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Começar com um estouro

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Se a carreira de Fernando Ribeiro de Mello acabou com um “elliotiano” gemido, submergido na vaga de concorrência livre de censura e de insegurança financeira que os novos tempos pós-revolucionários fizeram abater sobre um certo tipo de pequeno editor raivosamente independente que, em Portugal, ele personificava sem par, pode-se afirmar também, e com toda a certeza, que ela começou com um dos maiores estouros de que há memória no mundo das letras nacionais nas últimas cinco décadas (se, por “nacional”, entendermos o que se entendia há cinquenta anos, e se entende ainda hoje: de Lisboa). Mas não começou com um livro. Antes dessas absolutas e muito corajosas loucuras que foram as edições do Kamasutra e da Filosofia na Alcova de Sade num meio cultural oprimido pela censura e pelo corpete da moral católica, houve algo chamado “o Teste”. Se a fama da Afrodite se fez com o lançamento desses títulos impensáveis numa altura em que o Estado Novo parecia ainda monolítico, é também verdade que foi esse “Teste” que deu ao nome de Fernando Ribeiro de Mello uma notoriedade que ele aproveitou, investindo-a no arranque como editor. Podemos então concluir que, se a Afrodite nasce no Verão de 1965 com o Kamasutra, a figura do provocador estético Fernando Ribeiro de Mello surge na noite de 8 de Junho de 1964 (tinha ele apenas 23 anos), no salão da Sociedade Nacional de Belas Artes à Barata Salgueiro, a partir das 21:45 horas.

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Sobre o que se passou nessa noite há 50 anos, o que a antecedeu e as consequências imediatas desse “Teste” (em particular uma renhida polémica no Jornal de Letras e Artes com Francisco Sousa Tavares, o marido de Sophia de Mello Breyner) acabo de publicar pela chancela Montag um pequeno livro chamado A Técnica do Golpe Literário. Trata-se de um excerto (ligeiramente editado) do texto da monografia que preparo sobre o fundador das edições Afrodite, intitulada Fernando Ribeiro de Mello: Editor Contra (e onde se incluem testemunhos e/ou textos de Vitor Silva Tavares – que trouxe Almada Negreiros ao salão da SNBA, nessa noite, e que começaria aí uma longa amizade com o futuro editor da Afrodite –, Aníbal Fernandes, Eduardo Batarda e Nuno Amorim).

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Para além da óbvia (e, espero, desculpável) estratégia de amostra e promoção antecipada desse livro (tendo em vista até uma campanha de crowdfunding), decidi-me pela publicação deste excerto como livrinho independente também para colmatar um notório esquecimento deste “Teste”, que as memórias publicadas dos anos 60 em Lisboa têm ou omitido completamente ou aludido de forma vaga: em suma, para resgatar das fontes bibliográficas ou jornalísticas e dos testemunhos de quem o viveu este momento crucial e iniciático na carreira de uma das figuras incontornáveis da vida cultural da capital na última década antes da Revolução de 1974 (como exemplo desse esquecimento, há um artigo publicado na Sábado de 10.04.2014, em torno da vida do casal Sousa Tavares / Sophia de Mello Breyner, onde nem uma referência se faz à polémica que o primeiro teve com Ribeiro de Mello depois da sessão do “Teste” – à qual aquele assistira –, quando, por admissão do próprio Sousa Tavares na carta publicada no Jornal de Letras e Artes a 26 de Junho de 1964, e que iniciou a polémica, essa fora a primeira vez que ele pedia a um jornal “a publicação de umas linhas”).

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O livrinho pode ser comprado aqui (e pago por Paypal) ou encomendado através do formulário de Encomenda.

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Martim Avillez: incandescentes apocalipses

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Martim Avillez faleceu a 24 de Janeiro, no meio do esperado e já quase proverbial silêncio dos “especialistas” em “cultura” na imprensa portuguesa. Junte-se a esse habitual silêncio a existência de um jornalista/comentador televisivo homónimo e encontrar uma referência ao acontecimento e ao artista torna-se impossível, por muito que se puxe pelo Google.

Em conversa com o pintor Eduardo Batarda no ano passado, no contexto do livro sobre a Afrodite que preparo, Martim Avillez (com quem eu desejaria ter também conversado) tinha obviamente sido assunto, mas foi aí que soube que ele  estava infelizmente já muito mal. Má sorte ter sido ilustrador da Afrodite, tê-lo sido (ilustrador) nos anos 70 e com alguma fama ou ter-se definido como autor de BD. Tomada em partes ou em mistura, eis uma receita tóxica e conducente ao esquecimento por estas bandas. Exemplos? Henrique Manuel (morto há 20 anos no meio da indiferença geral, indiferença que continua, até para os lados da Gulbenkian, que o incensou fugazmente), Eduardo Batarda (que não voltou a ilustrar um livro depois da Antologia de Poesia Latina da Afrodite, em 1975) ou Martim Avillez, notável ilustrador do Apocalipse do Apóstolo João, da mais excêntrica edição do Livro de São Cipriano e do Sade da 2.ª edição da Filosofia na Alcova para a Afrodite, já para não falar de um dos mais icónicos livros dos anos 70, o Pacheco versus Cesariny. Não fosse uma nota na página de “Diversos” do Público do dia 29, a anunciar para o dia 31 a missa do 7.º dia da sua morte (ocorrida, portanto, no dia 24 de Janeiro), nenhum registo teria ficado do acontecimento (não sei se entretanto chegou a ser publicado um obituário – em 1993, Henrique Manuel teve, pelo menos, direito a um – mas pesquisas na internet continuam sem revelar nada até ao momento em que escrevo este texto). Por manifesta ignorância minha, não pretendem estas linhas ser essa contribuição obituarista, mas antes uma referência ao seu trabalho como ilustrador de livros, em particular o notável portfolio que desenvolveu na primeira metade da década de 1970 para a Afrodite de Fernando Ribeiro de Mello.

Se não nos move o desejo de conhecer mezinhas para deixar um ou uma amante “cativados” (ou, pelo contrário, para fazer com que se “desliguem”), a única razão para se procurar hoje um exemplar do Grande Livro de São Cipriano (em particular, um exemplar da primeira edição desse texto pela Afrodite em 1971, na sua colecção de “Clássicos”) escreve-se com duas palavras: Martim Avillez. A ilustração deste popular grimório medieval foi a grande entrada do artista no catálogo da chancela, num momento de particular pujança da Afrodite, passados que estavam os anos das perseguições policiais, dos livros proibidos e dos julgamentos no Plenário (o julgamento sobre a Antologia da Poesia Erótica e Satírica fora em 1970 – com as esperadas condenações – e em 1971 é incluído no Index censório o último livro da Afrodite antes da Revolução de Abril de 74, o Anti-Duhring de Engels). O início da década é marcado por lançamentos “bombásticos”, como o de Dezembro de 1971 (o do “editor na banheira”, como titulou o Diário de Lisboa), colecções importantes como a dos “Clássicos” e notáveis edições de textos importantes como a Alice no País das Maravilhas de Carroll (a primeira edição “não infantil” desse texto em Portugal) ou A Sociedade do Espectáculo de Debord (a quarta edição mundial desse texto). Avillez juntava-se a um grupo de jovens artistas que orbitava em torno da Afrodite, como o seu colega nas Belas-Artes (1) de Lisboa Eduardo Batarda (que ilustrara de maneira brilhante a Arte de Furtar em 1970) ou Carlos Ferreiro (vindo já do grande sucesso de crítica e vendas que fora a Antologia do Humor Português de 1969), e a sua estreia não podia ter sido melhor.

Trata-se, como esperado, de um autêntico catálogo de bizarrias, às quais Avillez empresta algum humor, denotando já as influências da banda desenhada na composição dos desenhos (uso de vinhetas, recurso a onomatopeias), e num estilo que varia do traço minucioso, pleno de detalhes e meios-tons em hachuras delicadas, até ao quase esboço, sempre com um uso muito eficaz dos espaços em branco na composição (apesar do seu gosto pontual pelo excesso, Avillez estava longe de cultivar o “horror vacui”). O que torna esta primeira edição da Afrodite verdadeiramente notável é o facto de ser impressa na sua quase totalidade – capa e miolo – com cores directas (incluindo dourados e prateados) e num efeito de gradiente (uma técnica conhecida como “split fountain”). Sugestão do próprio ilustrador, por influência do grafismo psicadélico Pop londrino e californiano do final dos anos 60? Decisão do “controlador gráfico” José Marques de Abreu (2) à revelia do ilustrador (o efeito faz com que se perca o impacto e a intensidade dos negros em alguns desenhos)? Obra do acaso acolhida por ambos? O certo é que o resultado final eleva a edição a um nível visual que certamente nenhuma outra do mesmo texto atingiu ou procurou fazê-lo, acentuando o carácter mágico e alucinante deste e dando cor ao “satanismo light” que Ribeiro de Mello tão astutamente explorou na campanha de promoção e na sessão da “banheira”, fazendo-se acompanhar por figurantes vestidos de “Diabo”.

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Em 1972, na celebração do Ano Internacional do Livro, Ribeiro de Mello decide publicar o texto bíblico conhecido como o Livro do Apocalipse, atribuído ao apóstolo João, e encomenda de novo a Martim Avillez as ilustrações. Estamos ainda na ordem do mágico e do irracional, na linha do livro anterior, mas a escala e o âmbito são mais vastos, o que permite ao ilustrador dar uso ao seu pendor tonitruante e ao gosto pelo macabro, com um requinte de detalhe no desenho  e na composição dos planos que extravasa os limites que o livro de S. Cipriano impusera. A colecção “Extra” da Afrodite, inagurada pela edição da Alice no País das Maravilhas em 1971 – e em que o Apocalipse do Apóstolo João foi publicado – não era, na verdade, uma “colecção” propriamente dita mas uma lista de obras próximas ao espírito do catálogo do editor e cuja preparação gráfica estava isenta de qualquer constrangimento: os formatos variavam enormemente de livro para livro, e a liberdade dada às soluções de paginação e ilustração era igualmente muito vasta.

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O formato quadrado e o impacto visual (o desenho continua pela lombada e contracapa e repete na folha de rosto, permitindo uma dupla valência e uma segunda leitura mais abrangente do plano) e tipográfico da capa (o uso de uma fonte muito semelhante à Avant Garde no título, numa versão ultra fina e com espaçamento apertado, é, ao mesmo tempo, uma concessão compreensível à moda tipográfica do tempo e uma solução certeira no encaixe com a composição geométrica que sobreimprime o desenho) concorrem para criar a entrada perfeita num livro sobre cuja aportação visual de Martim Avillez se pode dizer que é “incandescente” (como o escreveu de facto Isabel da Nóbrega no Diário de Lisboa de 21 de Dezembro desse ano).

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Óbvio devedor do Surrealismo e consciente da tradição iconográfica escatológica, Avillez aproxima-se também dos modos gráficos e narrativos da banda desenhada, sobretudo da que na altura saía das páginas das revistas francesas próximas do underground, como a Hara-Kiri ou a Actuel (veículos de influência óbvios para artistas gráficos portugueses daquela geração e naquela “onda” cultural: numa nota biográfica publicada no 2.º número do jornal & etc sobre Nuno Amorim, já então ilustrador na Afrodite, a influência da Actuel é admitida de forma explícita), como é nítido, por exemplo, no uso das “vinhetas” na composição de alguns quadros, ou no ritmo “sequencial” de algumas ilustrações.

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Em cima: nestas quatro ilustrações do Apocalipse é nítido um ritmo sequencial, criando, através do folheamento, uma ilusão cinética e um efeito cinematográfico.

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Anúncio de imprensa para promoção da edição do Apocalipse do Apóstolo João (1972).


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Exemplar da tiragem especial em capa dura e sobrecapa de 200 exemplares da edição do Apocalipse (fotos gentilmente cedidas por Paulo da Costa Domingos).


Prova das cumplicidades “operativas” que o editor da Afrodite cultivava é o texto que Manuel João Gomes escreveria sobre esta edição, publicado no número 4 (de 28 de Fevereiro de 1973) do “quinzenário cultural” & etc de Vitor Silva Tavares, antigo editor da Ulisseia e que fora até aí o responsável pelo “Suplemento Literário” do Diário de Lisboa (e, em breve, editor de livros sob a mesma chancela da & etc, e com Ribeiro de Mello e a mulher como sócios fundadores). Manuel João Gomes personificava precisamente essas pontes de contacto entre Ribeiro de Mello e Silva Tavares: começara a escrever no DL pela mão deste pouco tempo antes de a Afrodite publicar a sua tradução (com José Vaz Pereira) da Alice de Carroll, fazendo-a acompanhar das suas notas manuscritas sobre os significados arcanos e psico-sexuais do texto original, naquela que foi uma das melhores edições de Ribeiro de Mello. Nesse número do & etc, ele assina um texto largamente encomiástico sobre essa edição do Apocalipse do Apóstolo João, chegando a cotejar as ilustrações de Avillez com uma das gravuras de Durer:

“Como se fez uma edição marginal. Foi a que fizeram Ribeiro de Mello e Martim Avillez. A leitura que iconograficamente MA realizou, segue processos que […] não deixam em certos pontos de nos chamar a uma outra forma de ler. Tomando como modelo de leitura muitas vezes a liberdade que o Autor usou na sua escrita, podemos dizer que MA:
– reconstituiu iconograficamente o texto-fetiche e chamou-lhe seu; podemos designar a operação realizada como uma leitura de grau zero: vive a ilustração de uma tal inocência frente a escrita que isso acaba por imprimir violência e crueldade à leitura, criticando o texto como nenhuma ilustração das que conhecemos o conseguiu…”

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Em cima: “confronte-se Durer e Martim Avillez” (Manuel João Gomes in & etc n.º 4, 28.02.1973).


Num registo mais contido (tanto em qualidade como em quantidade), revisitando iconograficamente algum do território do S. Cipriano, é de 1974 a sua colaboração na 2.ª edição da Antologia do Conto Fantástico Português, com uma ilustração para a capa (que não faz esquecer a que Rocha de Sousa fizera para a 1.ª edição) e outra no interior e um friso decorativo que se repete na introdução de cada texto.

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O livro final de Avillez para a Afrodite, em 1975, seria um projecto de suma importância no contexto do catálogo de Ribeiro de Mello. Quase dez anos depois da 1ª edição da Filosofia na Alcova do Marquês de Sade ter sido retirada do mercado e transformada no pretexto para um duro e sumário processo do qual saíram condenados quase todos os seus colaboradores, o editor, dois anos após a Revolução, volta à carga e muda tudo. Motivo forte para isto foi, por certo, o facto de a edição de 1966 ter sido considerada, quase unanimemente, bastante medíocre (a tradução fora um processo caótico sem qualquer controle, e as ilustrações de João Rodrigues – habitualmente um bom cartoonista no Jornal de Artes e Letras, desenhador repentista de “mesa de café”, com uma veia sombria e sarcástica e um traço vivaz – pareciam traduzir a impreparação ou o receio do artista perante tamanha encomenda: já Luiz Pacheco se referia, em carta a Cesariny, ao “nojo dos desenhos” de J. Rodrigues e a sensação de rigidez e insipiência anatómica destes deixava-os longe do nível que ilustradores anteriores de Sade como Valentine Hugo, Lilian Gourari ou Schem [Raoul Serres] tinham atingido). A escolha de Avillez é mais uma prova do “olho” certeiro de Ribeiro de Mello (afinal de contas, Henrique Manuel, habitual já na Afrodite, estaria também disponível, tal como Nuno Amorim, que estaria  no seu melhor a ilustrar esse ano o Super Macho de Jarry, ou mesmo Cruzeiro Seixas, que recuara em 1966 perante a possibilidade de fazer as ilustrações e teria em 1976 desenhos seus num livro da Afrodite, Do General ao Cabo Mais Ocidental): o Sade seria um passo lógico na continuação dos dois livros anteriores, passando do “gabinete de curiosidades” feérico do São Cipriano ao meticuloso exercício de escatologia do Apocalipse para culminar neste Sade pós-68, quase contemporâneo do de Pasolini (Saló sairia um ano depois), soturno e desencantado, em que o sexo e a possibilidade de titilação sensual (que eram ainda visíveis nos tímidos desenhos de João Rodrigues, e notórios nos ilustradores franceses anteriores) são cruamente dissecados e expostos como maquinações (literais, dado o recorrente desenho de máquinas) de um jogo de poder e de opressão por parte da “classe dominante”. O colchão cor de rosa, desenhado meticulosamente num traço delicado, que cobre a capa, contracapa e – de perfil (bela solução) – a lombada, é a ilustração perfeita dessa crueza sem sombra de sofisticação, que nem a cuidada factura manual da tipografia desfaz. (A curiosa decisão de Ribeiro de Mello de incluir, em “posfácio”, a reprodução dos documentos do processo da 1.ª edição de 1966 reforça esse aspecto sombrio do livro).

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Esta nova edição do Sade foi um dos cinco livros “invulgares” com que o editor “investiu” na Feira do Livro de Lisboa no “Verão Quente” de 1975, e um dos desenhos “do trotamundos Martim Avillez”chega a ser reproduzido pelo Diário de Lisboa na notícia que disso dá conta a 24 de Junho.

A coroar essa brilhante primeira metade da década de 70, Avillez tinha sido ainda o responsável pela capa e as ilustrações do último livro de Luiz Pacheco na célebre colecção da Estampa “Novas Direcções”, onde se tinham publicado Exercícios de Estilo e Literatura Comestível, livros que deram a tardia fama (e algum proveito) ao autor quase quinquagenário no arranque da década. Pacheco Vs. Cesariny (1974) estava pensado pelo seu autor como um grande regresso em forma num estilo em que era mestre consabido – a epistolografia – e como meio de limpar as teias de aranha na sua relação já longa com o “papa” do Surrealismo português, Mário Cesariny. A Revolução de Abril relegou subitamente o livro e as polémicas geracionais e inter-pessoais nele contidas para um plano secundário (disso se lamenta o autor no Diário Remendado), mas o trabalho de Avillez é mais uma vez notável, com uma mão cheia de ilustrações em torno do mote da máquina de escrever e, sobretudo, uma capa icónica, conjugando o seu estilo exuberante de hachuras e traço nervoso no desenho da caneta de dois aparos (que apontam para os dois nomes titulares) com um esquema cromático e tipográfico minimalista (o uso da tipografia “stencil” é particularmente eficaz).

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Em cima: apesar da desilusão com a carreira do livro após a sua publicação, Pacheco terá gostado minimamente dos desenhos de Avillez para o Pacheco versus Cesariny, a julgar pelo facto de em 1992 ter usado um deles na capa da sua edição (pela Contraponto) de O Uivo do Coiote.

Do seu trabalho como ilustrador em Nova Iorque, cidade onde se radicou a partir da década de 1970, encontram-se registos dispersos quer na imprensa mainstream, como a revista New York (em baixo) ou o New York Times Book Review, quer em publicações experimentais e “alternativas”, como a Semiotext(e), onde publicou em 1977 uma banda-desenhada “mito-biográfica” com base nos textos de Friedrich Nietzsche, “My life, by Friedrich Nietzsche”.

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Quanto à ilustração de livros nesta fase “americana”, registam-se alguns exemplos curiosos, como o de Class: A Guide Through the American Status System de Paul Fussel (1983), um guia satírico do mapa de “classes sociais” americanas e seus tiques. O nome de Avillez chega a constar como co-autor (com Susan E. Meyer) de um manual de desenho publicado em 1985 pela Macmillan.

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Num dos últimos números da revista Lusitania (que fundou em Nova Iorque em 1988 e que foi editando intermitentemente, partilhando ou cedendo o leme a editores convidados), o décimo (“The 23”, publicado em 2001), Avillez impõe de novo o seu cunho visual e a sua preferência pela BD como modo narrativo e expositivo na autoria do comic que dá o título à edição, contando a história de vinte e três judeus sefarditas que fogem do Brasil no século XVII perante a iminente chegada da Inquisição ao território. A encadernação “à japonesa”, em acordeão (protegida por capa dura e inserida numa caixa) dispõe a BD numa face e quatro ensaios na outra. Quase trinta anos depois do Apocalipse da Afrodite, este terá sido, possivelmente, o último grande momento gráfico de Martim Avillez como criador de livros.

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The 23, banda desenhada da autoria de Martim Avillez publicada no n.º 10 da revista Lusitania, 2001 (fotos gentilmente cedidas por Ana Neto).


(1) Cf. “Pintar em Portugal, Anos 60, Eduardo Batarda” in Eduardo Batarda Pinturas 1965-1998. Lisboa: CAM-FCG, 1998.

(2)  Figura esquiva: para além das fichas técnicas dos livros da Afrodite dos anos 70, nada se encontra dele ou sobre ele. Seria, ao mesmo tempo, um pseudónimo do editor e uma homenagem ao homónimo fotógrafo e artista gráfico portuense, outrora director da revista Ilustração Moderna e falecido em 1958? Seria o mesmo José Marques de Abreu que surge, na década seguinte, como arranjador gráfico em edições da INCM?

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Por subterrâneos e terrenos baldios

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E quando se pensava que era já impossível, quando se começava a acreditar que a espera era em vão, eis que chega a primeira (com franqueza, não me consigo de lembrar de nenhuma a este nível antes feita) monografia sobre uma editora feita por quem trabalhou nela e com ela colaborou e, sobretudo, da forma como (creio eu, pelo menos) uma monografia destas deve ser feita: cruzando a herança propriamente literária do seu catálogo com o lastro visual desse mesmo catálogo, indo fundo ao(s) arquivo(s) e retirando deste(s) documentos que sejam ao mesmo tempo inéditos ou pouco vistos, relevantes aos desígnios da monografia e com um alto valor ilustrativo e com um texto ou um conjunto de textos que consigam evitar a redundância monocórdica da hagiografia ou a frieza formalista da prosa académica.

Coordenado e orientado graficamente (e brilhantemente) por um colaborador de primeira hora da &etc, Paulo da Costa Domingos, este Uma editora no subterrâneo (edição Letra Livre) tem tudo isso e mais. Para além do conjunto de textos de autores convidados, que abrange um leque heteróclito de indivíduos, desde autores e colaboradores da casa (como Fernando Cabral Martins, Adília Lopes, Isaque Ferreira, Luis Henriques ou o próprio Costa Domingos) a editores do mesmo lado da “barricada” (Vasco Santos da Fenda), incluindo gente que apenas há bem pouco tempo pôs o pé na soleira da porta ao cimo das escadas que dão para a “cave”, como Emanuel Cameira (que prepara uma tese de doutoramento sobre a &etc) e eu mesmo, que passei essa porta e desci essas escadas para falar com o Vitor Silva Tavares sobre o Fernando Ribeiro de Mello e a Afrodite há sensivelmente um ano e fui recebido com a naturalidade com que se revê um membro da “família”.

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Os autores estão indicados apenas pelo nome: nenhuma biografia cria aqui entre eles qualquer tipo de hierarquia de valor (social, académico, “corporativo”, etc), tendo apenas o texto que escreveram como bilhete de identidade face ao leitor. A ausência de um  índice pode não ser alheia a esta forma radicalmente democrática, ou anárquica, de organizar o volume, obrigando o leitor a folhear sem guia, a embrenhar-se nessa terra incognita. E as recompensas aos aventureiros são muitas e variadas, a começar pela recolha de textos inéditos ou previamente publicados mas perdidos nos arquivos da imprensa: duas cartas de Luiz Pacheco a Vitor Silva Tavares, documentação dos arquivos da Censura relativa à produção da “folheca” &etc a partir de 1973, a transcrição de uma carta do editor ao seu então já colaborador “Paulinho” da Costa Domingos, em pleno “Verão quente” de 1975, a republicação do já célebre texto de Pacheco no Diário Popular em 1976, “O Galimar da Rua da Emenda”, e da importante entrevista do editor a Alexandra Lucas Coelho, publicada em 2007 no Público, e, em particular, da “auto-entrevista” que Silva Tavares propôs como defesa do seu caso no episódio da apreensão da edição do folheto O Bispo de Beja, publicada no “seu” Diário de Lisboa em 1980. Ainda particularmente notáveis são quatro pequenas notas escritas pelo próprio Silva Tavares, relativas à edição ou recepção de outros tantos livros da & etc, e que tinham previamente sido publicadas como folhas-de-sala a acompanhar uma exposição comemorativa dos 33 anos da editora, em 2006.

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Quanto ao aparato visual da edição, é igualmente impressionante em quantidade (incluindo a reprodução de todas as capas do extenso catálogo de quarenta anos) e em qualidade, com particular relevância para algumas fotos, esboços preparatórios de desenhos que deram capas, um notável envelope ilustrado de Carlos Ferreiro enviado de Paris, uma colagem-homenagem do editor a Olímpio Ferreira, etc, etc. Refira-se que o texto de Luis Henriques, “A voz subterrânea”, se salienta particularmente no que a este aspecto gráfico do longo catálogo da editora diz estrito respeito.

Que a mão segura, o bom gosto e a memória impecável de Paulo da Costa Domingos tenham sido os responsáveis por todo este titânico trabalho de recolha, selecção, tratamento e apresentação gráfica não devia surpreender quem conhece os livros da Frenesi ou quem com ele fala no Anchieta todos os Sábados ou anualmente na Feira do Livro ou quem viu a sua decisiva participação no documentário de Cláudia Clemente sobre a editora, tapando alguns hiatos de contextualização e compreensão histórica do objecto do filme. E é por culpa dele que entro nesta história.

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O meu texto começa com a primeira, a mais remota memória pessoal de um encontro com um livro da & etc: um exemplar do Dissertação do Papa sobre o Crime de 1976, que encontrei em 1980 nuns misteriosos e apetecíveis caixotes de livros por cuja chegada de Luanda o meu pai esperara quase dois anos, desde que abandonara de vez a capital angolana, e que ainda hoje guardo. A cuidada factura continua a espantar todos estes anos depois: a sobrecapa de papel branco revelando a cartolina da capa, o impacto do negro e vermelho naquela, a sinuosidade tubular do desenho das letras de Carlos Fernandes, a aposição delicada de um hors-texte no verso da primeira página, a reprodução do motivo gráfico da capa e sobrecapa na folha de rosto, tudo ali remete, ao mesmo tempo, para o contexto visual que produziu esta edição (muito próximo da alguma banda-desenhada underground ou do design das capas de discos) mas também para toda uma cultura de oficina que Silva Tavares absorvera nos quase vinte anos anteriores.

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É um perfeito exemplo de uma marca de gosto do editor,  imposta por ele e não pelo designer, uma marca que encontramos já, por exemplo, dez antes antes, nas capas de Espiga Pinto para a colecção “Poesia e Ensaio” da Ulisseia (onde Silva Tavares foi director editorial), tal como é evidente no uso de sobrecapas em edições brochadas, com o arrojo do papel kraft em impressão serigráfica. E se dúvida houvesse sobre o gosto já antigo do editor da & etc de se meter em arriscadíssimos projectos gráficos, em que a fronteira entre livro comercial e livro de artista se esbate, que outra prova seria necessária além da edição d’A Cidade Queimada de Cesariny, em 1965?

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Além da pequena memória pessoal, parti para uma proposta de filiação de Vitor Silva Tavares e da & etc no que chamo de “exclusiva irmandade de piratas poéticos”, um grupo restrito de editores corajosos que ao longo da história trabalhou no fio da navalha e com o ferrete de “marginais” (aos sistemas religiosos, políticos, financeiros, jurídicos, etc, e por vezes “contra” eles também). Pegando no célebre “carolo” de Pacheco, chamando Silva Tavares de “Galimar” dos pequenos, aproveitei para evocar Eric Losfeld e a sua Terrain Vague como um modelo mais adequado ou alternativo ao ubíquo Pauvert, que era, no fundo, o tipo de editor que todos os pequenos editores “à margem” ou “contra” dos anos 50 aos 70 do século passado queriam ser. Descobri há uns anos uma curiosa monografia sobre Losfeld e a Terrain Vague, La Légende du Terrain Vague, publicada em 1977, dois anos antes do editor, já “retirado” (e falido) das lides independentes, publicar a sua autobiografia (Endetté comme une mule, ou la passion d’éditer). Se descontarmos o aspecto bem mais “pobre” desta edição (toda a preto, com uma paginação muito elementar, e sem o rasgo gráfico que se associara a algumas famosas edições de Losfeld), as suas motivação e estrutura são muito próximas da edição da Letra Livre: uma monografia essencialmente evocadora e celebratória, recorrendo ao vasto arquivo visual da editora celebrada e reunindo uma extensa série de depoimentos pessoais de gente do “meio”. Claro que a diferença crucial aqui é que essa edição de 1977 celebrava uma carreira já terminada e esta que acaba de ser lançada celebra um percurso que “segue dentro de momentos”.

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Termino evocando outros dois corajosos “espalha-brasas” através de uma fotografia onde se pode vê-los juntos, tirada em Nova Iorque em 1960 (a foto, que não está reproduzida no texto, foi retirada daqui): Barney Rosset, da Grove Press, e Maurice Girodias, da Olympia Press, combatentes na vanguarda da resistência à censura nos anos 50, que acabaram também falidos e quase esquecidos. Com Losfeld, três exemplos do que a recente obsessão com a gestão macroeconómica e o marketing musculado e milionário na edição (com o “sucesso”, em suma) facilmente nos levaria a concluir tratarem-se de “fracassos”, mas cujos sorrisos serenos e secretamente cautelosos me dizem que são, antes, “alguém que sabe e guarda um segredo, a chave de um tesouro imaterial que, por isso mesmo, parece difícil se não impossível de quantificar. É, por paradoxal que pareça, a foto de dois vencedores. Creio que Vitor Silva Tavares conhece esse segredo e tem uma cópia dessa chave.” (& etc – Uma editora no subterrâneo, p. 71).

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A propósito do raríssimo acontecimento que foi a sétima exibição em mais de trinta anos do mixed media de Ernesto de Sousa Almada, um nome de guerra  (concebido entre 1969 e 1972, foi exibido pela primeira vez em 1979), no passado dia 13 na Cinemateca Portuguesa, lembrei-me de resgatar uma notável entrevista/reportagem de Vitor Silva Tavares para o Diário de Lisboa, publicada no “Suplemento Literário” de 24 de Abril de 1969 e que encontrei nas “escavações” que fiz tanto na Hemeroteca como no arquivo online do Diário de Lisboa para o meu projecto de monografia sobre Fernando Ribeiro de Mello. Feita durante a rodagem de algumas sequências no atelier de Almada Negreiros que aparecem no filme final (tal como a de Almada a folhear um jornal), é um pedaço notável de prosa e acaba por ser exactamente o que o subtítulo indica: a reportagem “entrou” de tal forma “na fita” que muitos excertos da conversa entre Silva Tavares, Ernesto de Sousa e Almada, registada pelo primeiro num gravador Sony (quem sabe, um destes), acabaram na trilha sonora do mixed media, pelo que estas duas páginas (e mais um pequeno resto na página 7 do Suplemento) têm o acrescido valor de serem quase como um guião aproximado de um projecto que, diga-se, parece ter sido feito para acolher e absorver estes cruzamentos e coincidências (o texto inclui mesmo “colagens” de excertos de um diário de rodagem mantido pelo “assistente” Carlos Gentil-Homem).

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O que se viu/ouviu na sala da Cinemateca foi um filme a preto-e-branco projectado sobre o centro do écrã da sala, com o som autónomo da imagem (obviamente captados em dessincronia, ainda que a sequência de Jorge Peixinho a dirigir uma “orquestra” de instrumentos improvisados durante a performance Exercício de Comunicação Poética – apresentada no Clube de Teatro 1° Acto de Algés em 1969 – se faça acompanhar da música então registada), sendo que lateralmente eram projectados slides ora monocromáticos, ora bicromáticos (preto e ocre) que interceptavam os limites do plano fílmico e o penetravam, criando assim um efeito de “sobreimpressão” com um particular impacto visual.

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Concebidos por Carlos Gentil-Homem (com o colectivo do Estúdio Quid) ao estilo, por exemplo, da “tipografia expressiva” de um Massin ou das experiências de William Klein, estes slides são, estilisticamente, um perfeito complemento e uma extensão dos cartazes serigráficos que ele criou para o acompanhamento das exibições e uma adição visual à projecção absolutamente crucial.

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Quando me encontrei pela primeira vez com Vitor Silva Tavares para falar sobre Fernando Ribeiro de Mello, Almada entrou logo na conversa: o agora editor da &etc levara o Mestre a ver ao vivo o “golpe literário” (como lhe chamou a Seara Nova) que fora a sessão de declamação poética O Teste, organizada por Ribeiro de Mello em 1964 (dois anos depois, A Engomadeira seria reeditado na Afrodite na Antologia de Vanguarda), e citou-o, a propósito desta coisa de dar entrevistas ou prestar testemunho sobre isto ou aquilo: era “serviço”. Tal como o próprio Almada “servira”, ao sentar-se, nessa tarde de 17 de Abril de 1969, com Silva Tavares e Ernesto de Sousa para conversar. Pois bem: toca-me agora retribuir com algum serviço, nestes 120 anos de Almada e 40 de Vitor Silva Tavares como editor de livros. Eis, pois, aqui a transcrição integral desta reportagem, em versão PDF e como documento de texto.

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Era uma vez uma pequena editora chamada Pantheon…

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Que seja apenas uma pequena livraria independente de Lisboa, a Letra Livre, a publicar por cá este texto essencial é a imagem precisa da patologia diagnosticada por Schiffrin. Num mercado editorial nacional mergulhado em crise profunda – crise não meramente financeira, ou em que esta reflecte outras carências a montante e a jusante – foi preciso alguém “à margem” para dar à estampa um texto onde se explicam as razões dessas mesmas crises do sector.

Apesar dos mais de dez anos que distam da primeira edição deste texto seminal (na versão francesa em 1999 – e com um título que se tornou num slogan de protesto: “a edição sem editores” – pelas edições La Fabrique, e na versão inglesa em 2000 pela Verso, a partir da qual a tradução de Octávio Lemos e Rui Lopo foi produzida, e em versão – respire-se fundo – não “Acordada”), este Negócio dos Livros de André Schiffrin aparece apenas cinco anos depois do boom das aquisições de editoras independentes portuguesas por parte de grupos financeiros e de media, resultando no panorama que hoje caracteriza a edição e a venda de livros em Portugal. Sendo esta, na sua parte mais dramática, uma história americana da década de 1980, soará, para um leitor português atento ao fenómeno, a coisa muito próxima, chegando até na precisa altura em que se vão conhecendo alguns lamentos vindos de editores que venderam as suas “casas” a esses grandes grupos. Por via da globalização fulminante destes últimos vinte anos, esta é já também uma história portuguesa.

O autor é filho de Jacques Schiffrin, que em 1923 fundou as Éditions de la Pléiade, e cuja “Bibliothèque” vendeu à Gallimard, passando a trabalhar para a grande editora francesa. A guerra e a vergonha da ocupação nazi (e um vergonhoso despedimento da Gallimard) fizeram-no fugir e engrossar o grupo de expatriados judeus europeus em Nova Iorque, cidade onde se estabeleceu e fundou a Pantheon.

Esta riquíssima história de duas gerações de editores é coberta com detalhe e, no caso do seu pai, com algum desejo de justiça a um editor esquecido (e Schiffrin não é meigo com a Gallimard). O episódio paterno – marcado pelo tema da confiança numa grande empresa e da “traição” final desta – dá o mote sombrio à narrativa a partir dos anos 80, quando o subtítulo (“como os grandes grupos económicos decidem o que lemos”) começa a fazer sentido. Vendida pelo seu pai à Random House em 1961, a Pantheon – que nesse ano contratou André Schiffrin como director editorial, vindo da New American Library, o braço americano da Penguin – viu-se de novo engolida na voracidade corporativa em 1980, quando o grupo Random (entretanto comprado pela multinacional RCA) foi adquirido pelo magnata S. I. Newhouse, que prometeu, contudo, manter a integridade editorial de cada uma das chancelas. Cedo se viu que estava a mentir. É a partir deste ponto que o livro faz um zoom vertiginoso da big picture para o detalhe íntimo e a tensão quotidiana de viver sob o jugo de “alguém com a pose de um rufia, que passasse logo à acção e que não tivesse medo de fazer o necessário para obter a maior quantidade de dinheiro possível” (p. 111). O “rufia” em questão foi Alberto Vitale, que Newhouse trouxe para dirigir o grupo Random e transformá-lo num produtor de best-sellers. A edição de livros passava a ser equiparada à edição de discos: o objectivo era produzir para os tops e em massa.

Vitale foi apresentado por Newhouse como um homem de cultura e de sensibilidade, uma caracterização que depressa ficaria comprometida pelo próprio, que dizia estar demasiado ocupado para ler um livro (embora tenha acabado por aceder a ler os livros de Judith Krantz, a autora de romances com mais vendas da Crown). Num arranha-céus onde quase todos os escritórios estavam forrados com livros, o de Vitale oferecia um forte contraste. Nem um único livro podia ser visto nas suas prateleiras e as fotografias em exibição não eram de autores, mas do seu iate.
Conheci Vitale na luxuosa moradia de Newhouse em East Side. Ele cumprimentou-me com as seguintes palavras: ‘Ah, a Pantheon,de onde vêm todos aqueles livros maravilhosos!’ O que eu na altura interpretei como elogio era, na verdade, uma acusação.
[…] Houve uma reunião decisiva em Janeiro, na qual se provou a distância que existia entre nós. Vitale consultava a lista dos livros que iriam sair na Primavera de 1990, catálogo de que estávamos particularmente orgulhosos. ‘Quem é este Claude Simon?’, perguntou com desprezo, nunca tendo, sem dúvida, ouvido falar do romancista premiado com o Nobel. ‘E este Carlo Ginzburg?’, provavelmente o mais renomado historiador italiano. Então reparei no seguinte: Vitale lia primeiro o lado direito de cada página, em que estavam referidas as tiragens, e só então passava ao outro lado, em que vinham listados os intrigantes títulos das obras. Para ele, era como se fôssemos sapateiros a produzir calçado demasiado pequeno para a maior parte dos clientes. ‘Que sentido tem editar livros com tiragens tão reduzidas?’, perguntou, gritando. Não tínhamos vergonha?” (pp.112-114)

Trata-se, como podemos intuir, de uma história que acaba mal para o editor da Pantheon (e das muitas outras “Pantheons” por esse mundo fora), mas que, pela qualidade da prosa em que nos é contada, tem o condão de abrir avenidas de compreensão meticulosa de algo de que a maioria dos leitores tem apenas um conhecimento superficial ou – será essa a esperança de quem move os cordelinhos deste complexo emaranhado de fusões – desconhece na sua totalidade. Poder-se-ia arriscar e afirmar que este livro tem, para o mundo da edição, a mesma importância que No Logo de Naomi Klein teve na discussão e análise da nossa cultura mercantil globalizada na última década, com uma vantagem óbvia: Schiffrin foi um dos agentes e actores desse mundo, é uma das personagens desta história, é sua a vida que estas páginas trazem. A sua capacidade de associação conceptual e reflexão é outro dos trunfos deste texto, em particular a ideia de que “o fim da Guerra Fria não teve um efeito intelectual benéfico sobre o mercado editorial” (p. 22), substituindo a curiosidade pelo “outro”, pelo “estranho”, e uma crença nos benefícios da democracia por uma nova divindade monolítica e “apolítica” e uma nova fé: o mercado globalizante e tudo-conquistador e o lucro máximo, pelos quais os grandes grupos editoriais parecem modelar o seu ethos. Secundado posteriormente em ensaios como o So Many Books de Gabriel Zaid (a edição original, Los demasiados libros, é de 1996, mas a tradução inglesa foi publicada em 2003), está também a proposição (devidamente documentada) de que o aumento da quantidade não veio aumentar, em razão directa, a qualidade e, sobretudo, a diversidade da oferta, antes pelo contrário, sendo as comparações com a situação do mercado editorial americano no século XIX ou de meados do século XX deveras esclarecedoras.

Na década de 40, a edição da New York Times Book Review tinha, em média, 64 páginas, o dobro do tamanho da actual edição de domingo. Centenas de editoras tinham os seus livros publicitados e recenseados nessas páginas. A infra-estrutura das pequenas editoras, livrarias e clubes do livro que existia nos anos 40 era capaz de alcançar um público efectivamente muito vasto. As alterações das décadas recentes não foram motivadas pela necessidade de uma maior eficiência ou eficácia. Elas ocorreram devido a uma alteração de propriedade e de objectivos.” (p. 24)

Uma das inúmeras discussões que este texto suscita também, e necessariamente, é a que deve ser feita em torno da agonia da publicação de não-ficção, de uma certa não-ficção que não aponte ao consumo imediato dos tops e não alimente ou derive dos géneros “populares”, como os livros de auto-ajuda ou as biografias “autorizadas” de vedetas dos media ou da alta finança (algumas das “pepitas” do catálogo da Pantheon eram autores como Foucault, Chomsky ou o historiador americano Studs Terkel, pelo que o autor escreve com absoluta propriedade no que a este campo diz respeito). Essa agonia estende-se, escusado será dizê-lo, à crítica de não-ficção na imprensa especializada ou nos suplementos, ou melhor – dado que já não há “suplementos” propriamente ditos – nas duas ou três páginas dedicadas aos livros dos diários e semanários, que se vêem ocupadas pela febre da recensão da nova ficção que vai sendo publicada em catadupa e onde se deposita o grosso do investimento em marketing das editoras ou grupos editoriais.

Que seja apenas uma pequena livraria independente de Lisboa, a Letra Livre, a publicar por cá este texto essencial é a imagem precisa da patologia diagnosticada por Schiffrin. Num mercado editorial nacional mergulhado em crise profunda – crise não meramente financeira, ou em que esta reflecte outras carências a montante e a jusante – foi preciso alguém “à margem” para dar à estampa um texto onde se explicam as razões dessas mesmas crises do sector. Passar a estar à margem (e mesmo estar “contra”) é precisamente uma das soluções radicais que o autor aponta (e cumpre, ao ter fundado a editora “non profit” New Press), e aqui o “intróito breve” de Vitor Silva Tavares tem encaixe perfeito (ainda assim, fica-se a pensar no que poderiam escrever sobre o assunto, por exemplo, um Nelson de Matos ou um Carlos da Veiga Ferreira). Ficar à margem deste texto é que será totalmente incompreensível.

Pedro Piedade Marques
Maio de 2013

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Ficha dentária: a genealogia de uma capa icónica

Um dos raros, se não mesmo o único dos editores “veteranos” (leia-se: os que já andavam nisto há mais de 40 anos) a falar de grafismo e tipografia com a mesma segurança com que fala de literatura, Vítor Silva Tavares confidenciou-me há tempos que a famosíssima, a icónica capa de António Sena da Silva para a não menos famosa Antologia do Humor Português, que Fernando Ribeiro de Mello publicou pela Afrodite em 1969, tinha uma genealogia à qual ele, Vítor Silva Tavares, estava directamente ligado. Mais: que, sem a sua intervenção, ela poderia ter sido diferente.

A história é simples: a célebre dentadura que Sena da Silva colocou na capa sobre fundo laranja teria sido retirada de um álbum de “vinhetas” gráficas do século XIX publicado em 1966 por Jean-Jacques Pauvert (uma selecção do catálogo Deberny & Peignot, com prefácio, nada menos, do que de Massin). Vítor Silva Tavares, sempre vigilante, tê-lo-ia adquirido numa ida a Paris e trazido para Lisboa.

Ora é precisamente deste álbum que, para ilustrar um texto publicado no suplemento & etc (que ele entretanto começara a dirigir com José Cardoso Pires no Jornal do Fundão) no dia 2 de Julho de 1967, decide usar pela primeira vez a dentadura. Eis, pois, o primeiro registo desta ficha dentária.

Segundo o próprio Vítor Silva Tavares, o álbum terá sido emprestado a Sena da Silva, ou terá chegado a ele numa série de empréstimos encadeados. O certo é que foi dele, novamente, que a sólida dentição gaulesa saiu para a sua segunda e mais famosa aventura editorial portuguesa (em baixo, fotos da campanha de promoção da Antologia do Humor Português em 1969: o editor entrevistado por João Paulo Guerra e promoção em frente da montra de uma livraria).

(com um agradecimento especial ao Paulo da Costa Domingos pela digitalização do suplemento do Jornal do Fundão)

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Lisboa, 232,7 graus centígrados

Quando o bombeiro Montag não era o único a brincar com o fogo em Lisboa, e o medo da perseguição fazia dos próprios editores incineradores de livros.

Fahrenheit 451 de François Truffaut estreou em Lisboa em Dezembro de 1967, possivelmente num dos cinemas da Avenida da Liberdade e, aparentemente, sem problemas com a censura (a julgar pela ausência de menções, por exemplo, no Cinema e Censura em Portugal de Lauro António, edição da Arcádia de 1978). Já não os tivera a primeira edição portuguesa da obra de Ray Bradbury que lhe servia de base, onze anos antes (o número trinta e três da colecção Argonauta da Livros do Brasil), com tradução de Mário-Henrique Leiria: a ficção científica escapava, sob a capa e o estigma da menoridade de um género marginal, à inclusão no Index. Não que este romance não tivesse condimentos capazes de excitar o faro dos controladores. Bem pelo contrário: todo ele era um bolo indigesto ao palato dos implacáveis censores de livros portugueses (que nesses anos de sessentas rivalizavam em sanha persecutória com os piores censores do outro lado da Cortina de Ferro, suas supostas némesis), parecendo ter sido confeccionado de propósito por algum autor português a coberto de pseudónimo “camone” para lhes provocar uma infecção alimentar de monta.

Eis a primeira parte desta ironia de duas faces. Quer por baixo da ilustração de Lima de Freitas de 1956 (que incluía um “cão-polícia mecânico”), quer nestas novas roupagens fotográficas da edição tie-in (termo contudo anacrónico no mundo da edição portuguesa de 1967) que visava aproveitar a estreia deste sucesso cinematográfico quase garantido, o texto de Bradbury sobre um estado futuro onde a censura aos livros passa da selecção para o puro extermínio indiscriminado pela mão de bombeiros profissionais não terá causado qualquer comichão à Comissão de Censura (mais uma vez, nenhum registo consta das listas conhecidas). Mas, quando o filme de Truffaut estreia em Lisboa, cheira a livros queimados. A cinzas, pelo menos.

O ano de 1966 fora de razia censória, e no olho do furacão estivera Luiz Pacheco (colega de andanças surrealistas de Mário Henrique Leiria). No caso mais grave, as suas participações como prefaciador na edição da Filosofia de Alcova do Marquês de Sade e como um dos autores da Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, ambas edições da Afrodite de Fernando Ribeiro de Mello, custaram-lhe implacáveis condenações (e o suicídio do ilustrador da primeira, João Rodrigues). Talvez por isso, a sua aguardada estreia nesse mesmo ano como autor “a solo” com Crítica de Circunstância, numa das editoras de referência de então, a Ulisseia, se tenha saldado pela (esperada) investida da PIDE. As autoridades assaltam os escritórios da Ulisseia e apreendem todos os exemplares da obra que estavam em armazém. Todos? Não. O editor Vítor Silva Tavares, prevendo o óbvio, tinha salvaguardado umas centenas, levando-os certa noite de carro do armazém da Ulisseia para uma garagem na quinta dos seus pais a 60 Kms de Lisboa.
Fim feliz da história? De novo, não. Pouco tempo depois, e antes de sair da editora, V.S. Tavares conta o segredo (apenas conhecido do seu irmão, também funcionário da Ulisseia) ao proprietário Manuel Correia.

“E saí. Tempos depois, creio que um sobrinho dele […] quis saber da administração da editora, e o meu irmão falou-lhe então da existência desses livros e o rapaz, atemorizado, numa certa noite, foi lá com o meu irmão e recolheu os caixotes com os exemplares da Crítica. Caixotes esses, livros esses, que nessa mesma noite foram regados a gasolina, algures no parque de Monsanto, e desapareceram. […] Por um lado, salvo os livros das garras da PIDE, por outro lado, por um excesso de honestidade, acabo por ser também responsável, de certo modo, pelo triste destino que tiveram os ditos.” (in Puta que os pariu!, João Pedro George, p. 397).

Não era, pois, a rosas que cheirava o ar de Lisboa quando o filme estreou no ano seguinte, a mesma Lisboa onde eram as pessoas que trabalhavam e produziam os livros que se encarregavam de os queimar com medo de represálias: teria Bradbury pensado num twist tão perverso, numa tão radical versão da auto-censura que eliminava a necessidade de bombeiros pirómanos? E quantas mais fogueiras de livros ardiam e arderam por esses recantos da Grande Lisboa?
(Nota final de remate da amarga ironia desta história: quando as instalações da PIDE são ocupadas em 1974, há umas dezenas de livros ali pelos cantos. Que livros? Os exemplares da Crítica de Circunstância, preservados e salvos para a posteridade, que os agentes tinham apreendido em livrarias e na editora.)

(texto publicado na revista Bang! n.º 13, Julho de 2012)

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