Natália e o espectro*

Dada amiúde a lendárias contradições, excentricidades e bizarrias, que soube envolver na capa de uma vida corajosa e de uma obra variada e contestatária, Natália Correia não evitou uma estranha decisão a três anos da sua morte: impedir a reedição da célebre Antologia de 1965 com argumentos muito próximos dos dos juízes do Plenário que a tinham condenado em 1970.

Um espectro parece assombrar, este ano, a celebração do centenário e, mais propriamente, a evocação dos 30 anos do falecimento de Natália Correia. Ao contrário do que se poderá supor pelo arranque do texto, e da sombra marxista-engeliana do Manifesto que o cobre, não se trata do comunismo: esse, ou melhor, o que dele tinha, para Natália, contagiado a vida política e cultural portuguesa durante a Revolução de 1974-75, tinha já ela exorcizado no diário Não percas a rosa, escrito durante esses dias de brasa (mas, é certo, confortavelmente publicado apenas após o frémito revolucionário, em 1978). Nele escrevera a poetisa, a 9 de Outubro de 1975, que “pululam Marx e a pornografia” nos passeios da “Lisboa casbática” do PREC1. É o balanço para se avançar para o espectro que, na minha opinião, lhe embaraça, imperceptivelmente, este ano de redondas efemérides.

É, esse espectro, realmente mais modesto, e tão modesto que parece ter passado despercebido aos recentes exegetas da obra de Natália, mas não tanto assim que impeça a um leitor atento um choque. Podemos quantificá-lo em menos de quatro dezenas de palavras, quase metade de um parágrafo numa carta da poetisa datada de 10 de Julho de 1990 e endereçada à Sociedade Portuguesa de Autores (SPA). Eis essas palavras: “… a sua reedição, despojada do sentido combativo que teve, prestar-se-á a uma leitura em que os versos licensiosos nela antologiados atrairão os consumidores da pornografia, causando um grosseiro sensacionalismo amplamente lucrativo para o editor mas que expressamente repudio2. Referia-se Natália ao desejo de Fernando Ribeiro de Mello, o primeiro editor da Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica em 1965, de reeditar o título para marcar os 25 anos das suas Edições Afrodite (desejo, na verdade, manifestado desde pouco depois do 25 de Abril de 1974, e não apenas fixado na Antologia: nesse período, Mello procurou reeditar alguns títulos da Afrodite anteriores à Revolução).

O espectro, para quem leu essas palavras com atenção, não será tanto a estranha dureza da poetisa para com o outrora jovem e corajoso editor, seu protegido, que lhe publicara brilhantemente esse livro, e que com ela se sentara nos bancos do Tribunal Plenário da Boa-Hora em Lisboa, no julgamento pelo qual acabaram condenados em 1970, o mesmo editor que, em 1981, e já em derrapante situação financeira, viera em seu socorro, publicando-lhe em luxuosa edição a peça Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente, quando o governo AD, ou, mais precisamente, o secretário de Estado da Cultura Vasco Pulido Valente, lhe impedira a prometida encenação da peça no D. Maria II, pelo 4.º centenário da morte de Camões em 1980 (sendo ela por então, lembremo-lo, deputada pelo PSD na Assembleia da República). O espectro até poderia ser a espantosa ingratidão do conjunto de poetas, publicados na Antologia de 1965, que Natália arregimentou neste seu pedido de mediação jurídica à SPA e que pareciam ter-se esquecido que, 20 anos antes, o editor se sentara no tribunal em nome deles também, em defesa da liberdade de os publicar. Mas, para mim, o espectro está ali nas palavras em que Natália afirma que os “versos licensiosos” dessa Antologia iriam atrair “os consumidores da pornografia”: se, em 1990, a pornografia e Marx já não “pululavam” nas ruas (aquela um discreto produto de consumo em sex-shops, clubes de vídeo, revistas e cinemas “especializados”; Marx em processo de momentânea mas sonora queda em desgraça, desde a abertura do Muro de Berlim em 1989 até à iminente dissolução da URSS, que se daria em 1991), era ainda mais bizarro que, por trás desta tão intensa defesa da Antologia face a uma suposta horda de pornófilos, estivesse uma poetisa que o Estado Novo acusara, precisamente, de divulgar pornografia através desse livro. Mais: uma poetisa que, em 1987, quando deputada independente pelo PRD, recebera na AR, com beijos, abraços e um sorriso incandescente, à frente das câmaras, a húngara Illona Staller, conhecida como Cicciolina3, a mais famosa actriz pornográfica europeia dessa década, e a favorita de muitos desses “consumidores da pornografia” que Natália temia fossem começar a folhear-lhe a Antologia.

Quando li estas linhas, confesso que abri a boca de espanto: era com argumentos muito próximos dos censores e dos juízes do Plenário que Natália procurava defender a sua obra. A autora da “Defesa do poeta” concordava, afinal, com o censor Raymond Palhares, que fixara o adjectivo “pornográfico” à sua apreciação da Antologia4, e com o tom geral do libelo acusatório (como lhe escrevera Luiz Pacheco, outro dos réus: “querem a todo o custo evitar um processo político, e manter-nos no banco dos pornográficos”5). Mas, se passara por este calvário no processo da edição original, para quê ameaçar abrir um segundo processo por causa de uma reedição, para mais feita pelo editor original? Que este litígio entre Mello e Natália acontecera, sabia-o eu por Vitor Silva Tavares (VST), que em 2012 me acompanhara e ajudara no arranque do projecto do livro Editor Contra, e me dissera que essa tinha sido a única vez que se tinha proposto testemunhar contra o seu amigo, pois considerava Natália a legítima autora do livro (que Mello era defensor da teoria de que o editor é, no mínimo, o co-autor das edições de antologias, e que, em certos casos, essa teoria me parece ter legítima defesa, é outra conversa). Mesmo a viúva de Mello me contou que as coisas não acabaram bem entre ele e Natália.

Que este segundo processo não conste dos melhores textos que li sobre a publicação da Antologia (os de Francisco Topa e Vladimiro Nunes, este o responsável pela última reedição6) é normal: tratam, afinal, apenas do primeiro processo. (Que eu próprio o não tenha incluído no Editor Contra – apanhado de surpresa e choque pela morte do VST em Setembro de 2015 e, por ela, impelido à urgência de o publicar, antes de voltar a sondar o Arquivo Natália Correia, onde encontraria, meses depois, estes documentos – é algo pelo qual não há dia em que não me penitencie). Mais estranha é a sua ausência do documentário de Joaquim Vieira e Filipa Martins Insubmissa para a RTP, de 2021 (em que, numa primeira versão, era a foto do VST usada como se do seu amigo Mello se tratasse…), ainda que conste da biografia de Filipa Martins saída já este ano, que reproduz a carta7. Aqui, ele é mencionado em ligação ao outro litígio de Natália com Mello por esses anos, o relacionado com a reedição de Erros Meus (pretendida por ela nas Edições O Jornal – que veio a publicá-la em 1991 – e contestada por ele). Para além de se estranhar essa absoluta confiança de Natália na “sociedade livre” que supostamente se vivia em 1990, e o nenhum crédito meramente poético atribuído por ela à Antologia (para além do crédito político – já ultrapassado, segundo ela – e do de poder constituir uma espécie de isco licensioso), fica claro (até pelo que a biógrafa escreve no final do segundo parágrafo da pág. 294 de O dever de deslumbrar) que não era a “pornografia” ou sequer o seu bom nome e o da Antologia que preocupava a poetisa, mas, tão simplesmente, algo mais comezinho, venal até: Natália sabia que Mello estava falido, deixara de prestar contas, tinha processo aberto contra o Estado e perdera o prestígio que, salvo alguns tropeções, a Afrodite granjeara até 1980. A morte dele, em Fevereiro de 1992, terá posto um fim aos dois casos: “morreu o bicho, acabou-se a peçonha”8, terá dito ela do outrora jovem portuense que lhe chamara muitas vezes “madrinha”, 30 anos antes. (A Antologia acabaria por ser reeditada pela primeira vez em 1999, numa edição conjunta da Antígona e da Frenesi).

Fiz questão de que este assunto fosse abordado no filme baseado no Editor Contra, quando, há mais ou menos 3 anos, nele comecei a colaborar com o Luís Alvarães (depois de o ter apoiado na inclusão no guião da série 3 Mulheres da personagem Mello, em 2018, série que, de resto, achei notável no que à questão da história da edição dizia respeito). No final desse filme, pode-se ver Mello (interpretado por Flávio Gil), depois de lhe ser lida por inteiro a carta de Natália à SPA, fazer uma pausa, respirar fundo e dizer: “o pior de tudo é perder uma amiga”. E é este o coração do espectro: a traição de uma amizade.

(Editor Contra foi ante-estreado na Cinemateca Portuguesa em Dezembro de 2022 e exibido novamente no Centro Cultural das Caldas da Rainha em Março deste ano. Está dedicado a Aníbal Fernandes e à memória de Vitor Silva Tavares. Aguarda estreia na RTP2.)

Frames do genérico de Editor Contra de Luís Alvarães (2022, com animação de Lucy Pepper)

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Notas:
1. CORREIA, Natália. Não percas a rosa: diário e algo mais (25 de Abril de 1974 – 20 de Dezembro de 1975). Lisboa: Editorial Notícias, 2003 (2.ª ed.), p. 310.
2. PT/BPARPD/PSS/NC/3-1/09, folha NC9075-5_0005 – Arquivo Natália Correia, Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada (https://arquivos.azores.gov.pt/details?id=1226915).
3. https://arquivos.rtp.pt/conteudos/cicciolina-na-assembleia-da-republica/
4. Joaquim Raymond Palhares, chefe do Serviço de Leitura de Livros da Direcção dos Serviços de Censura, assinou a ficha de leitura da Antologia a 27 de Dezembro de 1965.
5. TOPA, Francisco. “A sádica nostalgia das fogueiras do Santo Ofício: o processo judicial contra a Antologia de poesia portuguesa erótica e satírica“, in Historiæ, Rio Grande, 6 (1), 2015, p. 135 (https://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/81482).
6. De Topa o texto “A sádica nostalgia das fogueiras do Santo Ofício: o processo judicial contra a Antologia de poesia portuguesa erótica e satírica” (ver nota 4) e de Nunes o texto “Versos escarlates, risos amarelos e lápis azuis: crónica de um livro proibido”, introdução à reedição da Antologia na sua Ponto de Fuga, em 2019.
7. MARTINS, Filipa. O dever de deslumbrar. Lisboa: Contraponto, 2023, p. 294. Por erro, indiquei na versão publicada no Público que a carta não era reproduzida na biografia, tendo sido amavelmente alertado pela autora, Filipa Martins, a quem peço desculpa. Este texto foi, pois, ligeiramente alterado de modo a corrigir esse erro.
Em resposta à autora, a 24 de Julho, escrevi o seguinte:
“Cara Filipa, touché: errei nesse detalhe de indicar que a carta não foi reproduzida no seu livro. Corrigirei essa indicação na republicação no blogue.
De resto, mantenho a argumentação (reforçada até pelo que a Filipa escreve no final desse parágrafo na pág. 294), e creio mesmo que as palavras de Natália nessa carta servem perfeitamente para a defesa de Mello: o verdadeiro motivo dela para travar a reedição não foi a questão “política” (O Encoberto tinha sido publicado para a situação de 1969, e ela não teve problema em reeditá-lo em 1977) e muito menos o receio de uma horda de pornófilos a folhearem-lhe o livro, mas apenas a situação financeira do editor da Afrodite. (Que um editor queira lucrar com o seu investimento numa edição parece-me ser algo claro, óbvio, sobretudo para alguém que, como Natália, fora editora ou trabalhara em editoras, e acusá-lo disso é absurdo).
Acontece que essa situação financeira era já periclitante em 1977 (com carta aberta ao PM Mário Soares no Jornal Novo a informar toda a gente disso), e ainda mais em 1981 (o processo com que Mello investe justamente contra o Estado, pela má gestão da distribuidora “intervencionada” Bloco-Expresso entre 1975 e 1979, arranca dias depois da apresentação do Erros Meus no TNDMII). Duvido que Natália não o soubesse quando aceitou ser publicada nessas duas vezes pelo mesmo editor.
Além disso, não houve da parte de Mello qualquer obsessão com a reedição da Antologia, como parece concluir-se da leitura da carta da Natália. Mello tinha, a partir do 25 de Abril, reeditado algumas antologias (e alguns outros títulos, como A filosofia na alcova) publicadas antes da Revolução, e essa foi outra apenas das que ele tentou refazer (na documentação do processo contra o Estado, refere-se que já em 74 ou 75 ele tinha contactado Armando Alves e José Rodrigues, no Porto, para que tratassem da parte gráfica dessa hipotética reedição).
Este episódio reforça o que o Vitor Silva Tavares me disse do Mello: que, no fim, todos o abandonaram. Todos não: o VST soube manter a amizade com o editor caído em maus tempos, e, apesar de não ter muita folga financeira (longe disso), ser o seu credor, não só facilitando-lhe a vida quotidiana como acreditando-o nas gráficas. A Natália deveria ter seguido o exemplo do VST? É um ponto de discussão, sem dúvida, mas creio, no mínimo, que ela não tomou a medida mais elegante face a alguém que lhe lançara corajosamente a Antologia em 1965 e viera em seu socorro em 1981 ao publicar-lhe uma peça cuja encenação o governo liderado pelo partido de que ela era deputada tinha impedido. É a minha opinião.
Obrigado pela correcção.
(Só uma nota final para indicar que, não sendo assinante do Público, não posso ler o texto publicado online. Vi que cortaram metade do lide que propus, mas espero que o resto esteja em condições).”
Ver aqui.
8. Ibid., p. 588.

*Versão revista de um texto publicado no Público.



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