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“Sabendo a Editorial Inova ameaçada de desaparecimento”

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Em 1978, a editora Editorial Inova cumpria dez anos de actividade mas estava à beira do precipício. Uma década de actividade regular, com um catálogo cheio, prestigioso e servido por excelente design e orientação gráfica de Armando Alves, não parecia ser suficiente para contornar dois grandes obstáculos que se tinham atravessado no seu caminho: o enredamento da sua distribuidora, a Bloco Expresso, nas malhas das nacionalizações (por via da intervenção estatal na Seguradora Império, à qual pertencia a distribuidora: em permanente situação de gestão periclitante, esperando por uma fusão com a Regimpressa para a constituição de uma empresa pública de distribuição, a Bloco Expresso é finalmente “desintervencionada” e declarada falida em 1979) e a descolonização de Angola, Moçambique e as outras possessões portuguesas em África. O fim desse salvífico mercado ultramarino até 1974 ditou o toque de alarme para muitos projectos editoriais de pequena envergadura e saúde financeira frágil; para a Inova foi mesmo o toque a finados. José da Cruz Santos, que regressara ao Porto em 1967 para criar a Inova, depois de trabalhar em Lisboa na Portugália, foi perfeitamente claro quanto à importância desse mercado colonial numa entrevista ao Público em Abril de 2012:

“Até aí, grande parte dos livros era escoada para África – mais de 60 por cento da tiragem, em algumas obras –, e no pós-25 de Abril não foi mais nenhum”.

Na iminência de um pedido de resgate à banca (através de um “Contrato de Viabilização”), José da Cruz Santos organiza um pequeno volume composto por 72 depoimentos de individualidades do Porto ligadas às letras e artes, depoimentos que visam comprovar a valia do projecto da Inova e justificar a sua continuação. Título do projecto:  “1968-1978: uma certa maneira de dignificar o livro”. Nem todas as individualidades contactadas responderam ao repto (uma “carta-circular de 1 de Setembro de 1978”), e a ausência de alguns nomes nunca mencionados é referida com amargura pelo editor (“preferimos não mencionar os nomes dos que escolheram o silêncio”), amargura que parece ser o sentimento geral que impregna o texto de apresentação e até a soturna capa de Armando Alves. O Porto, chamado a defender e salvar a pequena editora que colocara a cidade no mapa da modernidade editorial portuguesa dos anos 60 e 70 (e cujo símbolo arquitectónico, a torre nasoniana dos Clérigos, é ostentado junto ao logo na capa), não respondera como esperado. E a banca, como se poderia esperar, não se sentiu impressionada.

A única resposta directa do editor a um dos depoimentos publicados é a um “não-depoimento”: instado a pronunciar-se sobre a Inova, o Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, “encarregou” um certo Padre Manuel de Rocha Marques de dizer que nada tinha a dizer. Nada a dizer sobre os meios de difusão do “livro cultural”, sobre as recusas anteriores a participar em edições da Inova, enfim, nada de especial a dizer quanto ao que lhe fora pedido na carta-circular.

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Escudando-se numa linguagem formalmente reverencial, canónica, o editor responde de cabeça humildemente baixa, escondendo o ferrão nos terceiro e quarto parágrafos:

“Editora de esquerda, de ideais convictamente socialistas (porque, a seu ver, neles reside a possibilidade de concretização de alguns dos mais belos ideais cristãos), não queríamos cometer esse género de intolerância que seria não apelar também para a consciência do Senhor Bispo do Porto.
Tenha Vossa Excelência Reverendíssima a bondade nos perdoar a ingenuidade do pedido, já que nos recusamos a acreditar que precise de nos perdoar a existência e a acção durante dez anos muito difíceis.” (p. 85)

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A esmagadora maioria das pequenas editoras independentes extingue-se em silêncio ou entre lamúrias privadas, quase inaudíveis. José da Cruz Santos preferiu terminar a vida da Inova com um “reverendíssimo” estoiro. E um livro. (E raro documento hoje, sem qualquer exemplar na Biblioteca Nacional e apenas com referência no espólio de José Rodrigues Miguéis na Biblioteca da Universidade de Brown).

Nota: descobri a existência desta edição “fúnebre” da Inova no excelente e já imprescindível Edição e Editores de Nuno Medeiros (ICS, 2010) e é também a ele que devo agora a cedência da digitalização de algumas das suas páginas, que agradeço sinceramente.

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Quando o Che de Roman Cieslewicz foi também de Armando Alves

A capa da edição da Limiar (Porto, 1975) destes Poemas a Guevara é de Armando Alves. A tipografia (num corpo “ultra-light” da Futura), a composição, o uso criativo das badanas, as guardas de papel colorido, tudo neste livro remete para outros trabalhos do designer nesses anos, na Inova e, depois, na Oiro do Dia, projectos portuenses do editor José da Cruz Santos (não sei se a Limiar também o seria; a coincidência parece apontar para isso). O que a distingue particularmente, contudo, não é da lavra de Armando Alves, ou melhor, foi adaptado por ele de uma obra gráfica de outrém, a qual, por seu turno, se fundava também na apropriação de uma imagem alheia.

As questões de “autoria” e “direitos” em torno da histórica fotografia de Che Guevara que Alberto Korda tirou em Março de 1960, em Havana (a que deu o título de Guerrillero Heroico) são delicadas (e o recente caso da condenação de Sheppard Fairey pelo seu poster Hope, feito para a campanha de Barack Obama em 2008, admite hipotéticas abordagens retrospectivas a esse outro e muito mais famoso uso – e abuso – de uma imagem fotográfica não creditada). O que se sabe é que, a partir do momento em que, em meados de 1967, o editor italiano Giangiacomo Feltrinelli decidiu produzir e oferecer nas suas livrarias um poster a partir apenas do rosto e ombros do Che nessa fotografia (que lhe fora oferecida em Cuba pelo próprio Korda, que guardava a matriz em casa, apenas oferecendo cópias a algumas visitas ou amigos), a imagem deixou de ser “de Alberto Korda” e iniciou o caminho da transfiguração em genuíno ícone universal. “Ícone” é um termo que uso com propriedade: tal como os pequenos painéis de madeira pintados com a representação programática “ortodoxa” de Cristo e dos santos, que adornam as iconostáses das igrejas e basílicas dos Balcãs, do Leste Europeu e de todo território do antigo Império Bizantino desde a Alta Idade Média (sobretudo depois dos Iconoclasmas do final do primeiro milénio), também esta transfiguração de uma imagem fotográfica (com os seus valores anexos de verosimilhança, individualidade, ponto de vista, idiossincrasia, etc) na sua condensação simbólica e gráfica obedeceu (por ínvios e paradoxais caminhos) aos mesmos princípios de eliminação da contingência e da “imperfeição” humana para a criação de uma imagem “venerável”.

Essa condensação gráfica e “icónica” começou, na Europa, com a capa de Roman Cieslewicz para o número 3 da revista Opus International, em Outubro de 1967 (sobre a qual escrevi já aqui), e, sobretudo, com o poster que dela se produziu e que a disseminou pelo mundo, antecedendo em alguns meses a definitiva síntese gráfica do artista irlandês Jim Fitzpatrick. Se esta seria essencialmente um trabalho de alto contraste sobre a foto do Che, facilitando a sua rápida reprodução em técnicas “imediatistas” e economicamente acessíveis como o stencil e a serigrafia (num processo que dura até hoje), a capa de Cieslewicz implicou, como era hábito nele, uma intervenção mais acentuada sobre a imagem original: as “arestas” da figura são amaciadas, há uma simplificação radical das formas, quase no caminho da abstracção, obtendo-se três áreas de cor plana sobre o fundo e, mais importante, os olhos e o nariz são substituídos por duas palavras compostas numa fonte de tipo “egípcio” ultra bold (»CHE« SI, título de um artigo de Alain Jouffroy nesse número da Opus, numa óbvia referência ao slogan “Cuba Sí! Yanqui No!” e ao documentário de Chris Marker de 1961 Cuba Sí!). Criada quase ao mesmo tempo do cativeiro e da morte de Che Guevara na Bolívia em 9 de Outubro de 1967, esta imagem, que se pretendia uma vigorosa homenagem e um testemunho de vitalidade em cores Pop, tornou-se também num involuntário elogio fúnebre. A sua fama na Europa, nesses meses de ressaca pela notícia da morte do revolucionário argentino, teve o equivalente, nos EUA, no poster de Paul Davis de 1968, (também ele, curiosamente, adaptado da capa de uma revista, a Evergreen Review).

Fruto de um contínuo processo de apropriação que começara na recomposição da figura central no poster de Feltrinelli, esta composição de Cieslewicz tem um valor acrescido por ser a única, das imagens do Che produzidas por essa altura a partir da fotografia de Korda, onde se podem sentir ecos do grafismo dos cartazes cubanos revolucionários, em especial os cartazes serigráficos de cinema do ICAIC. Com as suas áreas de cor plana perfeitamente definidas e tipografia económica e impactante, poderia ter sido desenhada em Cuba.  Coincidência (Cieslewicz experimentava, nas capas da Opus de então, com um tipo de imagens que funcionassem como pequenos posters – algumas tendo mesmo sido adaptadas para tal) ou decisão consciente de prestar uma homenagem a Che fazendo “à cubana” (nesse número de Outubro podia ler-se um extenso dossier sobre a arte cubana de então, acompanhado de muitas imagens), o certo é que a associação visual deste Che Si com esse riquíssimo portfolio cubano (por então ainda quase totalmente desconhecido na Europa e nos EUA) confere-lhe uma profundidade acrescida de leitura e, de um ponto de vista artístico, um muito certeiro “encaixe” no seu tempo.

Apesar da fama internacional dos trabalhos de Cieslewicz a partir do final dos anos 60, seria mais natural que fosse ou uma reprodução da foto de Korda (que é usada, sim, mas na contra-capa) ou de uma das “sínteses” à Fitzpatrick (que, já em 1968, Claudio Baini usara na capa da primeira edição mundial da Feltrinelli do Diário boliviano) a ser escolhida por Armando Alves para esta capa. Resta, pois, uma rara apropriação e aplicação dessa imagem numa capa de livro, reduzindo a sua manipulação à eliminação da palavra SI. Nem Cieslewicz, nem Korda são creditados, como é óbvio, mas a capa e o livro transpiram um tal ar de cumplicidade ideológica com o que o primeiro fez da imagem seminal do segundo que seria estranho descobrir que um e outro tivessem levado a mal. Estávamos em 1975 e, afinal de contas, le fond de l’air était rouge.

P.S.: Outra curiosa apropriação “nacional” de um trabalho de Roman Cieslewicz fora de Vítor Silva Tavares, que em 1970 usara numa capa um alfabeto composto pelo designer polaco para um livro das edições Tchou em 1964.

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