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“Os novos ‘galimares'”

Texto publicado no Público de 30 de Outubro de 2018 (versão online aqui).

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Capas do cesto dos proibidos (V)

1966 foi um ano terrível para muita gente ligada à edição em Portugal, mas para João Rodrigues foi particularmente penoso e cruel. Habitué do Café Gelo e pontual colaborador da imprensa cultural ou “alternativa” (Almanaque, Diário Ilustrado, Jornal de Letras e Artes) e com algumas ilustrações já no currículo (como que as que fizera para a edição da Morais dos Disparates do Mundo de Chesterton, em 1958), tudo faria esperar que as duas encomendas que recebeu no início do ano seriam o trampolim para uma carreira que, como se escrevia na introdução à entrevista que dera ao Jornal de Letras e Artes em Setembro de 1965, não encontrara ainda “as solicitações que permitiriam a sua afirmação cabal”.

Fosse ou não a ideia de uma encomenda como “criptonite” para o artista, avesso ao constrangimento de prazos e obrigações (Bruno da Ponte assim mo assegurou em conversa há uns meses, afirmando que só a custo de muita conversa e de algumas garrafas de whisky conseguiu convencer João Rodrigues a acabar um desenho para publicar no jornal), o certo é que, dessas duas encomendas, apenas a da capa do primeiro livro de Luiz Pacheco numa editora “comercial” (a edição da Ulisseia de Crítica de Circunstância, na colecção “Vária” criada por Vitor Silva Tavares) esteve isenta de pesada reprovação. Os seus desenhos para a edição da Afrodite de A Filosofia na Alcova do Marquês de Sade (para os quais, diga-se, Rodrigues fora uma escolha de última hora, depois da recusa de Cruzeiro Seixas), lançada para o mercado cerca de um mês antes do livro da Ulisseia, foram recebidos com um coro sussurrado de escárnio (Luiz Pacheco – que assinara o prefácio “pró-Sade” na edição da Afrodite – em carta a Cesariny de 9 de Abril de 1966, chegou a referir-se ao “nojo dos desenhos”, e em 1968, num folheto polemista contra o grupo que fizera a edição da Filosofia, o poeta ainda se referia ao “ilustrador a milhas de distância”), que só não se fez ouvir de modo mais conspícuo porque o ilustrador se viu imediatamente envolvido como réu no processo movido pelo Estado à editora e aos colaboradores da edição “sadiana”. Se é, de facto, difícil defender a opção por um traço gélido e rígido nos desenhos para a Filosofia, longe da sua habitual fluidez e elegância de cartoonista (e que revelavam até uma insipiência anatómica que os depreciava numa comparação com todos os ilustradores de Sade até então, incluindo o anónimo da primeira edição clandestina do texto em 1795), esta capa para o livro de Pacheco, mais próxima estilisticamente do seu portefólio, revela, ao menos, alguma da ironia seca, quase melancólica, dos seus desenhos anteriores, ainda que esteja longe de ser um prodígio de composição ou de conjugação entre desenho e tipografia.

O facto de Crítica de Circunstância ter sido também imediatamente proibido pelos Serviços de Censura apenas veio aumentar o lume à fervura em que, subitamente, João Rodrigues se viu metido. De um momento para o outro, a sua carreira estava num impasse e a sua liberdade ameaçada. Em consequência da pressão que sentiu a partir do momento em que o processo contra a edição da Afrodite arranca, no Verão desse ano, do acumular de períodos depressivos que se tinham manifestado já antes, ou da combinação daquela com estes, o artista não chega a ouvir a sentença condenatória em 9 de Novembro de 1967: a 10 de Maio, com apenas 30 anos, atira-se do terceiro andar da sua casa na Avenida Almirante Reis, um suicídio que o Diário de Lisboa é obrigado a noticiar com a fórmula habitual da “queda da janela à rua”.

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Sete capas da Afrodite

Usando o pretexto de um destes anódinos (e algo escusados) “Dias Mundiais” (o do Livro, neste caso), e a propósito da exposição “Cólofon” de 500 capas de livros portugueses escolhidas por José Bártolo e Jorge Silva, e que abre no dia 8 de Maio no Museu Quinta de Santiago em Matosinhos, eis uma escolha de algumas capas do catálogo da Afrodite que tomei a liberdade de sugerir ao Jorge Silva há alguns meses, quando soube do projecto. Na altura, ele tinha já “pré-seleccionado”, digamos assim, as capas das edições de Aventuras de Alice no País das Maravilhas (1971), Apocalipse do Apóstolo João (1972) e As Crianças Falam (1973). As capas que seguem abaixo estão ordenadas cronologicamente. Note-se que não sei sequer se elas foram escolhidas pelos curadores ou não: tratou-se apenas de simples sugestões.

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Começo pela capa de Rocha de Sousa para a Antologia do Conto Fantástico Português (1967). O ano de 1967 foi aziago para Fernando Ribeiro de Mello: o processo da edição da Filosofia na Alcova de Sade chegara ao fim com uma dura condenação, e os custos do mesmo acrescidos à necessidade de não dar muito nas vistas fizeram com que ele apenas lançasse, lá bem para o fim do ano, este livro, ainda por cima mal recebido pela crítica. Se a antologia enferma de falhas na escolha dos contos e sua justificação ou não, o certo é que, para além do seu ineditismo (nunca antes se publicara uma antologia de contos portugueses dentro do género fantástico), a edição contou com uma das melhores capas de todo o catálogo da Afrodite, na composição, na factura do desenho, no arranjo tipográfico (com o uso elegante da Clarendon em caixa baixa), na sábia adição do vermelho como segunda cor, deixando-nos a lamentar a ausência de um conjunto de ilustrações a acompanhar a capa e de outras colaborações suas com a editora.

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Depois das atribulações com a polícia e a justiça (mas quando ainda tinha um outro processo a decorrer, o da Antologia da Poesia Erótica e Satírica, que só terminaria em 1970), Ribeiro de Mello reinventou-se como editor de livros infantis, para o qual foi essencial a colaboração com Maria Alberta Menéres, uma poetisa que começava então a dar os primeiros passos na literatura para crianças. O arranque da Cabra-Cega, a colecção infantil da Afrodite, dá-se com este Conversas com Versos (1968), que exibia esta soberba capa de Manuel Baptista e, no interior, algumas ilustrações a pincel, engenhosas de simplicidade, do mesmo estilo. Tal como Rocha de Sousa, Baptista expusera na Galeria Quadrante (por então, uma das novas galerias em ascensão em Lisboa); uma vez que a livraria ligada à galeria distribuía os livros da Afrodite, é bem possível que o editor tivesse aí o ponto de encontro para “arrebanhar” estes jovens artistas para o seu catálogo. Na Cabra-Cega publicarão as suas primeiras ilustrações em livros artistas como Fernando Calhau, Eduardo Batarda ou Julião Sarmento.

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A capa de Sena da Silva para a Antologia do Humor Português (1969) é não só uma das mais icónicas de todo o catálogo da Afrodite, como está associada (tendo certamente contribuído para tal) a uma das edições mais famosas da viragem da década de 60 para a de 70 e uma das mais bem sucedidas financeiramente de Fernando Ribeiro de Mello. Estendendo a imagem da “dentadura” a dezenas de homens-sanduíche e a eléctricos da Carris, a campanha de promoção desta antologia foi um marco incontornável da Lisboa que vivia a “primavera marcelista” e rompeu com a então muito tímida e pacata tradição de lançamentos de livros. A edição serviu também de “montra” para quatro jovens artistas e ilustradores em início de carreira: Carlos Ferreiro, João Machado, José Rodrigues e Eduardo Batarda, em particular este, com dezenas de brilhantes pequenos desenhos a ilustrar o índice temático.

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Uma das melhores e mais prestigiadas colecções da Afrodite, lançada no auge da renovada fama após a Antologia do Humor Português, foi a dos Clássicos, dedicada à reedição de obras antigas (anteriores ao século XIX no mínimo) e algo esquecidas. O esquema gráfico da colecção foi concebido por Paulo-Guilherme e o primeiro volume foi este Arte de Furtar (1970). Tal como na Cabra-Cega, teria sido difícil começar melhor, sobretudo no que às ilustrações diz respeito. O estilo ácido e provocador dos pequenos bonecos grotescos de Eduardo Batarda, onde abundam as caveiras a casquinar, encaixa perfeitamente neste ensaio do século XVII sobre as mil e uma formas em que a corrupção e o desvio de dinheiro se insinuaram no ethos ibérico. Destacar apenas a capa num livro tão bem pensado e feito, em que o desenho de Batarda tem uma tal importância na imposição de um ambiente e uma “cenografia”  (a começar nas guardas), é, por si só, um exercício de mutilação. Que Eduardo Batarda não tenha feito depois uma carreira como ilustrador (para além de três outros livros da Afrodite – Histórias com Juízo de Mário Castrim, em 1969 na colecção Cabra-Cega, o Manual dos Inquisidores de 1972 e a Antologia de Poesia Erótica Latina de 1976 – o seu nome está apenas ligado a outra pequena grande edição, a das Fábulas Fantásticas de Ambrose Bierce, publicadas pela Estampa em 1971) é daqueles mistérios insondáveis do “mercado” do livro em Portugal.

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Um ano após a Revolução de 25 de Abril de 1974, Ribeiro de Mello anunciava para a Feira do Livro de 1975 a reedição renovada de um dos seus dois livros condenados pela justiça do Estado Novo, a Filosofia na Alcova do Marquês de Sade. Com nova tradução, o livro apresentava-se também com novas ilustrações, desta feita por um dos ilustradores mais associados à Afrodite na década de 1970 (formando, com Eduardo Batarda e Henrique Manuel, o núcleo da imagem da editora nesses anos) e um dos mais notáveis também: Martim Avillez. Este dera-se a conhecer na espantosa edição do Livro de S. Cipriano em 1971 e subira a parada no Apocalipse do Apóstolo João no ano seguinte. A Filosofia foi o seu último livro para a Afrodite antes de emigrar para Nova York no final da década, e o seu trabalho esteve ao mesmo nível dos anteriores. Particularmente curiosa, contudo, é esta capa quase “minimalista” (não fosse toda a textura da factura manual do artista, até na tipografia), que recusa a exibição do que nas páginas se mostra e opta por ostentar este simples colchão cor-de-rosa (que se vê até de perfil na lombada). Para um artista ocasionalmente dado à grandiloquência e à minúcia obsessiva na representação do grotesco e do fantástico, esta simples solução espanta e encanta, até pelo inesperado.

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Se, na segunda metade dos anos 70, José Martins Garcia substituiu, de certa forma, a figura de Natália Correia como intelectual tutelar, autor nacional de referência e colaborador regular do editor da Afrodite, Nuno Amorim foi o último colaborador regular na área visual, do simples design das capas à ilustração pontual (de que é exemplo o seu brilhante trabalho para O Super Macho de Alfred Jarry, em 1975). O seu estilo, como é claro a quem vê os desenhos da edição do Jarry, estava próximo da banda desenhada de ficção científica e fantasia que a revista francesa Métal Hurlant publicava então (tendo chegado a estar próximo de uma possível publicação nessa revista de referência), e ele chegara a publicar histórias na revista Visão, que por cá tentou emular aquela. É por isso curioso que a que considero ser a sua melhor capa para a Afrodite seja uma em que o estilo pessoal dele é preterido em benefício de uma simples intervenção gráfica no trabalho de outrem: ou seja, uma capa não ao seu estilo mas “ao estilo de”, no caso de João Abel Manta. Os curtos contos absurdos de Martins Pereira, muito próximos de um Ambrose Bierce, reflectem um desencanto azedo com a situação pós-revolucionária, algo de que a capa não nos deixa duvidar. Apropriando-se de um dos mais famosos cartazes de João Abel Manta do PREC, o “MFA,POVO/ POVO,MFA”, em que o soldado e o camponês partilhavam alfaias e armas, Nuno Amorim acrescenta ao primeiro as extensões “diabólicas” da iconografia popular (cornos, rabo, patas de bode e um tridente) e pinta-o de vermelho, e ao camponês, por seu lado, acrescenta umas asas de querubim. Poder-se-á discutir sobre a subtileza da solução (sendo que, no rescaldo de um PREC escaldante, esperar “subtileza” fosse algo da ordem do milagre), mas, graficamente, a capa tem uma força inegável. Muita dessa força, irónica e nada ingenuamente, apoia-se, claro está, na linha clara e sólida de JAM, e se há algo de que esta capa é prova, é da referência que o trabalho deste representava na altura, com cartazes e cartoons ubíquos que marcaram visualmente toda a década: mesmo uma acção de “terrorismo gráfico” como esta, contrária à ideologia do próprio JAM, não deixava de ser uma homenagem.

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A edição deste Textos Malditos de Luiz Pacheco (1977), uma antologia dos seus textos proibidos durante a última década e meia do Estado Novo, fora acordada entre o autor e o editor em 1974, um mês depois da Revolução. Nos três anos que distaram entre a sua concepção e a saída do livro, a relação entre ambos esfriou e o editor deparou-se com sérios problemas financeiros, os quais, acrescidos a uma nítida perda do prestígio cultural de que gozara por força de edições que pareciam não corresponder ao padrão de qualidade da Afrodite, ditaram o lento crepúsculo do projecto. O que teria sido, em 1974, um grande título de Pacheco, na senda das suas edições na Estampa, em 1977 era já apenas a sombra de uma “negociata” longínqua com um editor pelo qual – em virtude de uma certa viragem “à direita” deste e de edições como a da tradução portuguesa do Mein Kampf em 1976 – ele não nutria já grandes afinidades. Ainda assim, o bom olho de Ribeiro de Mello para a escolha de ilustradores leva-o a associar ao projecto um artista que se estreia no catálogo da Afrodite em 1974, e que marcará esse catálogo até à sua última colaboração, que se dá precisamente neste livro: Henrique Manuel. Partilhando com o editor (e o autor) o culto de uma libido explosiva (notória nos seus desenhos para a Nova Recolha de Provérbios ou na Poesia Portuguesa Erótica e Satírica – Séc. XVIII-XIX), Henrique Manuel deixa neste último livro para a Afrodite algumas ilustrações realmente notáveis da figura do autor “libertino” e, sobretudo, uma capa icónica que coroa uma década de tentativas de representação do “boneco” Pacheco. Perdido no meio do implacável fundo branco, obrigado a um desconfortável aprumo no eixo central da composição, o autor apresenta-se-nos com os seus habituais atributos… e decapitado, ou melhor, com a cabeça cuidadosamente amparada nos braços e nas mãos cruzadas. É um misto perfeito de caricatura e retrato psicológico, a que as finas hachuras feitas com a Rotring concedem uma delicadeza que parece contrária ao absurdo chocante da imagem (sobre a história desta edição, escrevi a monografia A Última Sessão que pode ser adquirida aqui).

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Está já à venda a 2.º edição revista de A Última Sessão, a história da edição dos Textos Malditos de Luiz Pacheco na Afrodite de Fernando Ribeiro de Mello em 1977, cuja primeira edição lancei em 2012. Compras e encomendas no site Montag.

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Martim Avillez: incandescentes apocalipses

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Martim Avillez faleceu a 24 de Janeiro, no meio do esperado e já quase proverbial silêncio dos “especialistas” em “cultura” na imprensa portuguesa. Junte-se a esse habitual silêncio a existência de um jornalista/comentador televisivo homónimo e encontrar uma referência ao acontecimento e ao artista torna-se impossível, por muito que se puxe pelo Google.

Em conversa com o pintor Eduardo Batarda no ano passado, no contexto do livro sobre a Afrodite que preparo, Martim Avillez (com quem eu desejaria ter também conversado) tinha obviamente sido assunto, mas foi aí que soube que ele  estava infelizmente já muito mal. Má sorte ter sido ilustrador da Afrodite, tê-lo sido (ilustrador) nos anos 70 e com alguma fama ou ter-se definido como autor de BD. Tomada em partes ou em mistura, eis uma receita tóxica e conducente ao esquecimento por estas bandas. Exemplos? Henrique Manuel (morto há 20 anos no meio da indiferença geral, indiferença que continua, até para os lados da Gulbenkian, que o incensou fugazmente), Eduardo Batarda (que não voltou a ilustrar um livro depois da Antologia de Poesia Latina da Afrodite, em 1975) ou Martim Avillez, notável ilustrador do Apocalipse do Apóstolo João, da mais excêntrica edição do Livro de São Cipriano e do Sade da 2.ª edição da Filosofia na Alcova para a Afrodite, já para não falar de um dos mais icónicos livros dos anos 70, o Pacheco versus Cesariny. Não fosse uma nota na página de “Diversos” do Público do dia 29, a anunciar para o dia 31 a missa do 7.º dia da sua morte (ocorrida, portanto, no dia 24 de Janeiro), nenhum registo teria ficado do acontecimento (não sei se entretanto chegou a ser publicado um obituário – em 1993, Henrique Manuel teve, pelo menos, direito a um – mas pesquisas na internet continuam sem revelar nada até ao momento em que escrevo este texto). Por manifesta ignorância minha, não pretendem estas linhas ser essa contribuição obituarista, mas antes uma referência ao seu trabalho como ilustrador de livros, em particular o notável portfolio que desenvolveu na primeira metade da década de 1970 para a Afrodite de Fernando Ribeiro de Mello.

Se não nos move o desejo de conhecer mezinhas para deixar um ou uma amante “cativados” (ou, pelo contrário, para fazer com que se “desliguem”), a única razão para se procurar hoje um exemplar do Grande Livro de São Cipriano (em particular, um exemplar da primeira edição desse texto pela Afrodite em 1971, na sua colecção de “Clássicos”) escreve-se com duas palavras: Martim Avillez. A ilustração deste popular grimório medieval foi a grande entrada do artista no catálogo da chancela, num momento de particular pujança da Afrodite, passados que estavam os anos das perseguições policiais, dos livros proibidos e dos julgamentos no Plenário (o julgamento sobre a Antologia da Poesia Erótica e Satírica fora em 1970 – com as esperadas condenações – e em 1971 é incluído no Index censório o último livro da Afrodite antes da Revolução de Abril de 74, o Anti-Duhring de Engels). O início da década é marcado por lançamentos “bombásticos”, como o de Dezembro de 1971 (o do “editor na banheira”, como titulou o Diário de Lisboa), colecções importantes como a dos “Clássicos” e notáveis edições de textos importantes como a Alice no País das Maravilhas de Carroll (a primeira edição “não infantil” desse texto em Portugal) ou A Sociedade do Espectáculo de Debord (a quarta edição mundial desse texto). Avillez juntava-se a um grupo de jovens artistas que orbitava em torno da Afrodite, como o seu colega nas Belas-Artes (1) de Lisboa Eduardo Batarda (que ilustrara de maneira brilhante a Arte de Furtar em 1970) ou Carlos Ferreiro (vindo já do grande sucesso de crítica e vendas que fora a Antologia do Humor Português de 1969), e a sua estreia não podia ter sido melhor.

Trata-se, como esperado, de um autêntico catálogo de bizarrias, às quais Avillez empresta algum humor, denotando já as influências da banda desenhada na composição dos desenhos (uso de vinhetas, recurso a onomatopeias), e num estilo que varia do traço minucioso, pleno de detalhes e meios-tons em hachuras delicadas, até ao quase esboço, sempre com um uso muito eficaz dos espaços em branco na composição (apesar do seu gosto pontual pelo excesso, Avillez estava longe de cultivar o “horror vacui”). O que torna esta primeira edição da Afrodite verdadeiramente notável é o facto de ser impressa na sua quase totalidade – capa e miolo – com cores directas (incluindo dourados e prateados) e num efeito de gradiente (uma técnica conhecida como “split fountain”). Sugestão do próprio ilustrador, por influência do grafismo psicadélico Pop londrino e californiano do final dos anos 60? Decisão do “controlador gráfico” José Marques de Abreu (2) à revelia do ilustrador (o efeito faz com que se perca o impacto e a intensidade dos negros em alguns desenhos)? Obra do acaso acolhida por ambos? O certo é que o resultado final eleva a edição a um nível visual que certamente nenhuma outra do mesmo texto atingiu ou procurou fazê-lo, acentuando o carácter mágico e alucinante deste e dando cor ao “satanismo light” que Ribeiro de Mello tão astutamente explorou na campanha de promoção e na sessão da “banheira”, fazendo-se acompanhar por figurantes vestidos de “Diabo”.

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Em 1972, na celebração do Ano Internacional do Livro, Ribeiro de Mello decide publicar o texto bíblico conhecido como o Livro do Apocalipse, atribuído ao apóstolo João, e encomenda de novo a Martim Avillez as ilustrações. Estamos ainda na ordem do mágico e do irracional, na linha do livro anterior, mas a escala e o âmbito são mais vastos, o que permite ao ilustrador dar uso ao seu pendor tonitruante e ao gosto pelo macabro, com um requinte de detalhe no desenho  e na composição dos planos que extravasa os limites que o livro de S. Cipriano impusera. A colecção “Extra” da Afrodite, inagurada pela edição da Alice no País das Maravilhas em 1971 – e em que o Apocalipse do Apóstolo João foi publicado – não era, na verdade, uma “colecção” propriamente dita mas uma lista de obras próximas ao espírito do catálogo do editor e cuja preparação gráfica estava isenta de qualquer constrangimento: os formatos variavam enormemente de livro para livro, e a liberdade dada às soluções de paginação e ilustração era igualmente muito vasta.

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O formato quadrado e o impacto visual (o desenho continua pela lombada e contracapa e repete na folha de rosto, permitindo uma dupla valência e uma segunda leitura mais abrangente do plano) e tipográfico da capa (o uso de uma fonte muito semelhante à Avant Garde no título, numa versão ultra fina e com espaçamento apertado, é, ao mesmo tempo, uma concessão compreensível à moda tipográfica do tempo e uma solução certeira no encaixe com a composição geométrica que sobreimprime o desenho) concorrem para criar a entrada perfeita num livro sobre cuja aportação visual de Martim Avillez se pode dizer que é “incandescente” (como o escreveu de facto Isabel da Nóbrega no Diário de Lisboa de 21 de Dezembro desse ano).

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Óbvio devedor do Surrealismo e consciente da tradição iconográfica escatológica, Avillez aproxima-se também dos modos gráficos e narrativos da banda desenhada, sobretudo da que na altura saía das páginas das revistas francesas próximas do underground, como a Hara-Kiri ou a Actuel (veículos de influência óbvios para artistas gráficos portugueses daquela geração e naquela “onda” cultural: numa nota biográfica publicada no 2.º número do jornal & etc sobre Nuno Amorim, já então ilustrador na Afrodite, a influência da Actuel é admitida de forma explícita), como é nítido, por exemplo, no uso das “vinhetas” na composição de alguns quadros, ou no ritmo “sequencial” de algumas ilustrações.

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Em cima: nestas quatro ilustrações do Apocalipse é nítido um ritmo sequencial, criando, através do folheamento, uma ilusão cinética e um efeito cinematográfico.

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Anúncio de imprensa para promoção da edição do Apocalipse do Apóstolo João (1972).


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Exemplar da tiragem especial em capa dura e sobrecapa de 200 exemplares da edição do Apocalipse (fotos gentilmente cedidas por Paulo da Costa Domingos).


Prova das cumplicidades “operativas” que o editor da Afrodite cultivava é o texto que Manuel João Gomes escreveria sobre esta edição, publicado no número 4 (de 28 de Fevereiro de 1973) do “quinzenário cultural” & etc de Vitor Silva Tavares, antigo editor da Ulisseia e que fora até aí o responsável pelo “Suplemento Literário” do Diário de Lisboa (e, em breve, editor de livros sob a mesma chancela da & etc, e com Ribeiro de Mello e a mulher como sócios fundadores). Manuel João Gomes personificava precisamente essas pontes de contacto entre Ribeiro de Mello e Silva Tavares: começara a escrever no DL pela mão deste pouco tempo antes de a Afrodite publicar a sua tradução (com José Vaz Pereira) da Alice de Carroll, fazendo-a acompanhar das suas notas manuscritas sobre os significados arcanos e psico-sexuais do texto original, naquela que foi uma das melhores edições de Ribeiro de Mello. Nesse número do & etc, ele assina um texto largamente encomiástico sobre essa edição do Apocalipse do Apóstolo João, chegando a cotejar as ilustrações de Avillez com uma das gravuras de Durer:

“Como se fez uma edição marginal. Foi a que fizeram Ribeiro de Mello e Martim Avillez. A leitura que iconograficamente MA realizou, segue processos que […] não deixam em certos pontos de nos chamar a uma outra forma de ler. Tomando como modelo de leitura muitas vezes a liberdade que o Autor usou na sua escrita, podemos dizer que MA:
– reconstituiu iconograficamente o texto-fetiche e chamou-lhe seu; podemos designar a operação realizada como uma leitura de grau zero: vive a ilustração de uma tal inocência frente a escrita que isso acaba por imprimir violência e crueldade à leitura, criticando o texto como nenhuma ilustração das que conhecemos o conseguiu…”

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Em cima: “confronte-se Durer e Martim Avillez” (Manuel João Gomes in & etc n.º 4, 28.02.1973).


Num registo mais contido (tanto em qualidade como em quantidade), revisitando iconograficamente algum do território do S. Cipriano, é de 1974 a sua colaboração na 2.ª edição da Antologia do Conto Fantástico Português, com uma ilustração para a capa (que não faz esquecer a que Rocha de Sousa fizera para a 1.ª edição) e outra no interior e um friso decorativo que se repete na introdução de cada texto.

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O livro final de Avillez para a Afrodite, em 1975, seria um projecto de suma importância no contexto do catálogo de Ribeiro de Mello. Quase dez anos depois da 1ª edição da Filosofia na Alcova do Marquês de Sade ter sido retirada do mercado e transformada no pretexto para um duro e sumário processo do qual saíram condenados quase todos os seus colaboradores, o editor, dois anos após a Revolução, volta à carga e muda tudo. Motivo forte para isto foi, por certo, o facto de a edição de 1966 ter sido considerada, quase unanimemente, bastante medíocre (a tradução fora um processo caótico sem qualquer controle, e as ilustrações de João Rodrigues – habitualmente um bom cartoonista no Jornal de Artes e Letras, desenhador repentista de “mesa de café”, com uma veia sombria e sarcástica e um traço vivaz – pareciam traduzir a impreparação ou o receio do artista perante tamanha encomenda: já Luiz Pacheco se referia, em carta a Cesariny, ao “nojo dos desenhos” de J. Rodrigues e a sensação de rigidez e insipiência anatómica destes deixava-os longe do nível que ilustradores anteriores de Sade como Valentine Hugo, Lilian Gourari ou Schem [Raoul Serres] tinham atingido). A escolha de Avillez é mais uma prova do “olho” certeiro de Ribeiro de Mello (afinal de contas, Henrique Manuel, habitual já na Afrodite, estaria também disponível, tal como Nuno Amorim, que estaria  no seu melhor a ilustrar esse ano o Super Macho de Jarry, ou mesmo Cruzeiro Seixas, que recuara em 1966 perante a possibilidade de fazer as ilustrações e teria em 1976 desenhos seus num livro da Afrodite, Do General ao Cabo Mais Ocidental): o Sade seria um passo lógico na continuação dos dois livros anteriores, passando do “gabinete de curiosidades” feérico do São Cipriano ao meticuloso exercício de escatologia do Apocalipse para culminar neste Sade pós-68, quase contemporâneo do de Pasolini (Saló sairia um ano depois), soturno e desencantado, em que o sexo e a possibilidade de titilação sensual (que eram ainda visíveis nos tímidos desenhos de João Rodrigues, e notórios nos ilustradores franceses anteriores) são cruamente dissecados e expostos como maquinações (literais, dado o recorrente desenho de máquinas) de um jogo de poder e de opressão por parte da “classe dominante”. O colchão cor de rosa, desenhado meticulosamente num traço delicado, que cobre a capa, contracapa e – de perfil (bela solução) – a lombada, é a ilustração perfeita dessa crueza sem sombra de sofisticação, que nem a cuidada factura manual da tipografia desfaz. (A curiosa decisão de Ribeiro de Mello de incluir, em “posfácio”, a reprodução dos documentos do processo da 1.ª edição de 1966 reforça esse aspecto sombrio do livro).

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Esta nova edição do Sade foi um dos cinco livros “invulgares” com que o editor “investiu” na Feira do Livro de Lisboa no “Verão Quente” de 1975, e um dos desenhos “do trotamundos Martim Avillez”chega a ser reproduzido pelo Diário de Lisboa na notícia que disso dá conta a 24 de Junho.

A coroar essa brilhante primeira metade da década de 70, Avillez tinha sido ainda o responsável pela capa e as ilustrações do último livro de Luiz Pacheco na célebre colecção da Estampa “Novas Direcções”, onde se tinham publicado Exercícios de Estilo e Literatura Comestível, livros que deram a tardia fama (e algum proveito) ao autor quase quinquagenário no arranque da década. Pacheco Vs. Cesariny (1974) estava pensado pelo seu autor como um grande regresso em forma num estilo em que era mestre consabido – a epistolografia – e como meio de limpar as teias de aranha na sua relação já longa com o “papa” do Surrealismo português, Mário Cesariny. A Revolução de Abril relegou subitamente o livro e as polémicas geracionais e inter-pessoais nele contidas para um plano secundário (disso se lamenta o autor no Diário Remendado), mas o trabalho de Avillez é mais uma vez notável, com uma mão cheia de ilustrações em torno do mote da máquina de escrever e, sobretudo, uma capa icónica, conjugando o seu estilo exuberante de hachuras e traço nervoso no desenho da caneta de dois aparos (que apontam para os dois nomes titulares) com um esquema cromático e tipográfico minimalista (o uso da tipografia “stencil” é particularmente eficaz).

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Em cima: apesar da desilusão com a carreira do livro após a sua publicação, Pacheco terá gostado minimamente dos desenhos de Avillez para o Pacheco versus Cesariny, a julgar pelo facto de em 1992 ter usado um deles na capa da sua edição (pela Contraponto) de O Uivo do Coiote.

Do seu trabalho como ilustrador em Nova Iorque, cidade onde se radicou a partir da década de 1970, encontram-se registos dispersos quer na imprensa mainstream, como a revista New York (em baixo) ou o New York Times Book Review, quer em publicações experimentais e “alternativas”, como a Semiotext(e), onde publicou em 1977 uma banda-desenhada “mito-biográfica” com base nos textos de Friedrich Nietzsche, “My life, by Friedrich Nietzsche”.

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Quanto à ilustração de livros nesta fase “americana”, registam-se alguns exemplos curiosos, como o de Class: A Guide Through the American Status System de Paul Fussel (1983), um guia satírico do mapa de “classes sociais” americanas e seus tiques. O nome de Avillez chega a constar como co-autor (com Susan E. Meyer) de um manual de desenho publicado em 1985 pela Macmillan.

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Num dos últimos números da revista Lusitania (que fundou em Nova Iorque em 1988 e que foi editando intermitentemente, partilhando ou cedendo o leme a editores convidados), o décimo (“The 23”, publicado em 2001), Avillez impõe de novo o seu cunho visual e a sua preferência pela BD como modo narrativo e expositivo na autoria do comic que dá o título à edição, contando a história de vinte e três judeus sefarditas que fogem do Brasil no século XVII perante a iminente chegada da Inquisição ao território. A encadernação “à japonesa”, em acordeão (protegida por capa dura e inserida numa caixa) dispõe a BD numa face e quatro ensaios na outra. Quase trinta anos depois do Apocalipse da Afrodite, este terá sido, possivelmente, o último grande momento gráfico de Martim Avillez como criador de livros.

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The 23, banda desenhada da autoria de Martim Avillez publicada no n.º 10 da revista Lusitania, 2001 (fotos gentilmente cedidas por Ana Neto).


(1) Cf. “Pintar em Portugal, Anos 60, Eduardo Batarda” in Eduardo Batarda Pinturas 1965-1998. Lisboa: CAM-FCG, 1998.

(2)  Figura esquiva: para além das fichas técnicas dos livros da Afrodite dos anos 70, nada se encontra dele ou sobre ele. Seria, ao mesmo tempo, um pseudónimo do editor e uma homenagem ao homónimo fotógrafo e artista gráfico portuense, outrora director da revista Ilustração Moderna e falecido em 1958? Seria o mesmo José Marques de Abreu que surge, na década seguinte, como arranjador gráfico em edições da INCM?

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Lisboa, 232,7 graus centígrados

Quando o bombeiro Montag não era o único a brincar com o fogo em Lisboa, e o medo da perseguição fazia dos próprios editores incineradores de livros.

Fahrenheit 451 de François Truffaut estreou em Lisboa em Dezembro de 1967, possivelmente num dos cinemas da Avenida da Liberdade e, aparentemente, sem problemas com a censura (a julgar pela ausência de menções, por exemplo, no Cinema e Censura em Portugal de Lauro António, edição da Arcádia de 1978). Já não os tivera a primeira edição portuguesa da obra de Ray Bradbury que lhe servia de base, onze anos antes (o número trinta e três da colecção Argonauta da Livros do Brasil), com tradução de Mário-Henrique Leiria: a ficção científica escapava, sob a capa e o estigma da menoridade de um género marginal, à inclusão no Index. Não que este romance não tivesse condimentos capazes de excitar o faro dos controladores. Bem pelo contrário: todo ele era um bolo indigesto ao palato dos implacáveis censores de livros portugueses (que nesses anos de sessentas rivalizavam em sanha persecutória com os piores censores do outro lado da Cortina de Ferro, suas supostas némesis), parecendo ter sido confeccionado de propósito por algum autor português a coberto de pseudónimo “camone” para lhes provocar uma infecção alimentar de monta.

Eis a primeira parte desta ironia de duas faces. Quer por baixo da ilustração de Lima de Freitas de 1956 (que incluía um “cão-polícia mecânico”), quer nestas novas roupagens fotográficas da edição tie-in (termo contudo anacrónico no mundo da edição portuguesa de 1967) que visava aproveitar a estreia deste sucesso cinematográfico quase garantido, o texto de Bradbury sobre um estado futuro onde a censura aos livros passa da selecção para o puro extermínio indiscriminado pela mão de bombeiros profissionais não terá causado qualquer comichão à Comissão de Censura (mais uma vez, nenhum registo consta das listas conhecidas). Mas, quando o filme de Truffaut estreia em Lisboa, cheira a livros queimados. A cinzas, pelo menos.

O ano de 1966 fora de razia censória, e no olho do furacão estivera Luiz Pacheco (colega de andanças surrealistas de Mário Henrique Leiria). No caso mais grave, as suas participações como prefaciador na edição da Filosofia de Alcova do Marquês de Sade e como um dos autores da Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, ambas edições da Afrodite de Fernando Ribeiro de Mello, custaram-lhe implacáveis condenações (e o suicídio do ilustrador da primeira, João Rodrigues). Talvez por isso, a sua aguardada estreia nesse mesmo ano como autor “a solo” com Crítica de Circunstância, numa das editoras de referência de então, a Ulisseia, se tenha saldado pela (esperada) investida da PIDE. As autoridades assaltam os escritórios da Ulisseia e apreendem todos os exemplares da obra que estavam em armazém. Todos? Não. O editor Vítor Silva Tavares, prevendo o óbvio, tinha salvaguardado umas centenas, levando-os certa noite de carro do armazém da Ulisseia para uma garagem na quinta dos seus pais a 60 Kms de Lisboa.
Fim feliz da história? De novo, não. Pouco tempo depois, e antes de sair da editora, V.S. Tavares conta o segredo (apenas conhecido do seu irmão, também funcionário da Ulisseia) ao proprietário Manuel Correia.

“E saí. Tempos depois, creio que um sobrinho dele […] quis saber da administração da editora, e o meu irmão falou-lhe então da existência desses livros e o rapaz, atemorizado, numa certa noite, foi lá com o meu irmão e recolheu os caixotes com os exemplares da Crítica. Caixotes esses, livros esses, que nessa mesma noite foram regados a gasolina, algures no parque de Monsanto, e desapareceram. […] Por um lado, salvo os livros das garras da PIDE, por outro lado, por um excesso de honestidade, acabo por ser também responsável, de certo modo, pelo triste destino que tiveram os ditos.” (in Puta que os pariu!, João Pedro George, p. 397).

Não era, pois, a rosas que cheirava o ar de Lisboa quando o filme estreou no ano seguinte, a mesma Lisboa onde eram as pessoas que trabalhavam e produziam os livros que se encarregavam de os queimar com medo de represálias: teria Bradbury pensado num twist tão perverso, numa tão radical versão da auto-censura que eliminava a necessidade de bombeiros pirómanos? E quantas mais fogueiras de livros ardiam e arderam por esses recantos da Grande Lisboa?
(Nota final de remate da amarga ironia desta história: quando as instalações da PIDE são ocupadas em 1974, há umas dezenas de livros ali pelos cantos. Que livros? Os exemplares da Crítica de Circunstância, preservados e salvos para a posteridade, que os agentes tinham apreendido em livrarias e na editora.)

(texto publicado na revista Bang! n.º 13, Julho de 2012)

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Recorte e costura

Recensão à edição A ÚLTIMA SESSÃO saída na Time Out Lisboa (n.º 254, de 08.08.12). Lembro que continua à venda na LOJA deste blogue.

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