1966 foi um ano terrível para muita gente ligada à edição em Portugal, mas para João Rodrigues foi particularmente penoso e cruel. Habitué do Café Gelo e pontual colaborador da imprensa cultural ou “alternativa” (Almanaque, Diário Ilustrado, Jornal de Letras e Artes) e com algumas ilustrações já no currículo (como que as que fizera para a edição da Morais dos Disparates do Mundo de Chesterton, em 1958), tudo faria esperar que as duas encomendas que recebeu no início do ano seriam o trampolim para uma carreira que, como se escrevia na introdução à entrevista que dera ao Jornal de Letras e Artes em Setembro de 1965, não encontrara ainda “as solicitações que permitiriam a sua afirmação cabal”.
Fosse ou não a ideia de uma encomenda como “criptonite” para o artista, avesso ao constrangimento de prazos e obrigações (Bruno da Ponte assim mo assegurou em conversa há uns meses, afirmando que só a custo de muita conversa e de algumas garrafas de whisky conseguiu convencer João Rodrigues a acabar um desenho para publicar no jornal), o certo é que, dessas duas encomendas, apenas a da capa do primeiro livro de Luiz Pacheco numa editora “comercial” (a edição da Ulisseia de Crítica de Circunstância, na colecção “Vária” criada por Vitor Silva Tavares) esteve isenta de pesada reprovação. Os seus desenhos para a edição da Afrodite de A Filosofia na Alcova do Marquês de Sade (para os quais, diga-se, Rodrigues fora uma escolha de última hora, depois da recusa de Cruzeiro Seixas), lançada para o mercado cerca de um mês antes do livro da Ulisseia, foram recebidos com um coro sussurrado de escárnio (Luiz Pacheco – que assinara o prefácio “pró-Sade” na edição da Afrodite – em carta a Cesariny de 9 de Abril de 1966, chegou a referir-se ao “nojo dos desenhos”, e em 1968, num folheto polemista contra o grupo que fizera a edição da Filosofia, o poeta ainda se referia ao “ilustrador a milhas de distância”), que só não se fez ouvir de modo mais conspícuo porque o ilustrador se viu imediatamente envolvido como réu no processo movido pelo Estado à editora e aos colaboradores da edição “sadiana”. Se é, de facto, difícil defender a opção por um traço gélido e rígido nos desenhos para a Filosofia, longe da sua habitual fluidez e elegância de cartoonista (e que revelavam até uma insipiência anatómica que os depreciava numa comparação com todos os ilustradores de Sade até então, incluindo o anónimo da primeira edição clandestina do texto em 1795), esta capa para o livro de Pacheco, mais próxima estilisticamente do seu portefólio, revela, ao menos, alguma da ironia seca, quase melancólica, dos seus desenhos anteriores, ainda que esteja longe de ser um prodígio de composição ou de conjugação entre desenho e tipografia.
O facto de Crítica de Circunstância ter sido também imediatamente proibido pelos Serviços de Censura apenas veio aumentar o lume à fervura em que, subitamente, João Rodrigues se viu metido. De um momento para o outro, a sua carreira estava num impasse e a sua liberdade ameaçada. Em consequência da pressão que sentiu a partir do momento em que o processo contra a edição da Afrodite arranca, no Verão desse ano, do acumular de períodos depressivos que se tinham manifestado já antes, ou da combinação daquela com estes, o artista não chega a ouvir a sentença condenatória em 9 de Novembro de 1967: a 10 de Maio, com apenas 30 anos, atira-se do terceiro andar da sua casa na Avenida Almirante Reis, um suicídio que o Diário de Lisboa é obrigado a noticiar com a fórmula habitual da “queda da janela à rua”.