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Lolita e Sade: os “affaires”

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A edição da Afrodite de A Filosofia na Alcova do Marquês de Sade teve vida curta nas livrarias. Lançada em Março de 1966, torna-se um caso de polícia quando, a 29 desse mês, o agente da Polícia Judiciária Henrique Parente informa os seus superiores que “consta estar à venda e em circulação um livro pornográfico, protótipo de desmoralização”. Desse momento até à instauração de um processo pela publicação desse título distariam apenas quatro meses: em Julho, são constituídos arguidos Fernando Ribeiro de Mello, Herberto Helder (a quem fora encomendada a tradução), Luiz Pacheco (autor do prefácio “pró-Sade”), João Rodrigues (o ilustrador, que se suicidara entretanto, no dia 10 de Maio) e Calado Trindade (o “negro”, ou seja, o verdadeiro autor da tradução, a quem Herberto Helder passara a encomenda); David Mourão-Ferreira, autor do prefácio “anti-Sade” fora poupado. Tendo em conta que no mesmo mês se iniciava um outro processo contra outra edição da Afrodite, a da Antologia da Poesia Erótica e Satírica (saída no final de 1965), pode-se ter uma noção do golpe que isto representava para uma pequeníssima editora, quase marginal, que, até esse momento e no espaço de um ano, publicara apenas seis títulos, todos eles proibidos pela Censura. O “processo Sade” de Ribeiro de Mello termina a 9 de Novembro de 1967, com a condenação de todos os arguidos (e penas pesadas para o editor e Luiz Pacheco).

Esses dois processos (o da Antologia termina apenas em Março de 1970, também com curas condenações) colocavam o editor da Afrodite no centro de um campo de batalha internacional que opunha editores e censores desde meados da década anterior, quando Jean-Jacques Pauvert fora levado a tribunal pela publicação das obras completas no Marquês de Sade na editora que tinha o seu nome. Essa batalha estendeu-se a Inglaterra (onde a Penguin lutou em tribunal pela possibilidade de publicar sem cortes Lady Chatterley’s Lover de D. H. Lawrence), aos EUA (onde a Grove Press passaria quase uma década em vários tribunais do país a defender a liberdade de publicar obras de Henry Miller e William Burroughs) e a muitos outros países onde crescentes aspirações libertárias chocavam com as censuras vigentes. As vitórias da Penguin e da Grove Press resultariam, em particular nos EUA, no que Charles Rembar (o advogado da Grove) designou de “fim da obscenidade”: um termo quase absoluto e oficial à censura da palavra impressa a partir da segunda metade da década de 1960. Para Ribeiro de Mello, a sorte foi outra: se ter ido a tribunal em 1966, em plenas comemorações dos quarenta anos do Estado Novo, defender o quase indefensável – a liberdade de publicar Sade num país governado por Salazar – lhe valeu a designação de “Pauvert português”, o resultado foram duas claras condenações e uma necessidade estratégica de se afastar dos temas sexuais no seu catálogo para sobreviver. O que, contudo, o diferenciou realmente de Pauvert (para além do muito que distinguia pessoalmente os dois homens) foi a impossibilidade de fazer o que este conseguiu ou que lhe foi permitido pouco depois da sua condenação em 1957: publicar um relato pormenorizado do julgamento, com a transcrição de todos os depoimentos das testemunhas e do advogado de defesa.

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L’Affaire Sade, de que Maurice Garçon, o advogado de Pauvert, se apresenta como autor, é, simplesmente, a exposição da estratégia de defesa num pequeno volume de 140 páginas, de leitura fácil e composto com o cuidado tipográfico que era comum aos livros de Pauvert (usando até uma segunda cor no texto). A sua publicação foi um golpe de génio: tornando um caso de apreciação delicada perfeitamente acessível ao leitor comum (os diálogos entre os juízes e as testemunhas lêem-se como se de uma peça de teatro se tratasse), alinhando um impressionante conjunto de personalidades culturais para depor em sua defesa (Georges Bataille, André Breton, Jean Cocteau e Jean Paulhan), Pauvert conseguiu provar, pelo impacto que o livro teve na imprensa e no público leitor, um dos pontos centrais da sua defesa: o da “importância cultural” das edições de Sade. Um recurso da primeira condenação, já depois da publicação deste livro, teve como efeito a revogação da pesada multa e, sobretudo, da ordem de destruição do stock existente. Se Pauvert continuou a publicar toda a obra de Sade, Ribeiro de Mello não voltaria a publicá-lo senão depois do 25 de Abril.

Quando reeditou a Filosofia na Alcova, com nova tradução (de Manuel João Gomes) e novas ilustrações (de Martim Avillez), o editor aproveitou para acrescentar, à laia de “posfácio”, a reprodução de um conjunto de documentos relativos ao processo Sade de 1966-67, dos primeiros autos policiais ao acórdão do Plenário. Não sendo propriamente um “Affaire Sade” versão Afrodite (em 1975, viria já tarde esse livro), é, ainda assim, uma fonte de informação única e de enorme valor para o estudo de um processo deste tipo, e também a prova de que a Manuel João da Palma Carlos (o advogado de Ribeiro de Mello) e ao editor não era desconhecida a edição de Pauvert, dados os paralelismos entre a estratégia de Palma Carlos e a de Garçon e o recurso a citações de muitas das testemunhas de Pauvert.

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No mesmo ano em que L’Affaire Sade era publicado, um outro editor de Paris estava em tribunal a defender uma edição sua de acusações de obscenidade. Maurice Girodias publicara em 1955, na sua Olympia Press, um romance de um russo emigrado nos EUA quase desconhecido, Vladimir Nabokov, intitulado Lolita, e, desde então, estivera com a justiça à perna. E, tal como Pauvert, também ele aproveitou a possibilidade de publicar um L’Affaire Lolita. Editado pelo próprio Girodias (que acrescentou o dramático subtítulo “Defesa do Escritor”, apesar de Nabokov, por razões que se prendiam com a falta de pagamentos de royalties, lhe ter virado as costas e nunca ter comparecido junto ao editor num tribunal de Paris), é um sortido de textos que inclui um excerto do romance (traduzido pelo irmão de Girodias, Eric Kahane), um texto de Nabokov sobre o mesmo, um texto do editor sobre o processo de perseguição censória ao livro e a reprodução de alguns documentos, recensões nos jornais, relatórios de censores, etc. Sem a economia e a contenção do volume de Pauvert, a capa de cores intensas deste L’Affaire Lolita esconde um processo caótico em que o editor acabou a batalhar também contra o próprio autor que pretendia defender (por alturas da edição da Gallimard, em 1959, ambos estavam já de relações quase cortadas).

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Teria Fernando Ribeiro de Mello tido a hipótese de poder preparar um pequeno livro nestes moldes em 1967, com um título como “O Caso Sade”, em que ele e o seu advogado Palma Carlos expusessem e publicassem os seus argumentos de defesa? Nem por sombras. Mas, a tê-la, esse livrinho teria sido feito certamente na sombra destes dois, ou, pelo menos, na do Affaire Sade do ubíquo Pauvert: não precisaria disso para que o vissem como o “Pauvert português” (como Luiz Pacheco deixou fixado numa recensão de 1969 à Antologia do Conto Abominável publicada na revista Notícia), mas acabaria com todas as dúvidas dos que não acreditavam que o fosse.

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Martim Avillez: incandescentes apocalipses

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Martim Avillez faleceu a 24 de Janeiro, no meio do esperado e já quase proverbial silêncio dos “especialistas” em “cultura” na imprensa portuguesa. Junte-se a esse habitual silêncio a existência de um jornalista/comentador televisivo homónimo e encontrar uma referência ao acontecimento e ao artista torna-se impossível, por muito que se puxe pelo Google.

Em conversa com o pintor Eduardo Batarda no ano passado, no contexto do livro sobre a Afrodite que preparo, Martim Avillez (com quem eu desejaria ter também conversado) tinha obviamente sido assunto, mas foi aí que soube que ele  estava infelizmente já muito mal. Má sorte ter sido ilustrador da Afrodite, tê-lo sido (ilustrador) nos anos 70 e com alguma fama ou ter-se definido como autor de BD. Tomada em partes ou em mistura, eis uma receita tóxica e conducente ao esquecimento por estas bandas. Exemplos? Henrique Manuel (morto há 20 anos no meio da indiferença geral, indiferença que continua, até para os lados da Gulbenkian, que o incensou fugazmente), Eduardo Batarda (que não voltou a ilustrar um livro depois da Antologia de Poesia Latina da Afrodite, em 1975) ou Martim Avillez, notável ilustrador do Apocalipse do Apóstolo João, da mais excêntrica edição do Livro de São Cipriano e do Sade da 2.ª edição da Filosofia na Alcova para a Afrodite, já para não falar de um dos mais icónicos livros dos anos 70, o Pacheco versus Cesariny. Não fosse uma nota na página de “Diversos” do Público do dia 29, a anunciar para o dia 31 a missa do 7.º dia da sua morte (ocorrida, portanto, no dia 24 de Janeiro), nenhum registo teria ficado do acontecimento (não sei se entretanto chegou a ser publicado um obituário – em 1993, Henrique Manuel teve, pelo menos, direito a um – mas pesquisas na internet continuam sem revelar nada até ao momento em que escrevo este texto). Por manifesta ignorância minha, não pretendem estas linhas ser essa contribuição obituarista, mas antes uma referência ao seu trabalho como ilustrador de livros, em particular o notável portfolio que desenvolveu na primeira metade da década de 1970 para a Afrodite de Fernando Ribeiro de Mello.

Se não nos move o desejo de conhecer mezinhas para deixar um ou uma amante “cativados” (ou, pelo contrário, para fazer com que se “desliguem”), a única razão para se procurar hoje um exemplar do Grande Livro de São Cipriano (em particular, um exemplar da primeira edição desse texto pela Afrodite em 1971, na sua colecção de “Clássicos”) escreve-se com duas palavras: Martim Avillez. A ilustração deste popular grimório medieval foi a grande entrada do artista no catálogo da chancela, num momento de particular pujança da Afrodite, passados que estavam os anos das perseguições policiais, dos livros proibidos e dos julgamentos no Plenário (o julgamento sobre a Antologia da Poesia Erótica e Satírica fora em 1970 – com as esperadas condenações – e em 1971 é incluído no Index censório o último livro da Afrodite antes da Revolução de Abril de 74, o Anti-Duhring de Engels). O início da década é marcado por lançamentos “bombásticos”, como o de Dezembro de 1971 (o do “editor na banheira”, como titulou o Diário de Lisboa), colecções importantes como a dos “Clássicos” e notáveis edições de textos importantes como a Alice no País das Maravilhas de Carroll (a primeira edição “não infantil” desse texto em Portugal) ou A Sociedade do Espectáculo de Debord (a quarta edição mundial desse texto). Avillez juntava-se a um grupo de jovens artistas que orbitava em torno da Afrodite, como o seu colega nas Belas-Artes (1) de Lisboa Eduardo Batarda (que ilustrara de maneira brilhante a Arte de Furtar em 1970) ou Carlos Ferreiro (vindo já do grande sucesso de crítica e vendas que fora a Antologia do Humor Português de 1969), e a sua estreia não podia ter sido melhor.

Trata-se, como esperado, de um autêntico catálogo de bizarrias, às quais Avillez empresta algum humor, denotando já as influências da banda desenhada na composição dos desenhos (uso de vinhetas, recurso a onomatopeias), e num estilo que varia do traço minucioso, pleno de detalhes e meios-tons em hachuras delicadas, até ao quase esboço, sempre com um uso muito eficaz dos espaços em branco na composição (apesar do seu gosto pontual pelo excesso, Avillez estava longe de cultivar o “horror vacui”). O que torna esta primeira edição da Afrodite verdadeiramente notável é o facto de ser impressa na sua quase totalidade – capa e miolo – com cores directas (incluindo dourados e prateados) e num efeito de gradiente (uma técnica conhecida como “split fountain”). Sugestão do próprio ilustrador, por influência do grafismo psicadélico Pop londrino e californiano do final dos anos 60? Decisão do “controlador gráfico” José Marques de Abreu (2) à revelia do ilustrador (o efeito faz com que se perca o impacto e a intensidade dos negros em alguns desenhos)? Obra do acaso acolhida por ambos? O certo é que o resultado final eleva a edição a um nível visual que certamente nenhuma outra do mesmo texto atingiu ou procurou fazê-lo, acentuando o carácter mágico e alucinante deste e dando cor ao “satanismo light” que Ribeiro de Mello tão astutamente explorou na campanha de promoção e na sessão da “banheira”, fazendo-se acompanhar por figurantes vestidos de “Diabo”.

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Em 1972, na celebração do Ano Internacional do Livro, Ribeiro de Mello decide publicar o texto bíblico conhecido como o Livro do Apocalipse, atribuído ao apóstolo João, e encomenda de novo a Martim Avillez as ilustrações. Estamos ainda na ordem do mágico e do irracional, na linha do livro anterior, mas a escala e o âmbito são mais vastos, o que permite ao ilustrador dar uso ao seu pendor tonitruante e ao gosto pelo macabro, com um requinte de detalhe no desenho  e na composição dos planos que extravasa os limites que o livro de S. Cipriano impusera. A colecção “Extra” da Afrodite, inagurada pela edição da Alice no País das Maravilhas em 1971 – e em que o Apocalipse do Apóstolo João foi publicado – não era, na verdade, uma “colecção” propriamente dita mas uma lista de obras próximas ao espírito do catálogo do editor e cuja preparação gráfica estava isenta de qualquer constrangimento: os formatos variavam enormemente de livro para livro, e a liberdade dada às soluções de paginação e ilustração era igualmente muito vasta.

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O formato quadrado e o impacto visual (o desenho continua pela lombada e contracapa e repete na folha de rosto, permitindo uma dupla valência e uma segunda leitura mais abrangente do plano) e tipográfico da capa (o uso de uma fonte muito semelhante à Avant Garde no título, numa versão ultra fina e com espaçamento apertado, é, ao mesmo tempo, uma concessão compreensível à moda tipográfica do tempo e uma solução certeira no encaixe com a composição geométrica que sobreimprime o desenho) concorrem para criar a entrada perfeita num livro sobre cuja aportação visual de Martim Avillez se pode dizer que é “incandescente” (como o escreveu de facto Isabel da Nóbrega no Diário de Lisboa de 21 de Dezembro desse ano).

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Óbvio devedor do Surrealismo e consciente da tradição iconográfica escatológica, Avillez aproxima-se também dos modos gráficos e narrativos da banda desenhada, sobretudo da que na altura saía das páginas das revistas francesas próximas do underground, como a Hara-Kiri ou a Actuel (veículos de influência óbvios para artistas gráficos portugueses daquela geração e naquela “onda” cultural: numa nota biográfica publicada no 2.º número do jornal & etc sobre Nuno Amorim, já então ilustrador na Afrodite, a influência da Actuel é admitida de forma explícita), como é nítido, por exemplo, no uso das “vinhetas” na composição de alguns quadros, ou no ritmo “sequencial” de algumas ilustrações.

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Em cima: nestas quatro ilustrações do Apocalipse é nítido um ritmo sequencial, criando, através do folheamento, uma ilusão cinética e um efeito cinematográfico.

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Anúncio de imprensa para promoção da edição do Apocalipse do Apóstolo João (1972).


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Exemplar da tiragem especial em capa dura e sobrecapa de 200 exemplares da edição do Apocalipse (fotos gentilmente cedidas por Paulo da Costa Domingos).


Prova das cumplicidades “operativas” que o editor da Afrodite cultivava é o texto que Manuel João Gomes escreveria sobre esta edição, publicado no número 4 (de 28 de Fevereiro de 1973) do “quinzenário cultural” & etc de Vitor Silva Tavares, antigo editor da Ulisseia e que fora até aí o responsável pelo “Suplemento Literário” do Diário de Lisboa (e, em breve, editor de livros sob a mesma chancela da & etc, e com Ribeiro de Mello e a mulher como sócios fundadores). Manuel João Gomes personificava precisamente essas pontes de contacto entre Ribeiro de Mello e Silva Tavares: começara a escrever no DL pela mão deste pouco tempo antes de a Afrodite publicar a sua tradução (com José Vaz Pereira) da Alice de Carroll, fazendo-a acompanhar das suas notas manuscritas sobre os significados arcanos e psico-sexuais do texto original, naquela que foi uma das melhores edições de Ribeiro de Mello. Nesse número do & etc, ele assina um texto largamente encomiástico sobre essa edição do Apocalipse do Apóstolo João, chegando a cotejar as ilustrações de Avillez com uma das gravuras de Durer:

“Como se fez uma edição marginal. Foi a que fizeram Ribeiro de Mello e Martim Avillez. A leitura que iconograficamente MA realizou, segue processos que […] não deixam em certos pontos de nos chamar a uma outra forma de ler. Tomando como modelo de leitura muitas vezes a liberdade que o Autor usou na sua escrita, podemos dizer que MA:
– reconstituiu iconograficamente o texto-fetiche e chamou-lhe seu; podemos designar a operação realizada como uma leitura de grau zero: vive a ilustração de uma tal inocência frente a escrita que isso acaba por imprimir violência e crueldade à leitura, criticando o texto como nenhuma ilustração das que conhecemos o conseguiu…”

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Em cima: “confronte-se Durer e Martim Avillez” (Manuel João Gomes in & etc n.º 4, 28.02.1973).


Num registo mais contido (tanto em qualidade como em quantidade), revisitando iconograficamente algum do território do S. Cipriano, é de 1974 a sua colaboração na 2.ª edição da Antologia do Conto Fantástico Português, com uma ilustração para a capa (que não faz esquecer a que Rocha de Sousa fizera para a 1.ª edição) e outra no interior e um friso decorativo que se repete na introdução de cada texto.

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O livro final de Avillez para a Afrodite, em 1975, seria um projecto de suma importância no contexto do catálogo de Ribeiro de Mello. Quase dez anos depois da 1ª edição da Filosofia na Alcova do Marquês de Sade ter sido retirada do mercado e transformada no pretexto para um duro e sumário processo do qual saíram condenados quase todos os seus colaboradores, o editor, dois anos após a Revolução, volta à carga e muda tudo. Motivo forte para isto foi, por certo, o facto de a edição de 1966 ter sido considerada, quase unanimemente, bastante medíocre (a tradução fora um processo caótico sem qualquer controle, e as ilustrações de João Rodrigues – habitualmente um bom cartoonista no Jornal de Artes e Letras, desenhador repentista de “mesa de café”, com uma veia sombria e sarcástica e um traço vivaz – pareciam traduzir a impreparação ou o receio do artista perante tamanha encomenda: já Luiz Pacheco se referia, em carta a Cesariny, ao “nojo dos desenhos” de J. Rodrigues e a sensação de rigidez e insipiência anatómica destes deixava-os longe do nível que ilustradores anteriores de Sade como Valentine Hugo, Lilian Gourari ou Schem [Raoul Serres] tinham atingido). A escolha de Avillez é mais uma prova do “olho” certeiro de Ribeiro de Mello (afinal de contas, Henrique Manuel, habitual já na Afrodite, estaria também disponível, tal como Nuno Amorim, que estaria  no seu melhor a ilustrar esse ano o Super Macho de Jarry, ou mesmo Cruzeiro Seixas, que recuara em 1966 perante a possibilidade de fazer as ilustrações e teria em 1976 desenhos seus num livro da Afrodite, Do General ao Cabo Mais Ocidental): o Sade seria um passo lógico na continuação dos dois livros anteriores, passando do “gabinete de curiosidades” feérico do São Cipriano ao meticuloso exercício de escatologia do Apocalipse para culminar neste Sade pós-68, quase contemporâneo do de Pasolini (Saló sairia um ano depois), soturno e desencantado, em que o sexo e a possibilidade de titilação sensual (que eram ainda visíveis nos tímidos desenhos de João Rodrigues, e notórios nos ilustradores franceses anteriores) são cruamente dissecados e expostos como maquinações (literais, dado o recorrente desenho de máquinas) de um jogo de poder e de opressão por parte da “classe dominante”. O colchão cor de rosa, desenhado meticulosamente num traço delicado, que cobre a capa, contracapa e – de perfil (bela solução) – a lombada, é a ilustração perfeita dessa crueza sem sombra de sofisticação, que nem a cuidada factura manual da tipografia desfaz. (A curiosa decisão de Ribeiro de Mello de incluir, em “posfácio”, a reprodução dos documentos do processo da 1.ª edição de 1966 reforça esse aspecto sombrio do livro).

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Esta nova edição do Sade foi um dos cinco livros “invulgares” com que o editor “investiu” na Feira do Livro de Lisboa no “Verão Quente” de 1975, e um dos desenhos “do trotamundos Martim Avillez”chega a ser reproduzido pelo Diário de Lisboa na notícia que disso dá conta a 24 de Junho.

A coroar essa brilhante primeira metade da década de 70, Avillez tinha sido ainda o responsável pela capa e as ilustrações do último livro de Luiz Pacheco na célebre colecção da Estampa “Novas Direcções”, onde se tinham publicado Exercícios de Estilo e Literatura Comestível, livros que deram a tardia fama (e algum proveito) ao autor quase quinquagenário no arranque da década. Pacheco Vs. Cesariny (1974) estava pensado pelo seu autor como um grande regresso em forma num estilo em que era mestre consabido – a epistolografia – e como meio de limpar as teias de aranha na sua relação já longa com o “papa” do Surrealismo português, Mário Cesariny. A Revolução de Abril relegou subitamente o livro e as polémicas geracionais e inter-pessoais nele contidas para um plano secundário (disso se lamenta o autor no Diário Remendado), mas o trabalho de Avillez é mais uma vez notável, com uma mão cheia de ilustrações em torno do mote da máquina de escrever e, sobretudo, uma capa icónica, conjugando o seu estilo exuberante de hachuras e traço nervoso no desenho da caneta de dois aparos (que apontam para os dois nomes titulares) com um esquema cromático e tipográfico minimalista (o uso da tipografia “stencil” é particularmente eficaz).

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Em cima: apesar da desilusão com a carreira do livro após a sua publicação, Pacheco terá gostado minimamente dos desenhos de Avillez para o Pacheco versus Cesariny, a julgar pelo facto de em 1992 ter usado um deles na capa da sua edição (pela Contraponto) de O Uivo do Coiote.

Do seu trabalho como ilustrador em Nova Iorque, cidade onde se radicou a partir da década de 1970, encontram-se registos dispersos quer na imprensa mainstream, como a revista New York (em baixo) ou o New York Times Book Review, quer em publicações experimentais e “alternativas”, como a Semiotext(e), onde publicou em 1977 uma banda-desenhada “mito-biográfica” com base nos textos de Friedrich Nietzsche, “My life, by Friedrich Nietzsche”.

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Quanto à ilustração de livros nesta fase “americana”, registam-se alguns exemplos curiosos, como o de Class: A Guide Through the American Status System de Paul Fussel (1983), um guia satírico do mapa de “classes sociais” americanas e seus tiques. O nome de Avillez chega a constar como co-autor (com Susan E. Meyer) de um manual de desenho publicado em 1985 pela Macmillan.

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Num dos últimos números da revista Lusitania (que fundou em Nova Iorque em 1988 e que foi editando intermitentemente, partilhando ou cedendo o leme a editores convidados), o décimo (“The 23”, publicado em 2001), Avillez impõe de novo o seu cunho visual e a sua preferência pela BD como modo narrativo e expositivo na autoria do comic que dá o título à edição, contando a história de vinte e três judeus sefarditas que fogem do Brasil no século XVII perante a iminente chegada da Inquisição ao território. A encadernação “à japonesa”, em acordeão (protegida por capa dura e inserida numa caixa) dispõe a BD numa face e quatro ensaios na outra. Quase trinta anos depois do Apocalipse da Afrodite, este terá sido, possivelmente, o último grande momento gráfico de Martim Avillez como criador de livros.

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The 23, banda desenhada da autoria de Martim Avillez publicada no n.º 10 da revista Lusitania, 2001 (fotos gentilmente cedidas por Ana Neto).


(1) Cf. “Pintar em Portugal, Anos 60, Eduardo Batarda” in Eduardo Batarda Pinturas 1965-1998. Lisboa: CAM-FCG, 1998.

(2)  Figura esquiva: para além das fichas técnicas dos livros da Afrodite dos anos 70, nada se encontra dele ou sobre ele. Seria, ao mesmo tempo, um pseudónimo do editor e uma homenagem ao homónimo fotógrafo e artista gráfico portuense, outrora director da revista Ilustração Moderna e falecido em 1958? Seria o mesmo José Marques de Abreu que surge, na década seguinte, como arranjador gráfico em edições da INCM?

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