Verão gélido

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A 1 Abril de 1964 um golpe de Estado destituiu o governo democraticamente eleito de João Goulart, o presidente do Brasil. Poderia ser uma “partida” do dia das mentiras: afinal de contas, um dos principais golpistas chamava-se Kruel (o fiel ministro de guerra, general Amaury Kruel, que, como faria Pinochet dez anos depois, traiu o estadista que o promovera e que caninamente servia). Mas, apesar dos nomes de opereta, o golpe deu início à mais longa ditadura militar da América do Sul e uma das mais repressivas, pondo fim a um período de prosperidade e optimismo desde meados da década de 1950, os “anos dourados” brasileiros (identificados, sobretudo, com a presidência de Juscelino Kubitchek). Perante uma viragem “à esquerda” do governo de Goulart – que sucedera a Jânio Quadros em 1961 – os Estados Unidos, receosos dos contágios revolucionários depois de Cuba em 1959, financiaram o golpe, marcando o início de uma política de intervenções mais ou menos directas em sucessivos golpes militares na região nas duas décadas que se seguiram.

Membro do Partido Comunista brasileiro, o editor Ênio Silveira, director da Civilização Brasileira, tornou-se imediatamente num dos alvos mais frequentes da repressão das novas autoridades. Apesar dessa filiação política, o editor conseguira manter o seu catálogo longe da linha mais dogmática do partido, tanto no ensaio (publicando obras de marxistas heterodoxos junto com a edição integral d’O Capital) como na ficção (publicando os “perigosos” Amante de Lady Chatterley e, sobretudo, Lolita). Esta lufada de ar fresco e arrojo teve uma apropriada alavanca gráfica na aportação de Eugenio Hirsch, um austríaco que, com 16 anos, fugira da Europa para a Argentina em 1939, e que em 1955 voltara a ter de fugir de agitações políticas – o golpe de Estado que depôs Juan Peron – dessa feita para o Brasil. As capas que compôs nesses dez anos de colaboração (colocadas “sempre a serviço do impacto visual” e viabilizadas “pela liberdade sem precedentes garantida pelo editor Ênio Silveira”, como escreveu Chico Homem de Melo em O Design Gráfico Brasileiro: Anos 60) são justamente consideradas como catalizadoras de uma revolução no grafismo editorial brasileiro, tão decisiva para a história do mesmo como essa outra revolução em 1964 seria para a história do Brasil.

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Não é, pois, difícil ler nesta sombria capa para o romance Antes o Verão de Carlos Heitor Cony (um dos novos romancistas brasileiros de então), publicado em Junho de 1964, mais do que apenas a neutra tradução visual da corrosão de um casamento da média-alta burguesia, acelerada pela força dos elementos sobre uma idílica casa de praia recém-construída (o vento inclemente, a areia e o sal que invadem todos os cantos) e (lembrando Muerte de Un Ciclista, o filme de Juan Antonio Bardem de 1955) pelo trágico atropelamento de um habitante local. O preto que impera na capa (cortado apenas por um pequeno detalhe vermelho que faz a vez do til na palavra “verão”), o título composto sobre tiras de papel branco cortadas/rasgadas e até o olhar inquietante da figura feminina nua, tratada em alto contraste (com um rosto que lembra o de uma personagem do teatro kabuki), são óbvios sinais de uma malaise que extravasava a situação conjugal dos protagonistas: o Brasil solar e optimista dos dez anos anteriores estava agora envolto em negrume. Até o erotismo elegante e algo estilizado, uma das marcas de Hirsch e que ele impusera em algumas capas de importantes edições da Civilização Brasileira (como, em 1959, esse célebre “bumbum” de Lady Chatterley, correndo nua pela floresta e vista pelos olhos do amante que a persegue – “o primeiro bumbum feminino em capa de livro brasileiro”, como comentou com orgulho muitos anos mais tarde, em 1991, à revista Design & Interiores – ou a ainda mais estilizada adolescente da capa de Lolita) parece aqui deixado de parte em benefício de um impacto mais duro, mais agressivo. Se tomarmos pelo seu valor facial a frase de Hirsch (que, em 1967, abria um artigo na revista Realidade sobre o grafismo editorial brasileiro) segundo a qual “uma capa é feita para agredir, não para agradar”, então esta capa de Antes o Verão é a sua perfeita ilustração.

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Se a chegada dos militares da linha dura foi o pretexto para mais uma emigração de Hirsch, o erotismo foi precisamente a via de saída: em Dezembro de 1965 publica na Playboy um bizarro portefólio fotográfico, The Lass Menagerie. Segue-se mais de uma década em Espanha, antes de regressar ao Brasil no início dos anos de 1980 (onde a sua figura de “excêntrico” carioca adoptivo desde a década de 1950 – “os próprios excêntricos o achavam excêntrico” – seria fixada em Ela é Carioca, a “enciclopédia de Ipanema” de Ruy Castro de 1999, dois anos antes da sua morte). Para Ênio Silveira, porém, a contestação desde a primeira hora ao novo regime militar (cf. crónica “O Manifesto dos Intelectuais” do mesmo Heitor Cony, publicada no Correio da Manhã do Rio de Janeiro e, depois, reunida com as restantes crónicas desses dias de brasa em O Ato e o Fato, uma edição da inevitável Civilização Brasileira do mesmo mês em que lançaria Antes o Verão), valer-lhe-ia a contínua perseguição pelas novas autoridades: preso sete vezes, verá a editora começar a vergar financeiramente em 1966, fruto da censura e das apreensões de livros, e a livraria da Civilização Brasileira do Rio de Janeiro ser alvo de um atentado bombista em 1968.

“Ao chegar ao local, Ênio assustou-se com um amontoado de cabeças decepadas, cerca de cinquenta, que encontrou à porta. Só olhando de perto pôde notar que eram perucas de uma loja que ficava em frente à livraria e que também fora atingida pela explosão.” (Maria Celeste Mira, “A Coragem de Ênio Silveira” in Momentos do Livro no Brasil, p. 126).

Esse Verão gélido, hostil e surreal de 1964 viera para ficar.

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3 responses to “Verão gélido

  1. «O Ato e o Fato», ou seja, «O Acto e o Facto». Ou de como um livro de crónicas políticas poderia ser confundido com um manual de corte e costura… ;-)

    De resto, e como habitualmente, um texto excelente e interessante.

  2. Olá, Octávio. Pois, aqui decidi optar pela grafia brasileira, dado que a edição que consultei foi a brasileira.

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