Os livros dos mil dias

Andam, quase literalmente, aos pontapés. Encontram-se por essas feiras de velharias, no chão, ou em cantos esquecidos das lojas de alfarrabistas, entre antigos almanaques e revistas, nalguns casos ao preço da chuva, o preço de quem faz um favor ao vendedor por livrá-lo de papel velho. Essa circunstância reflecte, creio, a sua quase invisibilidade e o seu pouco valor na (ainda incipiente, é certo) historiografia da edição e do design editorial destes últimos quarenta anos: desprovidos, na sua maioria, de uma marca autoral forte (ou de um designer de “nome” da ficha técnica), foram projectos montados “a quente” nos meses que se seguiram à Revolução de Abril de 1974, ou durante os três anos seguintes, em que a normalização democrática arrefeceu as paixões do PREC.

Tipologicamente, são difíceis de definir: nem livros de fotografia (ou “fotolivros”, categoria nobilitada historicamente na última década a partir da pesquisa bibliográfica de Martin Parr e Gerry Badger no projecto monumental The Photobook – a History), nem livros de registo (foto-)jornalístico, nem livros de reflexão política, sociológica ou historiográfica, nem meros repositórios de documentos, são um misto de tudo isso, caracterizados por uma certa embriaguez da urgência e do momento (sobretudo naqueles produzidos em 1974) e um nítido fascínio por uma nova iconografia nacional que eles, fixando-a e publicando-a, ajudaram também a impor.  (Uma excepção possível seria, por exemplo, Deus Pátria Autoridade, edição da Contraeditora de 1976, a que o design gráfico de José Brandão – um nome incontornável e referencial da prática profissional nesses anos – confere qualidades potencialmente “redentoras”, mas que, sendo não mais do que a publicação do guião do filme homónimo de Rui Simões de 1975, decidi manter fora desta selecção).

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Publicado em Junho de 1974, este Portugal Livre será, certamente, um dos melhores exemplos deste tipo de livros, tão mais extraordinário pela enorme quantidade de material fotográfico reproduzido e pelo contexto de escaldante pressão e euforia em que foi produzido. A qualidade das fotos estende-se ao design da capa (com a omnipresente combinação preto-e-vermelho em cor directa) e à folha de rosto, com um uso dramático da grotesca condensada do título e uma ficha técnica tipograficamente cuidada: sendo esta uma edição d‘O Século, é seguro presumir que Luís Filipe da Conceição e Vitorino Martins, os responsáveis pela maquete, a capa e a orientação gráfica, fossem colaboradores do jornal. A ficha técnica é, aliás, uma autêntica lista da nata do jornalismo escrito e da fotografia de imprensa portuguesa dos anos 70: aos textos de Adelino Gomes e Fernando Assis Pacheco juntam-se as fotos de Eduardo Gageiro, Alfredo Cunha, Carlos Gil, Inácio Ludgero e outros. A paginação é clara e ritmada, evitando a acumulação de fotos por página e jogando com o contraste de escala, com spreads de enorme impacto. É uma espécie de “número especial” de revista, paginado como tal e dando primazia à narrativa e à legendagem informativa e sucinta, mas que a soberba qualidade das fotografias e a prosa requintada transportam a um nível superior, concedendo-lhe quase a intemporalidade de um “clássico”.

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Não é preciso olhar muito tempo para a capa de O Último Dia da Pide (1974) para pensarmos em Armando Alves e na Inova (o “Porto” do subtítulo ajudará também). Ainda que não seja uma edição da Inova (esta distribuiu-a, tendo a edição sido do Movimento Democrático do Porto) e que o nome de Armando Alves não apareça sequer indicado, tudo aqui – a tipografia da capa e sua composição, as badanas largas, as guardas em papel vermelho e a mesma cor no tratamento cuidado da folha de rosto, a ilustração na contra-capa – remete para a elegância de muitos dos livros da Inova e (a partir de 1978) da Oiro do Dia cujo design foi da sua responsabilidade. É, aliás, um livrinho tão elegante que quase nem parece ter sido produzido nesses meses de fornalha revolucionária. As fotos de António Amorim não são particularmente notáveis, limitando-se ao seu papel de documento visual da tomada da delegação da PIDE no Porto a 26 de Abril desse ano.

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Num momento delicado e crítico da sua carreira, vendo-se subitamente rodeado de múltipla e tenaz concorrência no seu nicho, dado o fim da censura, o editor Fernando Ribeiro de Mello arriscou também a sorte nesta onda de livros em torno dos dias da Revolução de Abril com este Último relatório sobre a situação geral do país do ex-Ministério do Interior para a ex-PIDE-DGS (1974), uma reprodução facsimilada do dito relatório acompanhada de algumas fotografias. É a montagem destas que dá personalidade a esta pequena edição, sobretudo o contraste entre algumas soluções visuais pouco elegantes e nitidamente influenciadas pelo calor do momento e a sofisticação de outras (como o excelente spread que coloca, lado a lado, a fotografia de uns óculos de aros grossos e severos e outra de duas mãos agrilhoadas). O recurso à suástica como símbolo identificador das figuras do regime deposto em 1974 é incomodamente profético: dois anos depois, a mal preparada edição do Mein Kampf pela Afrodite ditaria o esgotamento do capital de prestígio acumulado pelo editor  durante a última década da ditadura.

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Projecto inicial de uma editora de livros “interventivos” que o fotógrafo e publicitário Sérgio Guimarães lançou em 1978, a Mil Dias, Da Resistência à Libertação foi um álbum que funcionou como uma espécie de catálogo post-factum: na sua origem esteve uma exposição fotográfica patente no Mercado do Povo, em Lisboa, em comemoração do terceiro aniversário (daí o nome da editora?) da Revolução em 1977. Sérgio Guimarães é um caso tão curioso como fugaz na história da edição depois do 25 de Abril: aproveitando o fim da censura, tentou a publicação de banda desenhada erótica, à imagem de Eric Losfeld (cujo catálogo lhe serviu de guia), em edições cuidadas, chegando a publicar em 1976 a História de O adaptada por Guido Crepax (edição acompanhada da primeira publicação nacional do romance de Pauline Réage, ligando ambas edições através do design tipográfico das capas), o Fornicon de Tomi Ungerer e Lolly Strip de Pichard. O seu plano de se tornar o “Losfeld português” (publicando como “Edições Sérgio Guimarães”) gorou-se, e a Mil Dias, que poderia ter sido um recomeço, acabou por marcar o seu fim como editor: as dívidas arcadas com a montagem da exposição de 1977 e, certamente, com a produção deste álbum, terão sido o golpe de misericórdia. O seu nome está tão esquecido que nem na abrangente tese de Flammarion Maués Silva sobre a edição política em Portugal na década de 70 (Livros que tomam partido: a edição política em Portugal, 1968-80, São Paulo, 2013) se consegue encontrar mais do que uma listagem dos títulos da Mil Dias.
A sua marca mais duradoura parece ainda continuar a ser a foto da criança de cabelo encaracolado a enfiar um cravo no cano de uma G3, que correu mundo reproduzida em milhares de cartazes, e não é por acaso que é um tratamento gráfico dessa mesma imagem que aparece na capa deste álbum. Mais ambicioso do que o Portugal Livre no seu âmbito (uma crónica em imagens da história portuguesa da revolução republicana de 1910 ao 1.º de Maio de 1974), o resultado final é um volume visualmente menos homogéneo, em que a acumulação de imagens fotográficas e de outras fontes (documentos oficiais, páginas de jornais, cartoons, etc) e a ausência de imagens reproduzidas ao corte nos spreads (algo que abunda naquele álbum), por óbvia economia de meios, retiram algum impacto visual e concedem pouco espaço de respiração. Ainda assim, é um feito editorial notável tendo em conta a precária situação financeira do editor.

Apesar dessa falência anunciada, Sérgio Guimarães publicou pela Mil Dias ainda mais três livros profusamente ilustrados em torno da iconografia do PREC: Diário de uma revolução, O 25 de Abril visto pelas crianças e As paredes na Revolução (em baixo), todos em 1978. Este último é particularmente interessante (tendo até em conta o actual contexto de revitalização do muralismo político), servindo de registo visual dos murais que adornaram as paredes de algumas zonas da capital e, de resto, um pouco por todo o país, durante mais de uma década.

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Trata-se de um volume sem qualquer pretensão de análise estética ou sócio-politica dos murais (não há sequer legendas indicando a sua localização), limitando-se a reproduzir fotos dos mesmos em maior ou menor grau de detalhe (particularmente apelativas são as fotos que permitem ver o contexto mais alargado dos murais, quando articulados com janelas, portas, etc).

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Publicado dez anos depois da Revolução de Abril, como catálogo de um ciclo de cinema na Cinemateca Portuguesa, o que torna pertinente a inclusão deste volume nesta lista é a inevitável reflexão que, tanto os textos como o projecto gráfico de João Botelho e Luís Miguel Castro, acabam por fazer sobre a iconografia do PREC e a imagem fotográfica, mesmo que grande parte das imagens reproduzidas sejam fotogramas dos filmes exibidos ou mencionados. A referência à fotografia de imprensa, contudo, é ainda incontornável, até pelo recurso ao extremo aumento de alguns detalhes dessas imagens, impondo a trama de pontos do offset como elemento estético. Essa reflexão é articulada na “mesa redonda”, em que vários intervenientes (entre os quais o fotógrafo Jorge Molder e o cineasta Rui Simões) analisam a relação das imagens (fotográficas, cinematográficas, televisivas) da Revolução com o seu tempo. É precisamente Molder que dá um exemplo desse “arrefecimento” analítico que o recuo de dez anos permitia:

“De todas as imagens, aquela de que me recordo melhor é a de um poster com uma criança a pôr um cravo na espingarda de um militar. E era uma imagem de estúdio. Na altura isso fez-me confusão. Num momento em que tudo se passava na rua, enquanto as imagens tentavam captar a espontaneidade das pessoas e uma certa euforia, a imagem que para mim prevaleceu era cheia de tiques e, acho que isso é importante, era uma imagem de estúdio”. (25 Abril Imagens, Cinemateca Portuguesa, 1984, p. 10)

 

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Mil dias. Teria sido essa a distância precisa entre as ilusões revolucionárias e a definitiva desilusão, amparada pela “normalização democrática”? Numa cena perto do final de Ecce Bombo de Nanni Moretti (1978), Michelle (o jovem interpretado pelo próprio Moretti) vasculha os seus recortes de imprensa dos últimos anos, os restos dessas ilusões revolucionárias. Um desses recortes é precisamente sobre a revolução portuguesa. “Já não me dizem nada”, conclui. Quantos Michelles portugueses, por essa mesma altura, não terão dito o mesmo e lançado esses recortes, essas revistas, esses cartazes, esses livros para os cantos escuros dos alfarrabistas ou os caixotes das feiras de velharias onde ainda hoje repousam?

 

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