1968 (IV)


Esta é a fascinante capa de The man inside de W. Watts Biggers, tão enigmática que me levou a comprar um exemplar e a fazer dele o ponto de partida para um post. O uso elegante da Futura (cuja fama, já longeva, levara um novo empurrão graças a 2001 de Kubrick, que estreara em Abril desse ano), a colocação e composição do bloco de texto e a imagem hipnótica que usa o eixo central de forma perfeita são obra anónima para esta edição de Novembro de 1968.

Na sinopse da 1.ª página deste romance esquecido, podemos ler que se trata de “a Kafkaesque porsuit of purpose, the ceaseless quest for the meaning of life…, or a journey toward wisdom – in the manner of Hermann Hesse – that culminates oddly: satori achieved inside a robot.” Eis como um género saía do seu ghetto para contaminar o mainstream (apesar de a Ballantine ter uma linha de paperbacks de Ficção Científica, este título não era apresentado nessa colecção): um jovem romancista, mesmo valendo-se de referências highbrow (Kafka, Hesse), podia recorrer à FC sem correr o risco de um rótulo indesejado. Em 1968, os temas da ficção especulativa cruzavam-se e confundiam-se com o zeitgeist: uma década de obsessão lunar e espacial nos EUA (e no outro lado do muro), uma paranóia latente sobre o cataclismo nuclear, a incipiente ansiedade acerca da sobrepopulação e, incontornavelmente, o filme de Stanley Kubrick 2001: Odisseia no Espaço (que se seguia à sua adaptação de Nabokov: a FC era agora parte do cânone culto e já não uma diversão de drive-in) somavam-se à já enorme qualidade literária do género nos dois lados do Atlântico para fazer da FC um dos mais excitantes cantos criativos do panorama literário e cultural desses últimos anos de 60.

Que isso se reflectisse nas capas de algumas edições é, mais do que uma agradável constatação para o explorador gráfico, um efeito perfeitamente compreensível. As grandes editoras e imprints de Londres e Nova Iorque estavam permeáveis à onda de experimentação estética desse período, e o resultado é, por um lado, um redesenho profundo ou uma aposta em design e ilustrações menos tradicionais nas colecções de FC em paperback (Penguin e Panther em Londres, Ballantine em Nova Iorque), e por outro, e mais importante, uma elevação da aposta com a criação de séries exclusivas em hardback, de que o caso mais extraordinário é o Clube de FC da Doubleday, responsável pelas mais soberbas capas que o género conhece nesses anos e até meados dos anos 70.

Na Penguin, após a saída de Alan Aldridge, e sob a direcção de David Pelham, Franco Grignani redesenha por completo a colecção de FC e aparecem então as capas abstractas, que teriam uma enorme influência nas edições inglesas contemporâneas. A capa da edição da novela pós-apocalíptica Davy de Edgar Pangborn (1969, Prova A) é disso um exemplo notável pela sua simplicidade cromática e de composição.

(Prova A)

A Panther opta pela abstracção a partir de detalhes fotográficos, conseguindo efeitos inesperados e, em alguns casos, muito atraentes (Prova B). A influência de 2001 é visível na capa de The thirst quenchers de Rick Raphael (1968, Prova C) pela inversão das cores e sua saturação, a fazer lembrar os célebres minutos de efeitos visuais “far out” da viagem a Jupiter and beyond, influência a que os livros da Penguin também não escapam.

(Provas B e C)

Às serifadas da Penguin corresponde, na Panther, a ubíqua Helvetica em estrita caixa baixa, mas a grelha racionalizadora e o objectivo são comuns: a fuga ao excesso visual e à iconografia estafada do período precedente. Esse esforço é também notório nas edições do Science Fiction Book Club de Londres, e de uma forma mais radical e surpreendente: as capas, em edições hardback, são um misto das soluções mais abstractas da Penguin e mais fotográficas da Panther e o seu belíssimo preto-e-branco faz lembrar as capas de Alvin Lustig para a New Directions dos anos 40 e 50 (Prova D – edições de 1968 e 1969, imagens de capas de designers desconhecidos de livros que não possuo).

(Prova D)

Na América, o caso da Doubleday é ainda mais interessante. Apostando num clube de FC próprio, a editora lança edições hardback de grande qualidade, criando um enorme contraste com a tradição de livro de bolso pulp a que o género estava remetido (sob a chancela da Dell ou da Berkley, por exemplo). A grelha inglesa é aqui preterida em favor de uma contínua experimentação (tipo)gráfica, apostando em ilustradores que vêm refrescar o imaginário com óbvias referências à Pop Art, Op Art e ao Surrealismo (Prova E – edições de 1967 a 1970, imagens de capas de livros que não possuo). Olhando para elas, fico sem saber se se tratava de uma subtil manobra de contrabando cultural por parte de uma casa editorial grande e conservadora, apresentando a FC sob a capa do mainstream, ou de uma genuína confiança nos valores culturais intrínsecos ao género, mas creio que esta última hipótese será a certa. Nunca Philip K. Dick, por exemplo, teve nos EUA capas tão boas como as que a Doubleday fez para Do androids dream of electric sheep? ou Ubik. O pico desta fase é a edição em 1970 de The Atrocity Exhibition de J. G. Ballard, que Ronald Reagan, então governador da Califórnia, impediu que saisse para as livrarias e mandou destruir devido ao conto Why I want to fuck Ronald Reagan. A capa era de Michael Foreman e a edição continha desenhos feitos ad hoc por este ilustrador (é, hoje, e como se compreende, a edição de Ballard mais rara e valiosa: nem o próprio autor possui qualquer cópia – ver aqui). Era a assunção do surrealismo como constante referência na edição de FC, aqui bem escolhido (referência a Les Amoureux de Man Ray), decantado e articulado com o design da capa (tal como nas da Cape em Londres para os livros do mesmo autor).

(Prova E)

Este panorama refrescante na edição de FC ter-se-á mantido até à imposição (ou regresso sob novas roupagens), nos anos 70, da ilustração naturalista (em que o aerógrafo substitui lentamente os pincéis), preterindo a sugestão das texturas ou detalhes fotográficos abstractos e o jogo onírico de grafismo actualizado em favor de um imaginário muito pobre e reciclado da nostalgia pulp dos anos 50 (no cinema, e arriscando a extrema simplificação, diria que será o passo de 2001 ou Ameaça de Andrómeda – um filme graficamente soberbo, talvez o mais coeso, com o de Kubrick, nesse aspecto – para Encontros Imediatos ou Guerra das Estrelas).

Leave a comment

Filed under 1968, Capas

Leave a comment