera até aí. Recebi dele 3 livros publicados pela sua Typographies Expressives, pequeno projecto de edição no qual lançava alguns textos seus: Appolinaire Vivant e Si Tu T’Imagines (dois divertimentos em torno de Guillaume Appolinaire e Raymond Queneau, que depois ofereci ao Vitor Silva Tavares quando o conheci em 2012) e À Propos: et la Cantatrice Chauve?, uma monografia sobre a produção do que é, ainda hoje, o trabalho de design mais conhecido de Massin, o da edição da Galimard da peça de Ionesco em 1965. (Guardará ainda o exemplar da velha edição de Nicolau Nasoni de Robert Smith que, sabendo-o devoto do Barroco, decidi oferecer-lhe?) Esta monografia é particularmente curiosa, pois aborda com rigor as circunstâncias da encomenda, a relação de Massin com o autor, os testes e experiências feitos com a deformação dos caracteres tipográficos, a colaboração com o fotógrafo Henry Cohen e até o impacto que o livro teve por esse mundo fora (e teve-o: não por acaso, o motivo da vinda de Massin a Lisboa foi, precisamente, falar sobre a “sua” Cantatrice).
Não sei se foi no blogue Gramatologia se na página de Facebook do José Bártolo que, há uns 2 anos, vi pela primeira vez imagens desta edição da Senzala de 1968, a de A Navalha na Carne, peça proibida do dramaturgo brasileiro “maldito” Plínio Marcos (1935-1999). O certo é que, quando as vi, me lembrei logo desse livro de Massin sobre a Cantatrice, e do facto de nele não constar qualquer referência a esta rara homenagem que o uruguaio Walter Hune, o designer da edição da Senzala, lhe prestara. Esse desconhecimento é compreensível: era mais fácil que algo feito em Paris chegasse a São Paulo do que o inverso. Além disso, tendo a peça sido censurada e a sua encenação proibida pela ditadura militar brasileira, esta edição não fora produzida num contexto propriamente pacífico, conducente à mera apreciação estética. Mesmo com os événements de Paris nesse ano de 68, o Brasil e São Paulo estavam a uma temperatura política bem diferente.
A Senzala tinha sido fundada um ano antes por um licenciado em Filosofia, José Chasin, próximo do pensamento marxista, e tinha um programa abertamente político e (nesse contexto de resistência à ditadura que se instalara em 1964) abertamente provocador: títulos como Xeque Mate ao Ditador de Gerhard Ritter, Não Podemos Esperar de Martin Luther King, O Poder Negro de E. U. Essien-udom ou Existencialismo ou Marxismo de Georg Lukács não deixavam margens para dúvidas. Não as deixava também este A Navalha na Carne, peça em um acto sobre a tensão entre a paixão (ou dependência afectiva) de uma prostituta pelo seu “chulo” (ou “cafetão”) e o abuso constante por parte deste. Se é possível que, ante a proibição da encenação da peça, a editora tenha decidido – como forma de contornar a censura, que era menos agressiva com os livros do que com o teatro e o cinema – seguir a receita de Massin e fazer com que o livro tivesse a forma gráfica e tipográfica de uma verdadeira “encenação”, em vez de se limitar a apresentar o texto, o certo é que o tom duro, sombrio e violento da peça e a linguagem “de rua”, directa e denotando um ouvido de “documentarista”, de pouco terão a ajudado a imagem da editora perante as autoridades: fosse por pressão censória ou financeira (decorrendo, muitas vezes, esta daquela), a Senzala deixa de publicar em 1970.
Em 1977, num artigo para a revista portuguesa Opção, o dramaturgo brasileiro Augusto Boal (então exilado por cá) escreveria, a propósito da estreia da peça – e, possivelmente, única representação – em Lisboa, no Quarteto, que este texto estava mais perto da urgência de uma “reportagem” sobre a vida violenta das vítimas habituais dos “esquadrões da morte”. É isso que torna a decisão de “adaptar” a Cantatrice de Massin tão extraordinária: não só os universos teatrais estavam a milhas um do outro (o do “teatro do absurdo” de Ionesco e o deste brutal e lancinante realismo), como o que pareceria, à partida, intransponível (o jogo fotográfico e tipográfico pleno de liberdade, cujos objectivos não ultrapassariam o mero encaixe estético com o espírito do texto) acabou por ser transformado num meio de expressão ao serviço de um texto completamente diferente. Três anos depois e do outro lado do oceano, a Cantatrice Chauve de Massin, composta na Paris sofisticada dos anos 60 para a mais importante editora francesa, era agora o veículo de um “estilo” (recurso à fotografia de alto contraste, variação tipográfica conforme o número de personagens e o “tom” do que dizem, linhas de texto que se soltam da grelha e “voam” pela página) que podia ser adaptado a uma mensagem política de denúncia num país tropical sob ditadura militar.
Ruthinéia de Moraes, Paulo Villaça e Edgard Gurgel Aranha em Navalha na Carne (1968; fonte)
Concordando parcialmente com Fábio Morais quando ele escreve que o trabalho de Hune nesta Navalha é mais “Pop” do que o de Massin (dados os três anos de diferença entre as duas edições e a explosão da influência Pop no Brasil durante esse tempo, isso é normal – mas não seria Massin, por seu lado, Pop “avant la lettre”?), não me parece, contudo, que este seja (mesmo na comparação com esta edição da Navalha) mais “chique” ou “bem comportado” (não esqueçamos que Massin chegou a imprimir carimbos com palavras sobre preservativos para as deformar e fotografar). O que sim parece óbvio é que algumas influências características da cultura popular brasileira de então (os “quadrinhos” e, sobretudo, as fotonovelas) dão ao trabalho de Hune o seu aroma particular: vista como uma deformação extrema de uma fotonovela da Capricho, toda a edição (incluindo o texto de Marcos) ganha uma dimensão subversiva, que o conhecimento do contexto da sua produção – um dos períodos mais violentos da longa ditadura militar brasileira – torna ainda mais pungente.
Walter Hune é um daqueles nomes que o radar da História do design gráfico não captou para a posteridade (o livro de referência de Chico Homem de Mello sobre o design gráfico brasileiro nos anos 60, por exemplo, não o menciona), facto a que não será alheia a curta vida da Senzala, para a qual (como se pode ver na capa que fez para Café na Cama de Marcos Rey em 1967) parece ter explorado o seu talento no uso e manipulação das imagens em alto contraste.