Saber olhar para trás (como os chineses)

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Um livro e uma revista, dois projectos díspares em ambição mas que comungam do mesmo desejo de olhar para trás, com serenidade e distanciamento, e capturar uma imagem ou as imagens possíveis da história do design gráfico português no último meio século. Depois de anos a olhar febrilmente em frente e para os lados, será a crise a oportunidade de recuperar e reflectir sobre o que foi sendo esquecido?*

Numa pesquisa fortuita na internet, dentro de um nicho de interesse que confesso, descobri há pouco tempo um livro chamado Testimonios del Diseño Gráfico Cubano 1959-1974 (2010), com coordenação de Héctor Villaverde. Trata-se de uma análise intensiva da actividade gráfica cubana (dos cartazes ao design editorial) baseada em testemunhos orais transcritos, com mais de 300 páginas. Ou seja: num país económica e geograficamente muito mais modesto do que o nosso (ainda os há), com uma história cultural muito menos extensa, edita-se e produz-se um volume desta dimensão que cobre apenas um trecho temporal de 15 anos.

Este orgulho pelos feitos históricos do design gráfico nacional traduzido em edição de livros é comum a países tão diversos como a República Checa, o Brasil, a Argentina ou a Holanda, para além das incontornáveis potências culturais europeias e norte-americana. Em Portugal, nos vinte anos de “vacas gordas” que se sucederam às crises pós-PREC e à entrada na CEE e que precederam a chegada da presente crise financeira pandémica, olhou-se freneticamente em frente e para os lados. Perante o impulso da prática e do aggiornamento da actividade face os padrões internacionais, o design gráfico em Portugal vivia num frenesi de actualidade e de novidade: a História era algo a exigir um distanciamento, uma serenidade e uma capacidade reflexiva que a excitação e o burburinho dos novos tempos não permitiam ou não pediam. Contam-se pelos dedos de uma mão mutilada as edições sobre a história do design gráfico nacional nesse período, e os livros de referência publicados (como a monografia sobre Sebastião Rodrigues na Gulbenkian ou o catálogo da exposição da obra de João Abel Manta no Museu Bordalo Pinheiro, em 1992) foram raríssimos e estão hoje remetidos aos alfarrabistas. Mesmo as edições com base em testemunhos de grafistas, ilustradores, tipógrafos ou designers foram quase inexistentes (salvou-se o Falando do Ofício, uma edição de 1989), e a ausência de massa crítica na imprensa, quer em revistas (em Portugal não há hoje uma única revista sobre design gráfico nas bancas, e há já quase 10 anos que é assim) quer nas colunas dos jornais, foi confirmando o quadro geral de escassez. A julgar pela produção editorial, não parecíamos gostar ou querer provar que gostávamos da nossa tradição gráfica, excepção feita ao panteão do primeiro modernismo em torno do incontornável Almada (e mesmo esse ia acumulando pó).

A crise parece ter despertado esta ânsia de olhar para trás de forma objectiva e selectiva e, sobretudo, de preservar para memória futura através da edição. Depois do arranque da “Colecção D” há pouco mais de um ano, uma série de monografias sobre designers portugueses clássicos e contemporâneos publicadas pela INCM (e a cujo ritmo espaçado de lançamentos a dita crise não será alheia), eis que chega este Design Gráfico em Portugal de Margarida Fragoso (Livros Horizonte). Desta editora tinha já saído em 2009 um muito interessante sortido de textos no volume bilingue O Triunfo do Desenho, alguns dos quais se revelaram de extrema importância neste novo ímpeto de analisar e captar imagens do nosso passado gráfico. Constituindo-se a partir de uma tese académica da sua autora, Design Gráfico procura cruzar o eixo diacrónico de uma história resumida da cultura visual de cariz popular em Portugal desde finais do século XIX (e seu contexto internacional, em dinâmica de influências e comparações) com aportações testemunhais do que aqui se chamam “actores significantes”, designers gráficos com carreiras activas nos últimos 60 anos (sendo Maria Keil, recentemente falecida, a mais “veterana”). Sem o orçamento ao dispor da INCM, a Livros Horizonte não pôde claramente investir num aparato gráfico e de acabamento ao nível do da Colecção D, mas a “aridez académica” de que padece em parte este volume não é culpa apenas desse menos inspirado design do livro (o Triunfo do Desenho era bem mais apelativo), tendo faltado porventura um trabalho de edição que limasse a excessiva compartimentação do discurso e um “aparato” em certos casos desnecessário (tal como o Anexo “técnico” sobre impressão e o glossário). Na sua melhor parte, a das entrevistas, nota-se também alguma falta desse labor editorial em alguns detalhes (a excessiva rigidez ou “controlo” das respostas em algumas entrevistas trai o facto de terem sido feitas por email, ao contrário dos ritmos típicos das conversas transcritas que se sentem noutras), mas ele não retira o valor a alguns destes testemunhos, e é neles que está o grosso da importância deste volume. Destaco as entrevistas a Carlos Rocha, Henrique Cayatte, Luís Filipe Abreu, Maria Keil e José Brandão, mas é nas palavras explosivas e muito honestas (uma autêntica excepção no discurso público dos “actores significantes” do design português) de Jorge Silva que está a “granada de mão” encerrada neste livro, um repto à reforma do design dos jornais e revistas que vai deixar muita redacção de orelhas a arder.

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Ora é precisamente como revista que a PLI se apresenta, apesar de neste seu número duplo 2/3 ela desafiar gráfica e tactilmente o que habitualmente concebemos como “revista”. Publicada pela Escola Superior de Arte e Design do Porto, a qualidade e arrojo gráfico deste volume (com design de João Martino e edição de José Bártolo) denotam a solidez financeira da instituição que sustenta este projecto, a qual deixa igualmente prever alguma continuidade do mesmo. Apesar de centrado na questão da edição de livros de artista e no universo algo restrito em que elas se produzem e comercializam, a surpresa deste número PLI está na abrangência histórica e ambição de alguns dos seus textos, e dos seus proveitosos cruzamentos com as matérias de design editorial e edição. Nesse sentido, são realmente incontornáveis, pela sua qualidade informativa e documentação iconográfica, textos como “A liberdade está a passar por aqui” de José Bártolo, sobre o design gráfico português na década de 1970, “perdida” entre dois booms sócio-culturais (com uma pertinente revalorização da obra gráfica de Armando Alves); “Almada e Ernesto Dois Nomes de Guerra”, de António Quadros Ferreira e Paulo T. Silva, sobre o “mixed media” de Ernesto de Sousa em torno da figura de Almada Negreiros, ou (apesar de infelizmente curta) a entrevista a Luís Miguel Castro em torno do seu trabalho como director de arte da revista K nos anos 90 e dos catálogos da Cinemateca (e à qual terá talvez faltado o complemento de algumas perguntas a João Botelho, companheiro de jornadas gráficas daquele e muito referido na entrevista). Foi também pedido a uma série de designers que escolhessem o seu livro “fetiche”, num segmento que, apesar da (previsível) irregularidade na qualidade dos textos de argumentação das escolhas, reforça esta orientação assumida e saudavelmente “arqueológica”.

Na apresentação da PLI em Maio último, Luís Miguel Castro referiu que, ao contrário dos “ocidentais”, os chineses não se preocupam com o futuro, preferindo antes analisar cuidadosa e profundamente o seu passado e fazer desse estudo o mapa para o caminho a percorrer. Parece, pois (e agora que da China chega algo mais do que apenas sabedoria milenar e comércio de bairro), ser hora de o fazermos também no que toca ao nosso património gráfico e editorial. Ainda que de forma desigual e com ambições díspares, estas duas publicações são dois passos seguros nesse caminho.

*texto escrito em Junho de 2012

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