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Natália e o espectro*

Dada amiúde a lendárias contradições, excentricidades e bizarrias, que soube envolver na capa de uma vida corajosa e de uma obra variada e contestatária, Natália Correia não evitou uma estranha decisão a três anos da sua morte: impedir a reedição da célebre Antologia de 1965 com argumentos muito próximos dos dos juízes do Plenário que a tinham condenado em 1970.

Um espectro parece assombrar, este ano, a celebração do centenário e, mais propriamente, a evocação dos 30 anos do falecimento de Natália Correia. Ao contrário do que se poderá supor pelo arranque do texto, e da sombra marxista-engeliana do Manifesto que o cobre, não se trata do comunismo: esse, ou melhor, o que dele tinha, para Natália, contagiado a vida política e cultural portuguesa durante a Revolução de 1974-75, tinha já ela exorcizado no diário Não percas a rosa, escrito durante esses dias de brasa (mas, é certo, confortavelmente publicado apenas após o frémito revolucionário, em 1978). Nele escrevera a poetisa, a 9 de Outubro de 1975, que “pululam Marx e a pornografia” nos passeios da “Lisboa casbática” do PREC1. É o balanço para se avançar para o espectro que, na minha opinião, lhe embaraça, imperceptivelmente, este ano de redondas efemérides.

É, esse espectro, realmente mais modesto, e tão modesto que parece ter passado despercebido aos recentes exegetas da obra de Natália, mas não tanto assim que impeça a um leitor atento um choque. Podemos quantificá-lo em menos de quatro dezenas de palavras, quase metade de um parágrafo numa carta da poetisa datada de 10 de Julho de 1990 e endereçada à Sociedade Portuguesa de Autores (SPA). Eis essas palavras: “… a sua reedição, despojada do sentido combativo que teve, prestar-se-á a uma leitura em que os versos licensiosos nela antologiados atrairão os consumidores da pornografia, causando um grosseiro sensacionalismo amplamente lucrativo para o editor mas que expressamente repudio2. Referia-se Natália ao desejo de Fernando Ribeiro de Mello, o primeiro editor da Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica em 1965, de reeditar o título para marcar os 25 anos das suas Edições Afrodite (desejo, na verdade, manifestado desde pouco depois do 25 de Abril de 1974, e não apenas fixado na Antologia: nesse período, Mello procurou reeditar alguns títulos da Afrodite anteriores à Revolução).

O espectro, para quem leu essas palavras com atenção, não será tanto a estranha dureza da poetisa para com o outrora jovem e corajoso editor, seu protegido, que lhe publicara brilhantemente esse livro, e que com ela se sentara nos bancos do Tribunal Plenário da Boa-Hora em Lisboa, no julgamento pelo qual acabaram condenados em 1970, o mesmo editor que, em 1981, e já em derrapante situação financeira, viera em seu socorro, publicando-lhe em luxuosa edição a peça Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente, quando o governo AD, ou, mais precisamente, o secretário de Estado da Cultura Vasco Pulido Valente, lhe impedira a prometida encenação da peça no D. Maria II, pelo 4.º centenário da morte de Camões em 1980 (sendo ela por então, lembremo-lo, deputada pelo PSD na Assembleia da República). O espectro até poderia ser a espantosa ingratidão do conjunto de poetas, publicados na Antologia de 1965, que Natália arregimentou neste seu pedido de mediação jurídica à SPA e que pareciam ter-se esquecido que, 20 anos antes, o editor se sentara no tribunal em nome deles também, em defesa da liberdade de os publicar. Mas, para mim, o espectro está ali nas palavras em que Natália afirma que os “versos licensiosos” dessa Antologia iriam atrair “os consumidores da pornografia”: se, em 1990, a pornografia e Marx já não “pululavam” nas ruas (aquela um discreto produto de consumo em sex-shops, clubes de vídeo, revistas e cinemas “especializados”; Marx em processo de momentânea mas sonora queda em desgraça, desde a abertura do Muro de Berlim em 1989 até à iminente dissolução da URSS, que se daria em 1991), era ainda mais bizarro que, por trás desta tão intensa defesa da Antologia face a uma suposta horda de pornófilos, estivesse uma poetisa que o Estado Novo acusara, precisamente, de divulgar pornografia através desse livro. Mais: uma poetisa que, em 1987, quando deputada independente pelo PRD, recebera na AR, com beijos, abraços e um sorriso incandescente, à frente das câmaras, a húngara Illona Staller, conhecida como Cicciolina3, a mais famosa actriz pornográfica europeia dessa década, e a favorita de muitos desses “consumidores da pornografia” que Natália temia fossem começar a folhear-lhe a Antologia.

Quando li estas linhas, confesso que abri a boca de espanto: era com argumentos muito próximos dos censores e dos juízes do Plenário que Natália procurava defender a sua obra. A autora da “Defesa do poeta” concordava, afinal, com o censor Raymond Palhares, que fixara o adjectivo “pornográfico” à sua apreciação da Antologia4, e com o tom geral do libelo acusatório (como lhe escrevera Luiz Pacheco, outro dos réus: “querem a todo o custo evitar um processo político, e manter-nos no banco dos pornográficos”5). Mas, se passara por este calvário no processo da edição original, para quê ameaçar abrir um segundo processo por causa de uma reedição, para mais feita pelo editor original? Que este litígio entre Mello e Natália acontecera, sabia-o eu por Vitor Silva Tavares (VST), que em 2012 me acompanhara e ajudara no arranque do projecto do livro Editor Contra, e me dissera que essa tinha sido a única vez que se tinha proposto testemunhar contra o seu amigo, pois considerava Natália a legítima autora do livro (que Mello era defensor da teoria de que o editor é, no mínimo, o co-autor das edições de antologias, e que, em certos casos, essa teoria me parece ter legítima defesa, é outra conversa). Mesmo a viúva de Mello me contou que as coisas não acabaram bem entre ele e Natália.

Que este segundo processo não conste dos melhores textos que li sobre a publicação da Antologia (os de Francisco Topa e Vladimiro Nunes, este o responsável pela última reedição6) é normal: tratam, afinal, apenas do primeiro processo. (Que eu próprio o não tenha incluído no Editor Contra – apanhado de surpresa e choque pela morte do VST em Setembro de 2015 e, por ela, impelido à urgência de o publicar, antes de voltar a sondar o Arquivo Natália Correia, onde encontraria, meses depois, estes documentos – é algo pelo qual não há dia em que não me penitencie). Mais estranha é a sua ausência do documentário de Joaquim Vieira e Filipa Martins Insubmissa para a RTP, de 2021 (em que, numa primeira versão, era a foto do VST usada como se do seu amigo Mello se tratasse…), ainda que conste da biografia de Filipa Martins saída já este ano, que reproduz a carta7. Aqui, ele é mencionado em ligação ao outro litígio de Natália com Mello por esses anos, o relacionado com a reedição de Erros Meus (pretendida por ela nas Edições O Jornal – que veio a publicá-la em 1991 – e contestada por ele). Para além de se estranhar essa absoluta confiança de Natália na “sociedade livre” que supostamente se vivia em 1990, e o nenhum crédito meramente poético atribuído por ela à Antologia (para além do crédito político – já ultrapassado, segundo ela – e do de poder constituir uma espécie de isco licensioso), fica claro (até pelo que a biógrafa escreve no final do segundo parágrafo da pág. 294 de O dever de deslumbrar) que não era a “pornografia” ou sequer o seu bom nome e o da Antologia que preocupava a poetisa, mas, tão simplesmente, algo mais comezinho, venal até: Natália sabia que Mello estava falido, deixara de prestar contas, tinha processo aberto contra o Estado e perdera o prestígio que, salvo alguns tropeções, a Afrodite granjeara até 1980. A morte dele, em Fevereiro de 1992, terá posto um fim aos dois casos: “morreu o bicho, acabou-se a peçonha”8, terá dito ela do outrora jovem portuense que lhe chamara muitas vezes “madrinha”, 30 anos antes. (A Antologia acabaria por ser reeditada pela primeira vez em 1999, numa edição conjunta da Antígona e da Frenesi).

Fiz questão de que este assunto fosse abordado no filme baseado no Editor Contra, quando, há mais ou menos 3 anos, nele comecei a colaborar com o Luís Alvarães (depois de o ter apoiado na inclusão no guião da série 3 Mulheres da personagem Mello, em 2018, série que, de resto, achei notável no que à questão da história da edição dizia respeito). No final desse filme, pode-se ver Mello (interpretado por Flávio Gil), depois de lhe ser lida por inteiro a carta de Natália à SPA, fazer uma pausa, respirar fundo e dizer: “o pior de tudo é perder uma amiga”. E é este o coração do espectro: a traição de uma amizade.

(Editor Contra foi ante-estreado na Cinemateca Portuguesa em Dezembro de 2022 e exibido novamente no Centro Cultural das Caldas da Rainha em Março deste ano. Está dedicado a Aníbal Fernandes e à memória de Vitor Silva Tavares. Aguarda estreia na RTP2.)

Frames do genérico de Editor Contra de Luís Alvarães (2022, com animação de Lucy Pepper)

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Notas:
1. CORREIA, Natália. Não percas a rosa: diário e algo mais (25 de Abril de 1974 – 20 de Dezembro de 1975). Lisboa: Editorial Notícias, 2003 (2.ª ed.), p. 310.
2. PT/BPARPD/PSS/NC/3-1/09, folha NC9075-5_0005 – Arquivo Natália Correia, Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada (https://arquivos.azores.gov.pt/details?id=1226915).
3. https://arquivos.rtp.pt/conteudos/cicciolina-na-assembleia-da-republica/
4. Joaquim Raymond Palhares, chefe do Serviço de Leitura de Livros da Direcção dos Serviços de Censura, assinou a ficha de leitura da Antologia a 27 de Dezembro de 1965.
5. TOPA, Francisco. “A sádica nostalgia das fogueiras do Santo Ofício: o processo judicial contra a Antologia de poesia portuguesa erótica e satírica“, in Historiæ, Rio Grande, 6 (1), 2015, p. 135 (https://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/81482).
6. De Topa o texto “A sádica nostalgia das fogueiras do Santo Ofício: o processo judicial contra a Antologia de poesia portuguesa erótica e satírica” (ver nota 4) e de Nunes o texto “Versos escarlates, risos amarelos e lápis azuis: crónica de um livro proibido”, introdução à reedição da Antologia na sua Ponto de Fuga, em 2019.
7. MARTINS, Filipa. O dever de deslumbrar. Lisboa: Contraponto, 2023, p. 294. Por erro, indiquei na versão publicada no Público que a carta não era reproduzida na biografia, tendo sido amavelmente alertado pela autora, Filipa Martins, a quem peço desculpa. Este texto foi, pois, ligeiramente alterado de modo a corrigir esse erro.
Em resposta à autora, a 24 de Julho, escrevi o seguinte:
“Cara Filipa, touché: errei nesse detalhe de indicar que a carta não foi reproduzida no seu livro. Corrigirei essa indicação na republicação no blogue.
De resto, mantenho a argumentação (reforçada até pelo que a Filipa escreve no final desse parágrafo na pág. 294), e creio mesmo que as palavras de Natália nessa carta servem perfeitamente para a defesa de Mello: o verdadeiro motivo dela para travar a reedição não foi a questão “política” (O Encoberto tinha sido publicado para a situação de 1969, e ela não teve problema em reeditá-lo em 1977) e muito menos o receio de uma horda de pornófilos a folhearem-lhe o livro, mas apenas a situação financeira do editor da Afrodite. (Que um editor queira lucrar com o seu investimento numa edição parece-me ser algo claro, óbvio, sobretudo para alguém que, como Natália, fora editora ou trabalhara em editoras, e acusá-lo disso é absurdo).
Acontece que essa situação financeira era já periclitante em 1977 (com carta aberta ao PM Mário Soares no Jornal Novo a informar toda a gente disso), e ainda mais em 1981 (o processo com que Mello investe justamente contra o Estado, pela má gestão da distribuidora “intervencionada” Bloco-Expresso entre 1975 e 1979, arranca dias depois da apresentação do Erros Meus no TNDMII). Duvido que Natália não o soubesse quando aceitou ser publicada nessas duas vezes pelo mesmo editor.
Além disso, não houve da parte de Mello qualquer obsessão com a reedição da Antologia, como parece concluir-se da leitura da carta da Natália. Mello tinha, a partir do 25 de Abril, reeditado algumas antologias (e alguns outros títulos, como A filosofia na alcova) publicadas antes da Revolução, e essa foi outra apenas das que ele tentou refazer (na documentação do processo contra o Estado, refere-se que já em 74 ou 75 ele tinha contactado Armando Alves e José Rodrigues, no Porto, para que tratassem da parte gráfica dessa hipotética reedição).
Este episódio reforça o que o Vitor Silva Tavares me disse do Mello: que, no fim, todos o abandonaram. Todos não: o VST soube manter a amizade com o editor caído em maus tempos, e, apesar de não ter muita folga financeira (longe disso), ser o seu credor, não só facilitando-lhe a vida quotidiana como acreditando-o nas gráficas. A Natália deveria ter seguido o exemplo do VST? É um ponto de discussão, sem dúvida, mas creio, no mínimo, que ela não tomou a medida mais elegante face a alguém que lhe lançara corajosamente a Antologia em 1965 e viera em seu socorro em 1981 ao publicar-lhe uma peça cuja encenação o governo liderado pelo partido de que ela era deputada tinha impedido. É a minha opinião.
Obrigado pela correcção.
(Só uma nota final para indicar que, não sendo assinante do Público, não posso ler o texto publicado online. Vi que cortaram metade do lide que propus, mas espero que o resto esteja em condições).”
Ver aqui.
8. Ibid., p. 588.

*Versão revista de um texto publicado no Público.



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Auto-bibliografia mantiana

Depois da publicação do catálogo da exposição “O retrato em João Abel Manta : perfis para as selectas”, que abriu a 12 de Agosto no Museu Abel Manta de Gouveia, a bibliografia mantiana a que estive ligado ascendeu a cinco edições. A anterior tinha sido a 3.ª edição “canónica” de Caricaturas Portuguesas dos Anos de Salazar pela Tinta da China em Abril, título (publicado pela primeira vez em 1978) há muito esgotado nas livrarias e para o qual escrevi um posfácio explicador e contextualizador da produção desses desenhos. A próxima edição será, confesso, aquela a que dou mais importância, até por ser a 2.ª de um título já distante (saído pouco depois do 25 de Novembro de 1975) e que reúne o mais importante legado gráfico de João Abel Manta: o seu trabalho de cartoonista para a imprensa durante o Estado Novo marcelista e a Revolução em Curso. A nova edição dos Cartoons (que reunirá desenhos não publicados em 1975 e acrescentará uma mão cheia de importantes desenhos pós-revolucionários de JAM até 1992) não tem ainda data prevista de publicação.

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Com a foto do censor sobre a secretária*

Autora esquecida de dois livros proibidos pela Censura do Estado Novo, Maria Archer foi, na sua última década em Portugal antes do exílio brasileiro, uma inesperada, corajosa e pública atacante de dois pilares de sustentação do regime: a máquina censória e a perseguição política aos seus adversários.

Ainda que no extremo esquerdo do alinhamento, na foto ela parece ser o centro das atenções: é em Maria Archer que, apesar do olhar de suspeição, a vista de Salazar parece repousar, nessa sessão de prémios do Secretariado da Propaganda Nacional (SPN) a 4 de Fevereiro de 1939, em que a autora recebeu o Prémio Nacional de Literatura Infantil por Viagem à roda da África, eco de muitos anos passados nas províncias ultramarinas. Mas a foto parece também revelar que aquele ritual de propaganda do regime (Carmona e Ferro por ali também) a aborrece: há um hiato entre a autora de 40 anos e a massa de pessoas à sua esquerda, e o contraste é acentuado por ser a única inteiramente de branco vestida. Quase vinte anos depois, no Brasil, ela conservava ainda a foto em que aparecia “entre todos estes personagens da tragicomédia que é a ditadura salazarista”. 1

Portugal Democrático, Ano I, nº 10, Abril de 1957

Na verdade, a premiada que ali se apresentava estava na mira de dois jornais ferrenhamente parciais ao regime, A Voz e o Novidades, pela publicação, no final de 1938, de um livro que ambos consideravam “pornográfico” e que ambos sugeriam dever ser apreendido pela “polícia”, uma recolha de contos intitulada Ida e volta duma caixa de cigarros. Os serviços de Censura mostram interesse, pedem um exemplar e a edição acaba por ser apreendida de facto. É na mesma altura em que aceita o prémio do SPN que Archer pede ao Ministro do Interior que interceda contra a decisão censória, aludindo a invejas por parte do Novidades, pois uma empregada deste estaria na lista para o prémio, e afirmando que ambos os jornais teriam facilidade em influenciar as decisões da Censura pois “pelo menos um oficial desse serviço já fez parte da redacção da Voz ou foi revisor das Novidades”. 2 Era, assim, ainda que sigilosamente, levantada a cortina de uma parcela do palco do regime, revelando cumplicidades e ligações não assumidas entre agentes e agências. O olhar frio de Salazar na foto trairia já o conhecimento dessas “torpes e ignóbeis insinuações” 3, como lhes chamaria, em 1947, um funcionário da Censura? É directamente ao Presidente do Conselho que, em 1944, Archer pede o levantamento da proibição do livro 4, mas o silêncio de Salazar não só confirma que a mesma se manterá, como é sinal de mau agoiro. Em 1947, novo livro proibido: Casa sem pão, um romance que o censor Rodrigues Carvalho, num extenso relatório de 10 páginas (a que não falta marginália impiedosa), designa de “texto imoral” e “baixa literatura”. 5

Divorciada, com os laços familiares em fiapos graças a Aristocratas, romance de 1944, que a sua família considerara incómodo e intrusivo, e já sem o seu protector Tomás Ribeiro Colaço, exilado no Brasil desde 1940, o círculo de convivência de Maria Archer, muito próximo de monárquicos ou integralistas lusitanos, não a tornava mais simpática à situação, antes pelo contrário. E é pelo contrário que enfileira: filiada no Movimento de Unidade Democrática (MUD) desde 1945, a senhora elegante das soirées de sociedade, a conviva de Branca de Gonta Colaço e Carlota de Serpa Pinto era agora uma opositora que esperava uma mudança do regime com o fim da II Guerra Mundial.

Mas o regime não mudou, e o seu reforço após as eleições presidenciais de 1949 encaminhou Archer para o cruzamento com o percurso de um resistente tão inesperado como ela. Quando o deputado por Angola à Assembleia Nacional, capitão Henrique Galvão, é preso em 1952 e julgado como líder de um grupo de “conspiradores” no Tribunal Militar Territorial de Lisboa, Archer pede ao República as credenciais para cobrir o julgamento, com vista à publicação de um texto sobre o mesmo. A autora do Roteiro do mundo português percebeu que o julgamento desse outro autor de “literatura colonial” – e “antigo colonialista de categoria” 6 – excedia essa coincidência e se apresentava como algo inaudito nos quase 30 anos do regime: uma frincha pela qual revelar, fria e objectivamente, o funcionamento político e repressivo do mesmo. Pouco de comum poderia ligar Galvão, revolucionário de 1926, militar quixotesco e narcísico, a Archer, mulher emancipada, mas o texto que ela prepara a partir do processo que condena aquele vai-se acumulando, minucioso, claro, escrito em absoluta liberdade. Até que a 20 de Junho de 1953 a PIDE a visita em casa e lhe apreende apontamentos e dactiloscritos. Ainda que se tivesse prevenido, enviando pouco antes para Ribeiro Colaço no Brasil, através de gente de confiança, cópia da maior parte do que produzira, aquilo era a gota de água. Archer arma então um contra-ataque tão inédito quanto o livro que preparava. Em entrevista a 20 de Outubro, no República, conta essa história, sob o troante título “Um caso inédito de perseguição do pensamento” 7, tornando assim pública a apreensão de um livro antes de ser publicado, e a 4 de Novembro, sob o título vago de “A censura e o livro”, escreve um artigo focado apenas na censura à edição de livros em Portugal, durante o Estado Novo.8

República, 20.10.1953
República, 04.11.1953

Quase vinte anos antes de José Cardoso Pires ter fixado a “técnica” do funcionamento da censura de Salazar, Archer fê-lo de um modo mais reduzido e sucinto mas não menos poderoso, assumindo-se como autora já censurada, que partilhava com os seus colegas a pressão de trabalhar sob essa espada de Dâmocles, chegando a revelar, com triste ironia, ter escrito o romance que se sucedeu ao seu último livro proibido com uma foto de Armando Larcher, director dos serviços de censura, sobre a secretária, e o que essa pressão causou na sua obra.

Testemunho também de que escrevi o romance O mal não está em nós tendo diante dos olhos, sobre a secretária, o retrato do senhor coronel Armando Larcher, director dos Serviços de Censura. Foi esse o primeiro romance que criei após me ter sido apreendido o anterior, Casa sem pão, do melhor que a minha humilde pena produziu, enquanto que O mal não está em nós se limita a ser uma história cerzida com lógica e sequência, isto é, princípio, meio e fim. Um livrecosito.9

Mas Cardoso Pires fá-lo-ia longe (em Londres), em segurança e em inglês (no primeiro número da Index on Censorship 10 ), já depois da morte de Salazar; Archer expôs-se em plena boca do lobo, e com este ainda pleno de força (a coberto de umas “férias da censura” em épocas de “farsas eleitorais”, como ela admite 11). Era um gesto incrível, de contida raiva, que o lápis vermelho do agente da PIDE que sublinhou o seu nome no recorte parecia ecoar.

Exilando-se no Brasil em 1955, foi lá que, em 1959, ela rematou este frontal ataque ao regime de Salazar. Pela mesma Editora Liberdade e Cultura de São Paulo (que pouco depois publicaria Quando os lobos julgam, a justiça uiva, sobre o processo a Aquilo Ribeiro por Quando os lobos uivam), Archer lançava o 1º volume de Os últimos dias do fascismo português, o relato do processo a Henrique Galvão, tendo na capa a reprodução da contrafé da PIDE (o previsto 2º volume nunca foi publicado12). Era agora a jornalista livre, a exilada cultural (com gente como Adolfo Casais Monteiro, Jorge de Sena, Castro Soromenho, Fernando Lemos ou Mário Henrique Leiria), a anti-salazarista que, em 1957, contestara a recepção em São Paulo ao presidente português Craveiro Lopes 13 e, no Portugal Democrático, onde colaborava desde o início, respondera – com a foto de 1939 na 1ª página – a mais uma provocação da Voz de Dutra Faria, alertando para possíveis falsificações do seu nome em documentos suspeitos 14 (o que poderá explicar uma estranha carta, no que resta do seu arquivo da PIDE, em que, recém-chegada ao Brasil, se propõe vender o livro ao governo português 15).

Semana Portuguesa, 30.07-05.08.1966

Mas a distância, a idade galopante, uma vida difícil nas e pelas letras e a ditadura no Brasil a partir de 1964 vão-na isolando e tornando num nome cada vez mais esquecido. Quando, em 1973,  as “três Marias” se sentam no tribunal em Lisboa pela publicação das Novas cartas portuguesas, Maria Archer, passados os 70, só procura um pouco de ajuda e pensa em regressar a Portugal. Consegui-lo-á apenas no final da década, em débil condição financeira e de saúde, para morrer pouco depois. O seu optimismo quanto aos “últimos dias” do regime de Salazar falhara em quase duas décadas, mas a energia e a coragem daquele duplo ataque na imprensa em 1953 e o rigor e a força testemunhal do seu livro sobre como se fazia um processo político em Portugal, peças únicas na história da resistência intelectual ao Estado Novo, ainda surpreendem e fazem vibrar o papel velho em que foram impressas.

*Versão revista de um texto publicado no Público.

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Notas:
1. ARCHER, Maria. “Eu e a Voz“, in Portugal Democrático, Ano I, nº 10, Abril de 1957, p. 6.
2. “Apreensão do livro “Casa sem pão”: Secretariado Nacional de Informação, Censura cx. 423, PT-TT-SNI-DSC-19-80_m0004.
3. Idem, ibidem.
4. “Processo de Maria Archer pedindo para que não seja proibida a venda de uma obra de sua autoria”: Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros, Gabinete do Presidente, cx. 109, proc. 840/63, n.º 19.
5. “Apreensão do livro “Casa sem pão”: Secretariado Nacional de Informação, Censura cx. 423, PT-TT-SNI-DSC-19-80_m0017. Sobre a censura a estes dois livros da autora, deve consultar-se também PEDROSA, Ana Bárbara Martins Pedrosa. Escritoras portuguesas e Estado Novo: as obras que a ditadura tentou apagar da vida pública. Tese de doutoramento. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2017, p. 80-120.
6. ARCHER, Maria. Os últimos dias do fascismo português. São Paulo: Editora Liberdade e Cultura, 1959, p. 39.
7. ANTT Arquivo da PIDE/DGS (Serviços Centrais): PT/TT AC PIDE/DGS Del P P I 15443 UI 3694, fl. 8.
8. ANTT Arquivo da PIDE/DGS (Serviços Centrais): PT/TT AC PIDE/DGS SC SR 131/48 UI 2619, fl. 313. Já no Brasil, Archer publicará no Portugal Democrático, em 6 de Outubro de 1956, “A censura à imprensa e ao livro”, um texto do mesmo género, ligeiramente adaptado à situação brasileira e à “repulsa dos brasileiros sobre os actos dos ditadores sul-americanos em relação à censura” (cf. BATISTA, Elizabeth. Entre a literatura e a imprensa: percursos de Maria Archer no Brasil. Tese apresentada à Univ. de São Paulo, 2007, p. 119)
9. Idem, ibidem. O artigo é citado em MEDEIROS, Nuno. Edição e Editores: o Mundo do Livro em Portugal 1940-1970. Lisboa: ICS, 2010, p. 81 (ainda que directamente da edição do jornal e não do arquivo da PIDE na Torre do Tombo).
10. “Changing a nation’s way of thinking”, Index on Censorship, nº 1, Março de 1972, pp. 93-106. O artigo seria depois traduzido e publicado com o título “Le régime de la censure” na revista francesa Esprit (n.º 9, Setembro 1972, pp. 237-253), e, em 1974, na revista holandesa De Gids, sob o título “Het regime van de censuur” (n. 5, pp. 307-318). A sua primeira edição em Portugal foi no volume E agora, José?, com o título “Técnica do golpe de censura” (Lisboa: Moraes, 1977, pp. 198-243).
11. ARCHER, Maria. Os últimos dias do fascismo português, p. 7.
12. Apesar de a 1ª edição do volume I, de três mil exemplares, se ter esgotado um ano depois do lançamento, a autora não terá dado consentimento a uma segunda edição (cf. BATISTA, Elizabeth. Op. cit., pp. 50, 81).
13. MANSUR DA SILVA, Douglas. A oposição ao Estado Novo no exílio brasileiro 1956-1974. Lisboa: ICS, 2006, p. 62.
14. ARCHER, Maria. “Eu e a Voz“, in Portugal Democrático, Ano I, nº 10, Abril de 1957, p. 1.
15. ANTT Arquivo da PIDE/DGS (Serviços Centrais): PT/TT AC PIDE/DGS SC SR 131/48 UI 2619, fls. 244-246. Nessa carta, emitida a 2 de Setembro de 1955 do Hotel Claridge de São Paulo e dirigida a José Manuel Costa, director do SNI, a signatária revela desilusão com Henrique Galvão e o desejo de não publicar o livro no Brasil se o governo português lho comprar.

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Ecos distantes da urgência febril de editar (lembrando ainda os 50 anos da morte de Alves Redol)

Livros-que-tomam-partido

Faltava um estudo em profundidade de um dos períodos mais férteis editorialmente e mais conturbados cultural, social e politicamente da história portuguesa


Arrisquemos o axioma: em Portugal adora-se (ou diz-se adorar) a literatura; os livros nem por isso. Matizemo-lo: se o escritor, ou melhor, o “autor” e o seu comércio com a musa são tema de incontáveis teses dentro e fora da academia e mesas de discussão em todos os inúmeros festivais pelo país, o editor é, em geral, a vil e apagada figura cujos indiscerníveis esforços lá conseguem produzir os livros daquele e levá-los aos escaparates, mas que para pouca coisa mais parece servir (a não ser como degrau numa escalada imparável até ao topo, caso o “autor” tenha, para além da musa, sido tocado também pela fortuna, mas essa é outra conversa).

Se, de um lado, temos todo um edifício cultural com décadas de exegese e historiografia da literatura nacional e de hábito de apoio e apreciação mais ou menos oficial dos escritores (bolsas, prémios, homenagens, a frequência do circuito das feiras e festivais, etc) e de recolha dos seus espólios, do outro estamos carentes até de uma história da edição portuguesa de referência e habituados à perda ou dispersão caótica dos espólios de editores ou empresas editoriais: apesar de brilhantes trabalhos parcelares sobre determinados períodos ou editoras (como os de Nuno Medeiros, João Luís Lisboa, Daniel Melo e outros contribuintes, muitos vindos da Sociologia da Cultura), a falta de uma estrutura como o francês IMEC (Institut Mémoires de l’Édition Contemporaine, que, com o apoio estatal, desde 1988 recolhe e arquiva espólios de gente ligada à edição contemporânea) e a acima aludida atitude mental de subestimar o trabalho editorial no cômputo das valências culturais têm minado o caminho oposto a este cenário. Exemplos não faltam, mesmo à espuma das coisas, traindo o que lhes subjaz: quando Vitor Silva Tavares morreu em 2015, a RTP titulou no seu site que fora um “escritor” a morrer; a INCM, a editora e gráfica estatal, não publica nem vende nas suas lojas qualquer livro ou colecção dedicada ao estudo e história da edição nacional; nas livrarias, qualquer livro que se atreva a cair dentro deste género acabará enfiado nos “estudos literários”. E etc. Culpa partilhada, sem dúvida, entre editores de expressivas carreiras que não nos deixaram testemunho autobiográfico das mesmas (o memorialismo ou a reflexão escrita sobre o seu próprio trabalho são características quase inteiramente ausentes da tradição editorial portuguesa no último século) e as empresas editoriais “históricas”, que não mostraram até hoje qualquer interesse em investir na investigação e publicação de monografias sobre as suas próprias histórias, “habituando” assim o mercado a este tipo de conteúdo: costumo apontar o exemplo da Dom Quixote, que nunca publicou um livro bem documentado e ilustrado sobre o trabalho notável da sua fundadora Snu Abecassis na primeira década da editora, mas lembro-me também da oportunidade perdida que foi a edição de Babel sobre Babel em 2010, celebrando a criação do grupo homónimo a partir da fusão de uma mão cheia de editoras que marcaram a história cultural do século XX, mas em que a parte dedicada a essa história era ínfima, acabando o livro por ser mais um vácuo exercício de narcisismo.

Revolta-de-Maio-1968

De 1968…


Dada esta míngua, é de suma importância o aparecimento no mercado nacional, pela Parsifal, do livro de Flamarion Maués Livros que tomam partido: edição e revolução em Portugal, 1968-1980 (adaptação de uma tese de doutoramento na Universidade de São Paulo), uma importância a vários níveis. Antes de mais por nos lembrar que faltava um estudo em profundidade de um dos períodos mais férteis editorialmente e mais conturbados cultural, social e politicamente da história portuguesa, o que vai da assunção de Marcello Caetano ao leme do Estado Novo em 1968 ao fim da “revolução em curso” com a chegada ao poder de uma aliança partidária de direita com maioria, em 1980, doze anos que cobrem o pleno funcionamento da censura salazarista/marcelista e das apreensões e proibições de livros, o boom da edição política no PREC e, por fim, a brutal colisão com uma realidade pós-revolucionária de aguda crise financeira, de desencanto com o engajamento político e a correspondente recessão da procura de livros “que tomavam partido”, em benefício do regresso a uma procura de entretenimento que a televisão explorará em crescendo, uma conjuntura que ditará o fim de dezenas de projectos editoriais. Para além da minuciosa e objectiva organização de um tal volume de dados, o valor deste livro está em não fugir da linha central do projecto, a focagem no engajamento político destas editoras (das já existentes em 1968 a dezenas de outras que foram sendo criadas até 1980), quer sob o governo marcelista, quer já depois da Revolução, mediante graus de “politização” do seu catálogo e da sua posição face à “situação” anterior e posterior a 1974, abrangendo um espectro vastíssimo de editoras da extrema-esquerda à extrema-direita. Acrescendo de modo substantivo a esse valor está a exaustiva recolha de depoimentos entre sobreviventes destas batalhas, editores de projectos tão importantes como a Afrontamento, a Prelo, a Ulmeiro, a Centelha ou a tomarense Nova Realidade, que é, sem dúvida, a mais valiosa pepita deste tomo, não só “humanizando” a frieza e o rigor estatísticos a que um projecto destes deve obediência, mas dando testemunho de batalhas pela palavra impressa em momentos de aberta repressão ou de caótica atomização política, em que o engenho e a inteligência de alguns editores ficam bem revelados (note-se o modo astuto como a Afrontamento conseguiu publicar textos com a transcrição de julgamentos no Plenário, por exemplo). O trabalho a fundo do autor sobre a edição de resistência à ditadura brasileira torna a sua uma voz particularmente útil na necessária discussão sobre este esquecido período da edição nacional, a que este livro dá uma contribuição de peso.

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… a 1980


Há por aqui histórias fascinantes, que o peso estatístico não esconde e ajuda até a fazer ressaltar, como, por exemplo, a da Portucalense, pequena editora portuense próxima da situação que, por morte do fundador em 1971, cai nas mãos do herdeiro José Oliveira, que em apenas dois anos a transforma numa plataforma de edição de textos radicais de esquerda, todos proibidos, até desaparecer na clandestinidade. Exemplos como este, de urgência febril de intervenção política, relatados em primeira mão ou através de uma miríade de fontes, abundam neste livro, ecos de um tempo conturbado em que o livro era meio privilegiado para essa intervenção dada a sua maior facilidade em escapar ao “exame prévio” censório e o seu estatuto de objecto cultural por excelência para uma classe média-baixa em busca de instrumentos de “melhoramento” antes de 74 e, depois, de informação detalhada sobre o novo mundo (estatuto hoje, e de há muito, perdido).

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Spread de um dos números de Dezembro de 1969 da revista Notícia, com texto de Luiz Pacheco sobre a morte de Alves Redol


Na sessão de apresentação do livro, na Biblioteca das Galveias em Lisboa, António Mota Redol fez uma revelação que, curiosamente, me poderia obrigar a refazer a argumentação montada nos dois primeiros parágrafos: foi o dinheiro dos direitos de autor pelas vendas dos livros do seu pai, Alves Redol, que pagou os custos desta edição, através da Associação Promotora do Museu do Neo-Realismo. Ou seja: acabou, finalmente, por ser um autor morto há 50 anos a vir em socorro de um livro em que os autores têm parte muito secundária face aos editores. Pedir um maior aparato visual ou a inclusão de cor em “extra-textos”, se justificável, seria exigir um risco financeiro para além do já notável esforço em resgatar esta volumosa obra (quase 700 páginas) dos corredores da Academia, um risco que mais seria exigível a uma distraidíssima INCM. Melhor será pensar que uma tão violenta e refrescante lufada desses ventos dos anos 70 nos abre apetite pelo resgate de alguns livros esquecidos sobre essa década de perigos e encantos, à cabeça dos quais estaria, por exemplo, Títulos, acções e obrigações: a cultura em Portugal de Eduarda Dionísio. Que os editores hodiernos se mirem no exemplo destes de há 50 anos e arrisquem. E que frutifique o exemplo de Alves Redol e dos seus herdeiros em apoiar a divulgação e preservação da memória da edição nacional, perante a escandalosa inacção de instituições que deveriam fazê-lo.

(Versão mais curta publicada no jornal Público aqui)

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Apresentação da segunda edição de “Olhar de Editor” de Serafim Ferreira

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Dia 19 de Janeiro (Sábado), pelas 16:00 horas, será apresentada na Biblioteca Pública Municipal do Porto a segunda edição de OLHAR DE EDITOR de Serafim Ferreira (que pode ser comprado aqui), com a presença de José Viale Moutinho, no contexto da exposição “Editor de Vanguardas: Fernando Ribeiro de Mello e a Afrodite” que se encontra aberta na mesma Biblioteca até 31 de Janeiro.

Biblioteca Pública Municipal do Porto
Rua D. João IV, 17 (ao Jardim de S. Lázaro)
Tel. 225193480  |  bpmp@cm-porto.pt

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Sérgio Guimarães: foi curta a festa

Dez anos depois do 25 de Abril, num texto publicado no catálogo de um ciclo da Cinemateca ao tema dedicado, Jorge Molder referia-se ao paradoxo de a imagem mais popular e difundida nos dias da revolução, a imagem que acabou por identificar internacionalmente essa mesma revolução, ter sido uma imagem feita em estúdio, com os “tiques” habituais de estúdio, e não uma imagem feita na rua, “num momento em que tudo se passava na rua”. Em 1984, Sérgio Guimarães, o autor desse poster de que se fizeram inúmeras adaptações a outros formatos (tais como os dois postais que encimam este texto), estava longe das rodas onde se discutia e se fixava a sua aportação iconográfica à revolução que cumpria então a primeira década: editor falido, fotógrafo esquecido de quem fazia as listas de “referência”, tendo perdido até o estúdio que fora de ponta na fotografia publicitária na década anterior, sobrevivia fazendo trabalho como freelancer. Morreria em 1986, aos 53 anos, sem que muita gente conseguisse associar o seu nome ao poster do “menino com o cravo na G3”, e menos gente ainda que o ligasse a um projecto editorial de poucos meios para tão ilimitada (ou insensata) ambição mas de algum inegável arrojo.

Se há figura que pode personificar a volatilidade desses anos de processo revolucionário, a rapidez com que se consumiram carreiras entre a chegada das chaimites ao Carmo e a despedida dos últimos resquícios da utopia no fim da década (sendo a subida da AD ao poder em 1980 o claro sinal dessa despedida), é a de Sérgio Guimarães. Sobre o seu trabalho polifacetado não existe qualquer estudo, não foi publicada qualquer monografia, e, para uma vida riquíssima de aventuras e convívios e vivida no fio da navalha como a sua, perdeu-se sobretudo, e de vez, a possibilidade da escrita de uma biografia. Há apenas pontas soltas, deixadas por quem o conheceu, aqui e ali. Há muito caído de um cânone de referência (editorial, artística, etc) onde, se calhar, nunca esteve verdadeiramente, é um daqueles nomes que aparentam ser culturalmente “irrecuperáveis” e que, por isso mesmo, creio que deveriam ter sido já objecto de uma tentativa de recuperação (se bem que, neste caso, aos dotes de um investigador inspirado seria necessário juntar o talento de um milagroso ressuscitador de reputações).

Mais do que a fotografia publicitária, que ele praticava já antes de 1974 (de que aqui mostrei uma prova) e que alimentou esse poster icónico, o nome de Sérgio Guimarães, para alguém da minha geração (crianças muito novas por altura da Revolução), era o que aparecia ao fundo das capas de algumas bizarras edições de banda desenhada desencantadas em feiras do livro ou fundos de livrarias, edições de gente de topo nos anos 60 e 70 (Crepax, Pichard) que, por incrível que nos parecesse, tinha sido publicada por cá por um tipo de quem, nas décadas de 80 e 90, nada se sabia. Às suas edições políticas (sob a marca Mil Dias), também ubíquas por essas feiras de velharias, cheguei mais tarde (e sobre elas escrevi já aqui), mas as Edições Sérgio Guimarães, fruto da súbita liberdade de tudo publicar que a Revolução trouxe e que se extinguiram por 1977, e diga-se o que se disser acerca da húbris que o seu programa editorial revelava nas badanas (uma vontade expressa de publicar cá todo o catálogo da melhor BD adulta que Losfeld publicara em França), conseguiram ainda uma curiosa publicação “articulada”: a da História de O de Pauline Réage (publicando também o livro-entrevista desta com Régine Deforges, O Disse-me, ambos traduzidos por Orlando Neves) com a da adaptação a BD que Guido Crepax fez do romance, ambas em 1976, uma articulação que passou pela comunhão do design tipográfico da capa entre a edição literária e a da BD, e em que naquela a sobrecapa revelava o estilo inconfundível do fotógrafo do poster revolucionário.

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Dobrada a nova década, tudo isso se esfumara. O homem que, em 1982, escreve a missiva inédita (que transcrevo em baixo na sua quase totalidade, e com a ausência de maiúsculas do original que se encontra na Torre do Tombo) ao então Ministro da Cultura do governo AD, Lucas Pires, está, para além da sua carreira errática, a descrever a de muita gente do meio (publicidade, fotografia publicitária, edição, etc) apanhada pelo tsunami económico da década posterior à Revolução. Relato febril e condensado de uma vida profissional em iminente colapso, tem a cadência também da história de um náufrago, uma de muitas histórias “trágico-marítimas” no revolto oceano de falências e carreiras arruinadas desses anos. Para Sérgio Guimarães, a festa fora curta e acabara já bem antes desta carta.

sérgio guimarães
porto 1933
liceu d. manuel II
escola de belas artes
teatro experimental do porto
participação como actor em “morte de um caixeiro viajante”
subida a paris para
trabalhar em arquitetura
e maquettes de arquitetura
incidentalmente criador de toda a técnica hoje utilizada em maquettes
regresso a portugal

para trabalhar 5 anos com vasco morgado
como secretário da empresa
tradutor de peças

e outros trabalhos criativos

neste interim li tudo que havia para ler
da cultura francesa

desde o sartre, proust, ponson du terrail, zola, etc
e mais de 5000 peças de teatro
a seguir cultura em língua inglesa
passando pelo faulkner, green, maugham, joyce
e policiais e espionagem evidentemente
de novo subida a paris
para trabalhar em fotografia e artes gráficas

regresso a portugal em 1965
para ser fotógrafo

25 de abril criação do poster 25 de abril
conhecido em todo o mundo e portugal
entrevistado por diversos jornais e revistas estrangeiras
mas em portugal nunca veio (o poster) num jornal português

acaba o trabalho de publicidade
e tornei-me editor

com duas linhas de editoras
uma de sexo

que editou “os prazeres do sexo” (entre outros)
distribuídos pela quadrante
que faliu

e me deve 6000 contos que não paga
outra editora política
(que editou os grafitti)
e que a cdl matou à nascença
e que causou mais de 10.000 contos de prejuízo

retorno à publicidade
com estúdio na fontes pereira de melo
onde facturava em 1978: 400 contos/mês

alargamento da actividade em novo estúdio
e facturava-se 700 contos/mês

venda deste novo estúdio
para pagar a credores das editoras
ao mesmo tempo que descubro
que sou criativo
e aí
começa a faltar o trabalho
na medida em que a n/qualidade aumenta
(um estúdio como o nosso custava há 2 anos de aluguer diário,
em paris, sem fotógrafo, 200 contos, de acordo com revista zoom)

entretanto embora reconhecido como de longe
o único fotógrafo português com qualidade internacional
estou ignorado pois sou na realidade um outsider
que não pertence às panelinhas da informação lisboeta
visto que sou do porto

e embora colega de carteira no liceu d. manuel II
do falecido chico sá carneiro

nunca lhe pedi nada
pois as n/opções políticas eram diferentes
peço a este governo
semi formalmente

pois continuo a acreditar
que no se pode desprezar a cultura
sobretudo a visual
e dado que a banca não encara seriamente esta actividade
ja aceitei sinal pelo trespasse das instalações
que valendo mínimo 6000 contos
me ofereceram 1600!!!

o equipamento que vale mais de 20.000 contos
será entregue à banca
pois faz parte dum penhor mercantil
que tornou possível as editoras

e que embora eu já tenha pago à banca
mais de 10.000 contos dos prejuízos das editoras

não me emprestam mais um tostão

este estúdio tem uma capacidade de facturação mensal
de mais de 1.200 contos

e existe esse mercado
mas este estúdio foi criado em 1969
com a miserável quantia de 7.000$00 (verdade)
mas agora não pode subsistir sem fundo de maneio
e tem estado a funcionar com auxilio de amigos
que me emprestaram a esta data cerca de 3000 contos

temos fotografias em arquivo
que permitem varias exposições de fotografia diferentes
com uma qualidade nunca vista em portugal

desde natureza mortas, paisagens, nus, abstrações, trabalho, etc
(cerca de 4000 fotos do alentejo)

lamento não poder fazer este memo mais curto
mas trata-se de 15 anos de trabalho sem férias e fins de semana
para poder pagar os equipamentos e a banca

insisto em que as grandes empresas e sobretudo as estatizadas
nunca me compram nada

pois só estão interessadas em pagar pouco
desprezando a qualidade da imagem

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Novidade Montag

Conferir e comprar no site Montag (já em algumas livrarias independentes seleccionadas de Lisboa, na banca de Frenesi/Paulo da Costa Domingos na feira do Anchieta ao Chiado e em breve na FNAC).

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