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Livros numa tarde de Verão

Eis uma raridade: um texto sobre “capas de livros”, cuja publicação se deveu talvez à maior placidez ou escassez noticiosa do mês de Janeiro de 1968, que permitiu resgatar para o suplemento  “Vida Literária e Artística” do Diário de Lisboa do dia 25 desse mês o que não passava de uma reflexão superficial sobre algumas capas de livros portugueses das últimas décadas feita numa tarde de Verão. Raridade em duplo sentido, pois, além de há 40 ou 50 anos serem praticamente inexistentes na imprensa textos sobre o grafismo dos livros, ou o que hoje se engloba sob a designação de “design editorial”, o texto em causa não opta por uma análise sincrónica de um “período dourado”, tendo antes uma preocupação diacrónica até ao tempo presente da sua factura (o final da década de 1960), mencionando nomes que eram então activos e que iam sendo conhecidos fora do círculo estritamente profissional. O seu autor foi Alfredo Betâmio de Almeida (1920-1985), pedagogo e especialista na disciplina de Desenho (e antigo professor de Paulo-Guilherme, como confessa no texto), sendo autor de alguns compêndios da mesma. Esta é uma transcrição integral desse texto, acompanhada, sempre que possível, das imagens das capas cujos títulos sejam mencionados.

“Um livro vale, como é evidente, pelo seu conteúdo, literário ou científico, mas é a sua capa que oferece o primeiro encanto ou desencanto ao observador fortuito. A beleza e a surpresa da capa têm força de atracção sobre o comprador.
Sem qualquer pretensão de esgotar o assunto, mas apenas porque numa tarde de Verão estendemos sobre uma mesa vários livros ’empurrados’ para uma casa de praia, e aos nossos olhos se encadeou, com relativa evidência, o gosto de nossos livros, decidimos tomar estas notas.

A capa mais antiga desta pequena e ocasional colecção é a de um livro de versos, formato de bolso, romântico ainda. Toda a capa é uma gravura de traço fino, impresso a preto, como não podia deixar de ser. O desenho nasce como um ramo de flores brancas, apertado por um laço, e que se sobrepõe a um ‘pergaminho’ meio enrolado, em que o desenhador pôs a data: 1893. Por cima do ramo ergue-se um anjo, com asas e tudo, mesmo uma flutuante fita. O anjinho, de braços erguidos, sustenta um livro e, por cima, o nome da obra poética: Myosotis, desenhado com ligeira obliquidade. Fecha a forma rectangular um enrolado de desenho muito frouxo. Aqui está a capa dos fins do século dezanove, de um gosto romântico-lírico, complexa e enriquecida, graficamente, à custa de raminhos.

Seleccionámos depois uma pequena brochura de 1896, com versos de João de Deus. A sua capa é nitidamente já um desenho de ‘Art Nouveau’ e assina-a Celso Hermínio, o grande caricaturista, cujas maiores obras se divulgaram em gritantes bilhetes postais, já coloridos. Os motivos são do reino das flores mas desenhados segundo a estilização da época: contorno apenas e um movimento de formas até encher as superfícies parcelares em que o todo fora dividido.

1902. Uma capa com verdes, lilás e prateado, de desenho muito seguro, patenteia mais nitidamente o gosto do princípio do século, gosto que alastrou em ‘cache-pots’ de cerâmica e móveis de saleta. Os fios de água, serpenteando, e as hastes das flores, ondulando, lá estão a encher os espaços. Não se descobre o nome do artista, mas é do estilo de Alonso (Santos-Silva). O livro chama-se Noites Perdidas, e é seu autor um nosso parente com dois ‘tês’ no nome e que chegava apresentado por Alberto Pimentel.

Verificámos que, deste período que precede a Primeira Grande Guerra, nos falta um exemplo característico. Julgamos que do citado Alonso, que viemos a conhecer de ‘Os Ridículos’, há capas típicas de estilo à maneira de Mucha.

Já a anunciar outra época, uma capa de Leitão de Barros. Maior simplicidade, mas ainda uma cornucópia que vomita flores. Capa bem composta, com letras desenhadas pelo autor. É um livro de Norberto de Araújo.

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E depois as capas dos anos vinte, modernistas, inicialmente ainda algo cacógrafas, mas depois mais limpas, apelando frequentemente para uma forma simbólica, em vez de formas narrativas. Temos presente: A Lâmpada de Aladim, com capa de Ary, de 1922, edição da Seara Nova.

Agora a capa de António Soares, a do livro Leviana de António Ferro. E começam as capas ‘pequenos quadros”, tricromias bem impressas. Esta é, de um certo efeito, de composição correcta, elegante, em que um bom pintor manchou, de forma sintética e convincente, uma cabeça de mulher galante.

leviana

De 1924, uma capa da primeira fase de Bernardo Marques, de desenho simbólico. Da mesma época, contudo, temos uma capa de desenho geometrizado, capa futurista, em que se procuram tornar eloquentes as linhas curvas e rectas, em sua expressão pura. É uma primeira edição do futurista brasileiro Mário Andrade. E por esta altura há quadros de valor pelas capas, são seus mestres: Stuart, Barradas, Alberto de Sousa, etc.

Dos anos trinta têm direito a ser lembradas as capas de Roberto Nobre, em que se dá maior importância ao desenho das letras e a ilustração é ainda simbólica, com um tratamento técnico muito pessoal. Digamos: a linha com expressão de ‘golpe’ de pincel e a cor reduzida a uma só e ao preto. Uma selecção de reproduções de capas e ilustrações de Nobre seria tarefa meritória para os estudiosos que se interessam por encontrar exemplos de uma comunhão de forma, conteúdo e época.

Mas nos trinta surge um pintor estrangeiro que altera a estética das capas dos nossos livros, e abre caminho, por exemplo, a um José Rocha e a um José Espinho. Estamo-nos a referir a Fred Kradolfer e a capa que temos presente é a de O Meu Amor Pequenino de António Botto. Para Kradolfer, a capa é também um diminuto quadro, mas de contexto mais leve: aí surgem valores cromáticos ‘nuançados’ e toques preciosos, decisivos para o significado estético do trabalho. Aqui estão as florzinhas de efeito, neo-românticas, que tanto se expandiram. Já não é a cor plana da litografia, mas a cor modulada da tetracromia.

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Kradolfer ensinou aos artistas plásticos portugueses uma visão artística clara, decorativa, poética. E ensinou, particularmente, a cuidar do desenho das letras e a estar atento à sua importância. É o reflexo da lição das escolas suíças.

Poéticas, tapetes orientais, de um formalismo encadeado, essencialmente decorativo, eis as capas habilidosas de João Carlos. Temos presente uma de 1939.

Quando se publicará, em monografias especiais e… compráveis, a obra dos desenhadores portugueses, de um satírico Nogueira da Silva, oitocentista, ao decorativo João Carlos, de algum modo consequência de um Amadeo de Souza-Cardoso? E não se esqueça a família (Escarraecospe, D. Encrenca e Piú) de mestre Carlos Botelho.

Nos anos quarenta, um jovem do nosso tempo renova inteligentemente as capas dos livros. É Victor Palla. Os títulos têm agora um valor plástico essencial na composição e na leitura da capa. O desenho moderniza-se e ganha valores estéticos adequados à circunstância de ser para uma capa. Trabalhos com economia de cor, económicos portanto, mas também elegantes na sua linguagem expressiva e sugestiva.

Dos anos de cinquenta, apreciamos uma capa de Bernardo Marques, sóbria, algo da lição de Kradolfer, mas com estilo próprio. Atravessa a capa de A Missão de Ferreira de Castro, uma faixa que é um típico desenho aguarelado de B. Marques, de um impressionismo gráfico a que as manchas de cor avivam o ambiente e dão atmosfera.

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Fixemos agora uma capa de Pavia, bem característica, na sua comunicação tão clara e tão simples. Para Manuel Ribeiro de Pavia a capa era sempre branca, letras aos topos e, no centro, a sua ilustração. Nesta, sempre de forma rectangular, projectava Pavia, com a grossura de um ferro de prisão, o seu sonho, geralmente a ternura da maternidade ou a largueza dos olhos que querem ver o mar. E flores que lembravam as estrelas desse mar. E cor como a de um vitral, para o sol lhe bater. Meu bom ganhão desenraizado, que não esqueces. Mas ninguém se lembrou de ti na devida altura.

A seguir arrumamos três capas dos anos sessenta, da época das capas brilhantes, envernizadas. Uma de João Câmara Leme, essencialmente decorativa, de um jogo formal de surpresa, geometrizada, atraente e, portanto, ajustada ao seu fim. Outra de Paulo-Guilherme, nosso antigo aluno, elegante, preciosa no seu desenho requintado e de aparente facilidade. Paulo-Guilherme sabe fazer uma capa, o seu grafismo cresce, estética e naturalmente, dentro da superfície escolhida. Preferência pelos tons que fazem moda. E, por fim, uma capa de Sebastião Rodrigues, já numa atmosfera de Pop-Art. Requinte na dimensão e na colocação dos dizeres, dando aos espaços vazios um valor atractivo. Desenho e ‘colagens’ em comunhão ordeira.

E agora mesmo, as capas da Europa-América, neo-realistas – não sabemos porque surgiu esta palavra, que cremos certa – formalmente, ‘solarizações’, um contraponto de preto e branco sugerindo, pela colocação, espaço, atmosfera.

E amanhã? Capas cinéticas, capas luminosas ou talvez mesmo anti-capas.”

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(Alfredo Betâmio de Almeida, “Capas de Livros”, in suplemento  “Vida Literária e Artística”, pp. 1-2,  Diário de Lisboa, 25.01.1968)

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Colecção D: Victor Palla e R2

O aparecimento desta “Colecção D”, com a chancela da Imprensa Nacional Casa da Moeda e a direcção editorial do atelier SilvaDesigners, é, indesmentivelmente, um grande acontecimento no pequeníssimo meio do design de comunicação em Portugal, um país cuja bibliografia em torno de temas comuns às disciplinas que compõem ou compuseram historicamente o design gráfico é escassa e quase sempre destinada ao mercado dos livros “raros” e “esgotados”. Que a colecção comece emparelhando dois nomes mais do que consensuais da prática, ainda que de gerações distantes entre si, parece-me um gesto corajoso e que denota alguma inteligência comercial: sendo bilingues, estes são dois livros sobre designers que, de uma forma ou outra, conseguiram ultrapassar os limites nacionais e impor o nome no estrangeiro (Palla, é claro, fê-lo já postumamente e apenas através da “redescoberta” internacional do Lisboa Cidade Triste e Alegre; quanto aos R2, terá havido portfolio nacional mais “globalizado” e difundindo internacionalmente nos últimos quinze anos do que o da dupla Lizá Ramalho e Artur Rebelo?), pelo que as possibilidades de venda no mercado “global” são consideráveis. Em troca de emails com o responsável pelo conceito da colecção, o designer Jorge Silva, fiquei a saber que um dos modelos em mente seria a série de livros sobre designers contemporâneos “Design&Designers” da editora francesa Pyramid (até no formato, uns bem portáteis 18 x 15 cm), o que concorre para a ideia de uma tentativa (legítima e louvável) de entrada e competição no mercado internacional.

É, contudo, o aparecimento deste livro sobre Victor Palla (o número 2 da colecção) que considero ser o verdadeiro “acontecimento dentro do acontecimento”. A ausência de monografias sobre os nomes basilares do modernismo gráfico em Portugal tem sido, até agora, um mistério difícil de explicar, com uma excepção no excelente catálogo que a Gulbenkian publicou na década de 90 sobre a obra de Sebastião Rodrigues, livro agora também já “esgotado” e remetido às estantes dos alfarrabistas. Lendo a badana da contra-capa, descobrimos que esta colecção D é “dedicada aos designers portugueses de várias gerações”, pelo que, ainda sabendo que não se trata de uma colecção que vise exclusivamente o design gráfico, há razões para esperar que essa escandalosa ausência de amostras de bons portfolios dos anos de 1940 à década de 70 do século passado, em livros baratos e acessíveis, possa ser em breve coisa do passado.

Como modelo da restante colecção, a monografia apresenta-se visualmente sedutora, com uma excelente selecção de capas (incluindo várias amostras das “capas imaginárias”), para além de amostras de capas e spreads de revistas, projectos de branding e packaging e de material decorativo para bares e snack-bars (concebidos, estes também, pelo atelier de Palla). No caso das capas de livros em particular, é escusado afirmar que a quantidade (e a qualidade das fotografias e da impressão) é aqui um valor acrescido, tornando este livro, para já, na referência máxima do trabalho deste designer como capista. (Impõe-se de novo a importância de ver o objecto-livro original, como acontecia já, por exemplo, na revista Alice quando Jorge Silva era dela o director de arte.) A estrutura editorial do volume é muito simples: um pequeno (íssimo, diria, mas já lá irei) texto sobre a obra do designer (no caso, assinado por Bárbara Coutinho), o corpo central constituído pelo portfolio em amostra, e um ainda mais pequeno texto biográfico final (assinado pelo neto do designer, João Palla Martins, que sobre ele publicara já um muito interessante ensaio no volume The Triumph of Design, editado pelo IADE).

Se visualmente estamos mais do que bem servidos, dificilmente poderia considerar o texto em oferta tão rico em quantidade, pelo menos tão nutritivo quanto creio que leitores exigentes devem esperá-lo. Descontando a versão em inglês, o texto de introdução de Bárbara Coutinho resume-se a três páginas, e o texto de Palla Martins a duas (de um total de 128), perdendo-se, pelo meio, excelentes oportunidades de enriquecer esta “dieta” com legendas mais informativas e “literárias” e menos “formais” (há excepções, como no caso das legendas que acompanham os livrinhos da editora Ler ou as imagens relativas ao snack-bar Pique Nique, mas são claramente isso: excepções). Algures, por trás destas dezenas de capas, estarão certamente histórias curiosas, cruzamentos de contextos pessoais, culturais ou políticos, cujo conhecimento poderia enriquecer a apreciação estética e servir de arranque a pesquisas por parte de leitores aventureiros. De assinalar também a falta de uma bibliografia que incluísse livros editados ou antologiados, artigos de e sobre Palla e todas as entrevistas dadas por ele (nesse sentido, o pequeno catálogo publicado pela P4 continua imprescindível pelas referências a entrevistas na imprensa). Entendo que o público-alvo da colecção possa ser visto como valorizando mais a informação visual do que a escrita, e que o bilinguismo obrigue a uma contenção que impeça o aumento de páginas e o encarecimento do volume, mas não consigo deixar de pensar que falta aqui mais “substância” ensaística, e, porque não, um aroma do estilo que o mesmo Jorge Silva tão bem tem explorado no seu blogue. A subtil ironia, a proximidade e a compreensão de um passado gráfico visto com a lente dupla da nostalgia pessoal e do rigor analítico que ele tem demonstrado nos posts do Almanaque Silva fazem-me concluir que há, neste volume em particular, uma ausência notável: a do Jorge Silva ensaista.

Apesar do que acima escrevi, as qualidades puramente visuais destes livros e o cuidado posto na sua produção (junto na observação o volume dedicado aos R2) impõem-se e tornam-nos numa excelente compra (a um preço muito aceitável) e em documentos a preservar. Espero que se mantenha este equilíbrio entre portfolios “antigos” e portfolios mais contemporâneos, ainda que, dos quatro nomes previstos para as monografias a publicar até ao final do ano, apenas Paulo-Guilherme d’Eça Leal se apresente como representante dos “antigos”. Por um lado, compreendo a necessidade de mostrar coisas actuais (sobretudo na área do design de equipamento) a um mercado internacional, num contexto de necessidade imperiosa de exportar e valorizar o produto nacional, mas, por outro, e especificamente no design editorial, esta colecção (ainda para mais com a chancela da INCM), perante a bitola elevada que revelou neste volume dedicado a Victor Palla, tem a obrigação de, pela primeira (e, possivelmente, única) vez, organizar, mostrar e divulgar amostras de trabalhos de designers que, de outra forma, estariam remetidos para sempre às descobertas fortuitas nas estantes de livros em segunda-mão. Num país em que mostrar livros pelo seu design parece não ser visto pelos museus como actividade “nobre” (dois exemplos: a falta de espaço em museus que Andrew Howard encontrou para a “sua” Gateways em 2008, e o facto de a única exposição de livros da Experimenta 2011 ter sido programada na área “tangencial” e não passar sequer pelo Museu de Design), a anunciada apresentação “oficial” desta colecção em Novembro próximo, precisamente no MUDE (que aparece na ficha técnica como “parceiro” do projecto), pode significar uma mudança e uma abertura do único museu de design nacional ao design editorial. Melhor pretexto do que estes belos livrinhos (que são, no seu cuidado de seleccionar e “exibir” da forma mais fidedigna e limpa, pequenos museus portáteis) seria difícil.

Introducing the D Collection, a series of monographs on Portuguese designers, from the mid-century modernists to the most cutting-edge contemporary (masterminded by Jorge Silva, of SilvaDesigners atelier). The first two volumes are dedicated to R2 (on the contemporary side) and Victor Palla, the latter representing a long awaited book on one of the most important and most interesting graphic designers (and photographer, and architect, etc) working in Portugal from the 1940s to the 1980s (and now known mostly for his cult photobook on Lisbon of the 1950s, Lisboa Cidade Triste e Alegre). The books are rich in visuals (compensating for the less rich offering in text and analysis), bilingual (Portuguese and English) and will definitely be an important addition to the library of any lover of graphic design (and its history) and graphic design books.

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Palla: Ler, editora

A descoberta, há dias, numa FNAC de Lisboa, de um grande stock deste Dicionário de Milagres de Eça de Queirós (stock proveniente, com certeza, da livraria Ler do Sr. Luís Dias, a Campo de Ourique), foi o pretexto para relembrar a colaboração de Victor Palla com esta pequena editora lisboeta que conseguiu publicar dois livros (agora cobiçados e caros) de Luiz Pacheco e pequenos exercícios formais do próprio Palla, além de se poder gabar da façanha de, numa edição (precisamente este Dicionário), reunir na ficha técnica os nomes de Pacheco, Palla e Eça.

Em Janeiro de 2008, alguns dias depois da morte de Luiz Pacheco, comprei ao mesmíssimo Luís Dias, a preço de saldo, os dois volumes dos Textos de Guerrilha do autor. Desconhecia de todo o catálogo da Ler, e que a editora funcionara ali mesmo naquela papelaria/livraria na Rua Almeida e Sousa, em frente ao belo Jardim da Parada.

Em face da capa do tomo 2 dos Textos de Guerrilha (edição de 1979), foi-me também algo difícil associá-la imediatamente a Victor Palla, e apenas uma consulta à ficha técnica o permitiu. Não é, de todo, uma capa ao nível das que nos habituámos a ver no seu “cânone”, faltando até uma das suas assinaturas de estilo: a tipografia desenhada e laboriosamente composta. Aqui o texto a preto numa não-serifada bold e itálica sobreimprime uma composição abstracta riscada a carvão ou pastel e impressa a uma cor. Era também estranho descobrir que a capa do primeiro volume não era sua, o que permite supor um recurso a uma solução de emergência para uma edição com pouco cuidado visual (e à qual falta o atractivo das ilustrações de Vasco, que se encontram no primeiro volume).

Outro galo (em rigor: anjo) canta na capa do Dicionário de Milagres. Do mesmo ano de 1979, esta edição parece ter tido a possibilidade de investimento num maior efeito visual e táctil, que se resume num cortante circular que envolve e ao mesmo tempo revela o desenho do torso de um anjo. A manualidade na criação da tipografia está em pleno no nome do autor, a vermelho sobre o fundo preto. O livro (uma reedição dum texto “menor” de Eça de Queirós, da última fase da sua vida literária) não possui qualquer ilustração ou detalhe tipográfico ou composicional digno de menção, mas esta entrada quase “cenográfica” e uma maior pausa para respiração nas duas páginas de abertura, com o nome do autor e o título separados, elevam esta edição a outro patamar gráfico.

Ora parece ter sido dessa forma lúdica e aventureira graficamente que Palla começou a sua colaboração com a Ler, a julgar pela data (1978) da ficha técnica de dois pequenos livros, de formato sensivelmente quadrado (10 x 9,7 cm), dos quais é o autor: Provérbios e Epigramas, títulos auto-explicativos, mas que escondem uma enorme facilidade com as palavras e com os jogos das mesmas a nível literário. Pequenos apontamentos tipográficos (os enormes números de página, por exemplo, que permitem, como num flipbook, uma sequência animada no folhear) não impedem a fruição do texto. E há já – o que é também comum à edição do Dicionário – a assunção de um logotipo para a editora.

Eis pois o polivalente Palla a poder cumprir, num projecto de edição mais modesto, essa mesma polivalência: grafista, tradutor e antologiador (numa edição de poemas ingleses da Ler de meados da década seguinte), autor (editor tinha-o já sido nos anos 50). No volume Falando do Ofício, publicado em 1989, nada se revela desta colaboração editorial na parte final da sua carreira (ainda que as suas misteriosas “capas fictícias” sejam referidas com sentido de humor, como transcrevi já aqui). Talvez o Sr. Luís Dias tenha algo interessante que contar. (Obrigado à Maria João Freitas pela oferta).

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Viagens de João Barreiros (IV)

A CIDADE NO TEMPO
Clifford Simak
Europa-América, 1955
Capa de António Areal

Há sessenta e cinco milhões de anos, durante o Cretáceo tardio, e antes que o meteoro incendiasse a Terra e desse lugar aos grandes gelos, o mundo corria de uma forma bem diferente da nossa, se quiséssemos parafrasear L. P. Hartley. Surgiam, a toque de caixa, antologias de FC na Editora Palirex, borbulhavam tentativas de novas colecções como aquela que poderia ter sido organizada pelo Mário Henrique Leiria, chamada “Escalas do Futuro” e da qual só vieram a ser publicados dois volumes.

O primeiro destes fósseis vale a pena ser guardado para sempre no Museu das Tentativas Falhadas. Trata-se do romance City, do Clifford Simak, que surgiu entre nós com o nome A cidade no tempo, com uma tradução sublime de M. Pina e A. Margarido e que só muitos anos mais tarde voltaria a ser reeditado na colecção Argonauta, aí com uma tradução bem mais manhosa (As cidades mortas). Corria o ano de 1955 de um outro século, as patorras dos dinossáurios pesavam sobre a espinha dos pequenos mamíferos, mas mesmo assim, trémulos e escondidos nas pequenas tocas, ainda ousavam mastigar os ovos dos gigantes. A importância da Cidade no tempo, dotado de uma capa nostálgica e discreta de António Areal, é que, logo nas páginas da introdução, encontramos um texto original do Mario Henrique Leiria. A fazer de cão leitor. Acreditem. Um mimo de originalidade e sensibilidade.

Porque é que a colecção, editada pela Europa-América, desapareceu ao fim de dois volumes? Mistério sinistro e profundo. E a triste verdade é que já não está cá ninguém para o contar.

NOVE AMANHÃS / JUSTIÇA FACIAL
Isaac Asimov / L.P.Hartley
Minotauro, 1961
Capas de Fernando Azevedo

Outra colecção efémera, também ela com apenas dois volumes, (desconheço se  Nascidos no Espaço do E. C. Tubb, e Missão de gravidade de Hal Clement, chegaram a vir à superfície), chamava-se “Órbita” e foi publicada por uma tal Editora Minotauro de seu nome. A direcção pertencia a Fernando de Castro Ferro. A capa da Justiça facial do L. P. Hartley e dos Nove amanhãs do Asimov (melhor seria dizer “Nove ontens”) foi desenhada por Fernando Azevedo. Até dói pensar nas oportunidades perdidas. Já pensaram o prazer dos leitores a deliciarem-se com a Missão de gravidade do Hal Clement, nesse ano perdido de 1961? Infelizmente eis mais um nicho ecológico que passou à história, como o pássaro Dodo, roído por uma qualquer micose, ou devorado pelas presas dos bem-pensantes.

O QUE É A FICÇÃO CIENTÍFICA?
Org. Victor Palla
Atlântida (Coimbra), 1959
Capa de Victor Palla

Porque mesmo nessa época revoluta, os “bem pensantes” odiavam FC. A tecnofobia criava já o seu empório. A FC é anti-humanista, dizia-se. Assim Victor Palla, o editor da antologia O que é a Ficção Científica?, detestava já tudo o que saísse da pena de um Murray Leinster ou de um Van Vogt. Não sou eu que o afirmo, mas sim o próprio Victor Palla à guisa de conclusão, neste livrinho publicado em 1959, numa colecção chamada “Centauro”. Mesmo assim, aqui apareceram continhos do Kuttner, do Sheckley, do William Tenn. A propósito, leiam TUDO o que o Tenn escreveu e depois digam-me o que a ecosfera editorial portuguesa perdeu durante as grandes glaciações.

SALTO NO TEMPO / INDÓMITO PLANETA
Yves Dermeze / Roy Sheldon
Livros do Brasil, 1955
Capas de Lima de Freitas e Cândido Costa Pinto

E já agora a colecção “Argonauta”, com traduções do Mário Henrique Leiria, do Fernando de Castro Ferro e capas do Cândido Costa Pinto e, finalmente (durante anos e anos), do Lima de Freitas. E, caso estranho e nunca visto pelos nossos olhos contemporâneos, estes desenhadores LIAM mesmo os livrinhos antes de desenharem as capas. Capas coloridas, sem fotomontagens, perfeitamente adequadas às expectativas do leitor.

Depois o meteoro caiu. Os dinossáurios extinguiram-se. Livrarias e Editoras entraram em auto-gestão revolucionária. Os responsáveis pelas antigas colecções foram silenciados.

O fulgor revolucionário de um novo ecossistema foi ainda mais prejudicial ao género, desta vez considerado como um produto ianque pequeno-burguês.

As colecções mirraram nos conteúdos e dedicaram-se a entreter as classes cada vez mais incultas, com obras cada vez mais simplistas e baratuchas.

Os leitores fiéis que ainda sobreviviam foram morrendo aos poucos e as esposas desfizeram-se dos livros dos defuntos esposos, religiosamente guardados nas prateleiras das estantes, para fazerem delas expositores de biblôs. E as coisas ficaram neste pé. Até hoje.

Mas se o bom existe e ainda continua a existir para lá da tristonha fronteira portuguesa, porque é que não se publica boa FC (pergunto eu)? Ora, porque os leitores não querem saber dela. Não querem mesmo. E quando uma Editora publica algo de importante, é precisamente esse livro que menos se vende.

“Barreiros”, disse-me certa vez um Editor que eu não nomeio. “Sei perfeitamente que estamos a publicar merda! Mas a merda vende, aí é que está. É ela que nos permite publicar um bom livro de vez em quando, sabendo perfeitamente que ele não será lido tanto quanto os outros. Aqui para nós, que ninguém nos ouve, seria como se estivéssemos a dar pérolas a porcos”.

É verdade que as deliciosas trufas crescem no meio do esterco. É verdade que vale a pena procurá-las. Mas o esterco é às toneladas e as pobrezinhas das trufas são tão poucas…

Tristes tristezas.

João Barreiros

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Colheita frutuosa

Um dos melhores Hammett numa das melhores séries da Penguin (edição de 1963), com umas das melhores capas de Romek Marber (sobre a grelha que o próprio Marber criou para essa série de “crime”).  O que eu chamo de “cruzamento perfeito”. E também um livrinho invulgar (raro também?) de “epigramas” de Victor Palla, com um design limpo e económico num formato pouco comum (um quadrado de 10 x 10 cm) e numa edição da Ler (editora de Campo de Ourique) de 1978, numa altura em que Luiz Pacheco também por lá publicava os Textos de Guerrilha. Eis uma boa colheita de Sábado na Rua do Anchieta: bons livros, a bom preço, da mão de experientes alfarrabistas (Paulo da Costa Domingos e João Carlos Miguel).

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Victor Palla: um catálogo

O leilão de que este catálogo serviu de guia (e serve agora de memória) aconteceu já há mais de 2 anos, mas o valor deste volume transcende essa referência: trata-se, para todos os efeitos, do único livro sobre o trabalho de Victor Palla disponível no mercado. Por “mercado” entenda-se que apenas se pode adquirir junto da galeria que procedeu a essa venda de algum do espólio de Palla, a P4Photography.

Fui há dias comprar um exemplar das mãos de Luís Trindade, um dos responsáveis da galeria, e em 15 minutos de conversa aprendi imenso sobre as condições de produção e venda da “jóia da coroa” deste leilão de 2008: os originais da primeira edição de Lisboa Cidade Triste e Alegre, de Palla e Costa Martins (1959). O catálogo, devidamente modesto, é extremamente compensador como fonte de pesquisa, sobretudo no que toca ao trabalho em design editorial de Palla: não se encontram aqui registados apenas elementos referentes à produção do célebre e esquivo livro de fotografia, mas incluem-se capas suas para a série das “Três Abelhas” e outras editoras, e (cereja no bolo) mesmo duas páginas sobre os misteriosos livros “fictícios”, a que Palla aludiu na sua intervenção no volume Falando do Ofício de 1989 (ler aqui).

Que neste momento seja apenas este livrinho de 62 páginas (num formato aproximado ao A5), que nem nas livrarias circula, a mostrar-nos algo do trabalho de Victor Palla revela mais a completa ignorância e cegueira do nosso novo-riquista mercado editorial do que propriamente um desenquadramento entre modas correntes e a oportunidade de reavivar o legado de um dos mais interessantes e polivalentes artistas gráficos do século XX português. Assim sendo, não resta senão encomendar à P4 um exemplar deste pequeno e oportuno volume e esperar por melhores dias.

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“Disparate! Capas para livros que não há!”

“Afastado o problema de uma dependência, a forma estaria livre para se desenvolver sem nenhum funcionalismo específico.
A teoria é ‘post-facto’. Só me apareceu numa conversa com o O’Neill, há um par de anos, há muito pouco tempo. Tão pouco tempo que, nestas últimas capas que fiz, só certas legendas, certos partidos tipográficos, apontam para este caminho que acho tacteável. Campo vastíssimo, evidentemente. Conduziria decerto à colaboração na criação dum objecto (objecto com forma de ‘capa’), com escritores, tipógrafos, poetas. Agrada-me muito pensar neste aspecto de criação colectiva, que se aparentaria à poesia concreta, aos caligramas, aos divertissements tipográficos. O todo constituir-se-ia numa obra esteticamente autónoma, forma de arte (menor, se lhe quiserem chamar, isso é o que menos me interessa) como outra qualquer.
Se me expliquei mal, posso fazê-lo doutra maneira, esta: Alguém, ao ouvir-me, exclamou: ‘Disparate! Capas para livros que não há!’ Mas a definição é justamente essa. De resto, todos nós temos inventado capas para livros imaginários, com autores e tudo (o Lima de Freitas tem algumas). É a mesma objecção que: ‘Ora! Cartazes que não anunciam coisa nenhuma!’ Mas há-os às mãos cheias.”
(Victor Palla, in Falando do Ofício, p. 47, Sociedade Tipográfica, Lisboa, 1989; foto: auto-retrato de 1989)

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